Botswana, Foto T.Abritta, 2008

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O Promotor de Fora: segundo capítulo de Jequitinhonha


Serro, Diamantina, Itamarandiba.
Couto Magalhães, Capelinha, Turmalina.
Berilo, Minas Novas, Chapada do Norte, Grão Mongol.
Virgem da Lapa, Novo Cruzeiro, Araçuaí, Padre Paraíso, Itinga.
Itaobim, Rubim, Salinas, Joaíma, Medina, Pedra Azul.
Jacinto, Almenara, Jordânia, Mendanha.
Sopa, Milho Verde, Biribiri.

Tantas cidades, tantas vilas, tantos arraiais, povoados, lugares e lugarejos.  Parece até um poeminha piramidal.  E olha que faltaram muitos.  Não vejo, por exemplo, o Vau – onde os viajantes atravessavam o Jequitinhonha.  O nome do povoado acabou confundindo-se com a poesia geográfica.  Mas onde trocar o cravo de uma ferradura?

Imenso Vale do Jequitinhonha.  E lá, justamente lá, acontece isto.  Naquela Cidade, sede de Bispado e de quartel da Polícia Militar.  Paisagem de minério, riqueza, sonhos de garimpeiros, solidão de tropeiros.
Imutável ordem de pedra e muitos ais.  O povo até diz: cidade do ppedra, padre, polícia.

          No mercado, vendas, vendinhas e biroscas; no barbeiro, ferreiro, sapateiro.  Nas esquinas da Praça – onde fervia o comércio de pedras –, no clube e até na cadeia.  Fosse na saída da igreja ou no Beco do Mota.  O falatório era o mesmo:
          Um Promotor de fora?  Como pode?
          Não é filho da Terra!  Não devemos tolerar!

          Alguns tentavam a desqualificação social bisbilhotando os trens do Promotor:
          É um João ninguém!
          Vocês viram?  Apenas móveis velhos: cama de casal bem pobrinha, guarda roupas de pinho, bercinho já usado para o filho que vai nascer, mesa de escritório e cadeira já descascadas; um sofá velho, mesa de tábuas e quatro cadeiras para a cozinha.  Ah, a bateria cheia de panelas amassadas, duas estantes feitas de caixote e montes de livros velhos.  Um pobretão! 
          Tem apenas uma mão na frente e outra atrás! 
E riam debochadamente.

          Outros, mais agressivos, pressentiam seus reinados ameaçados:
          O Coronel tem que tomar providências!  Senão entro na cidade com meus homens
Mal sabia Seu Valter o que iria acontecer com o filho – assassino e braço direito – Valtinho.

          Até aos sentimentos familiares e cínicas tradições, apelavam:
          Não sei como Seu Ari pode alugar casa para um promotor casado.  Afinal tem três filhas solteiras.  A mais velha, professora formada, já vai pros seus dezenove anos.
          Neste caso discordo, basta Seu Ari não ser tão exigente que não faltarão pretendentes.  Reza a tradição que marido de professora não precisa trabalhar
E brindavam à beleza da jovem, entornando mais um trago.

          As notícias se agravavam:
          Imaginem... mesmo de dia o promotor tranca à chave a porta da sala de sua casa.  Intolerável ofensa para todos nós! 
          Ontem ele chegou à janela, cara de nenhum amigo e ficou examinando, contra a claridade, as raias da carabina.
          Boa coisa não planeja.
Apenas arma de qualidade não garante tiro certeiro.
A bala que vai, também vem.
          Ainda contarei esta história de trancar portas, bem como a saga daquela carabina.

          Hoje pela manhã foi pior:
          O Promotor mandou fechar a porta da cadeia.  Já pensou, se você dá azar de atirar num desafeto qualquer e acaba na jaula como animal?
          Agora é assim: se der uns tiros para defender sua família fica desonrado.
          O Tenente-Delegado falou serem ordens assinadas pelo Juiz: “recolha os presos, mande chamar até em casa, se for necessário – sempre seria – e passe o cadeado”. 
Não adianta agora o Delegado ficar se lamuriando por aí: “estou muito envergonhado e blá-blá-blá”.  O fato é que acabou aderindo ao intruso.  Até o Prefeito declarou ter sido apunhalado pelas costas pelo ingrato.


          É interessante ressaltar que, mesmo os mais humildes, sempre explorados e ofendidos, também compartilhavam das opiniões de seus opressores, acabando por defendê-los.  Não vejo nisso uma traição de classe.  Tenho muita compaixão por este povo que de tão oprimido acaba cultuando Belial, o Deus do Mal, na esperança de aliviar a severidade dos castigos.  São anos, quase eras geológicas, a cristalizar camadas da desigualdade social.  Só trabalhando muito, dando todas as oportunidades para esta gente se educar, um dia a sociedade será transformada.
          Um bom exemplo desta distorção foi a passagem da Coluna Prestes pelo Nordeste.  Quanto mais pobre a região, maior resistência enfrentava.  Solitários, sertanejos ajoelhavam-se nas estradas, peito aberto, e atiravam matando meia dúzia de soldados, até serem impiedosamente abatidos.  Inúteis mortes, verdadeiras imolações.  Nem sequer arranhavam o poderio dos coronéis.
          Aqui tive que parar a escrita, enxugando as lágrimas nos olhos vermelhos.  Lembrei-me de Che Guevara e sua aceitação fatalista de um povo simples, que não o compreendia e não o aceitava, delatando-o, traindo-o, vendendo vidas de jovens e idealistas guerrilheiros ao exército boliviano – a mesma força de repressão que massacrava esses índios a serviço de companhias multinacionaisMas Guevara estoicamente aceitava essa realidade.


          Se desconfiassem, eu seria um homem morto.  Já fiz quase uma dúzia de exames de corpo de delito e em breve faremos a exumação do cadáver de Seu Onofre, marido da Dona Cassandra – que já anda sorridente pelas ruas, cantando uma antiga cantiga de roda de Araçuaí:

          Palmatória quebra dedo
Chicote deixa vergão
Cassetete quebra costela
Mas não quebra opinião

          Na antiga Grécia o personagem mitológico Cassandra encarnava o sofrimento feminino através dos tempos. 

Porta dos Leões.  Micenas, Grécia.  Foto T.Abritta, 1990.

...as muralhas ciclópicas, que hoje, assim como antigamente, orientam o caminho para o portão sob o qual nenhum sangue brota.  Para as trevas.  Para o matadouro. E sozinha...
(Cassandra, Christa Wolf)


          Cassandra, por não corresponder ao amor de Apolo, foi punida, perdendo a credibilidade de seu dom profético.  Era capaz de prever o futuro, alertar os homens das tragédias iminentes, mas nunca levada a sério.  Previu a Guerra de Troia, massacres e tiranias, mas sempre diante de ouvidos surdos aos seus vaticínios da destruição desta cidade.  Terminou levada como despojo de guerra para Micenas, onde foi assassinada.

Aqui será diferente.  Nossa Dona Cassandra sertaneja será levada a sério e muitos pagarão por seus crimes.  Na prisão, ou com a própria morte.  Vou logo alertando.
          Inexplicáveis coincidências e ironias desta vida.
Um pouco da injustiça ancestral resgatada neste fim de mundo.




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