Botswana, Foto T.Abritta, 2008

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Lobos e Encantamentos



          No mapa esquemático abaixo, monstro o roteiro de uma viagem que fiz em 1996 pela região mineira do ciclo do ouro.  Com o material recolhido nesta andança por esburacadas estradinhas de terra, percorridas com um jipe 4x4, escrevi vários textos – crônicas, contos e até poemas.  Abaixo apresento uma destas crônicas publicada no livro Memória, História e Imaginação.  Notem que as companhias de mineração criaram verdadeiros impérios, interditando até estradas, como comento as dificuldades que tive ao atravessar o trecho Caetés a Barão de Cocais, tendo até que cortar correntes que impediam que porteiras fossem abertas. 


Viagem pelo Ciclo do Ouro de Minas Gerais



          Minas tem mistérios.  Talvez impenetráveis.  Reside aí o fascínio.  Assim pensava, olhar perdido, focado no infinito. O sol forte.  A sombra da Igrejinha de Nossa Senhora do Ó como proteção.  Nome enigmático de santa.  Mas nesta verdadeira confraria de Ós espalhada por aí, não foi difícil descobrir sua origem.  Nasceu Nossa Senhora do Parto, lá na antiga Toledo do século sete.  Nas liturgias, invocações exclamativas: O Sapientia, O Clavis David, O Emmanuel... Mas ao povo, criatividade simplificadora.  Até a nobreza do Latim e alusões ao Antigo Testamento ignoradas.  Tudo virou o simples Ó de invocação à Virgem.  A Nossa Senhora do Ó.  Pequena e majestosa, nos fundos de um largo ladeiroso, riscado pela erosão das enxurradas, mas acolhida pelo adro de pedras ladeadas por verde capim de perpétua esperança.  Misteriosa, olha-nos com sua fachada facetada.  Porta central, ladeada por duas janelas laterais.  Encimada, no centro, pela pequena torre do sino.  Ode à simplicidade arquitetônica.  Uma constante em outros povoados e vilas mineiras. 
          Teria algum significado?  Nervuras e arcobotantes nas catedrais medievais conspiravam para alçar às alturas dos céus, tentando reduzir o homem diante do poder divino.  O fausto e a riqueza de algumas igrejas mineiras afugentariam os espíritos malignos das montanhas.  E a simplicidade destas capelinhas?  Só o vento pode responder.  Mas prefere trazer os sons de sabor da vitória do Capitão-Mor Lucas Ribeiro.  À santa devia a vida.  À santa ergueu esta capelinha na Vila Real de Nossa Senhora da Conceição de Sabará. 
          No modesto púlpito, altar e coro dourados, brilham os olhos de vidro da pequena santa.  Assusto-me.  Parece falar alguma coisa: o barrento Rio das Velhas já foi colorido de vermelho pelo sangue dos antepassados de sua avó materna.  Escuto gritos, correrias.  Sons de morte.  Uma velha fotografia.  Longos, negros, lisos cabelos – o sangue índio – formavam um grande coque. 

          “Saindo de Caetés, que vem depois de Sabará, vá em frente, vire a direita perto do jequitibá.  Passando a venda do Seu Aquino, quebre pra esquerda.  Acolá, na colina, vai avistar a torre de eletricidade.  Não para não.  Vá direto.  Quando passar pelo ferro velho do Seu Lito, não para não.  Vá direto.  Na subida da serra tem uma porteira.  Pode abrir que este negócio de propriedade privada é mentira.  É estrada municipal.  Depois de subir vá descendo.  Aí é a estrada que vai pros lados de Barão de Cocais, caminho pro Caraça.  O problema é que a estrada vive mudando de lugar.  Hoje passa ali, amanhã acolá.  Corre risco de se perder.  Hoje é domingo, tudo deserto.  Quem vai corrigir o rumo?  Se for, vá por sua conta e risco!  Nós só podemos alertar.” 

Estrada encantada?  A curiosidade maior do que o desconfortável mistério.  Poderia ter me informado melhor.  Antes assim, pra não fazer desfeita. 
          Quando começou a descida, um frio no coração.  O mundo era real, mas aterrorizante.  Até onde a vista alcançava, única cor ferruginosa, quase negra.  Montes, apenas montes; atrás de cada monte mais montes plantados em meio de infinito labirinto.  O minério de ferro pavimentava tudo.  Todos os caminhos exatamente iguais, sinuosos entre os montes de minério.  Nenhuma referência. 
          Pequeno alento!  Por perto chegava um trem.  Apitos e trepidações cortaram o silêncio.  Apenas outra armadilha no nosso desespero.  A gigantesca esteira despejava minério em cada vagão e o trem partia automaticamente apitando como um ser vivo.  Aqui prescindiam de operadores humanos.  Mundo apenas de máquinas. 
          Resolvemos seguir no sentido contrário do movimento da pedraria que enchia os vagões.  Acabamos diante de um verdadeiro prédio que bufava, rangia para alimentar a insaciável esteira.  Contornamos o monstro, buzinando, gritando, piscando faróis.  Felizmente a máquina parou e falou por um alto falante para aguardarmos à distância. 
          Foi uma alegria ver o jovem operário pilotando a moto que saiu das entranhas da carapaça metálica:

“sorte de ocês eu tá tirando atraso no serviço.  Pensei inté em almas penadas dos que ficam por aqui.  Quando o soterrado é um avulso, tem encarregado que vai logo gritando que não tem precisão de achar corpo.  Os desalmados dizem que aço é ferro e carbono”.

          Depois da curva, coroando as alturas, o neogótico do Santuário do Caraça no vale escondido pela muralha de montanhas.  Um oásis na terra arrasada por anos de mineração.  Um estrondo de trovão foi se afastando, quicando nas rochas entre nuvens, deu a volta no vale e chegou novamente.  Ensurdecedor.  Emocionante saudação. 
          Após o jantar, vindos de diferentes pontos do mundo, nos reunimos na varanda de pedra, olhos fixos na escadaria que sumia pela noite.  Um enorme focinho. Olhar desconfiado, pernas compridas, docemente foi chegando e saindo com os nacos de carne oferecidos pelos monges.  O lobo Guará.  Criatura tão ameaçada, aqui protegida.  Na escuridão, apenas lamentos destes sobreviventes da degradação ambiental.

          De noite uma grande algazarra.  Era um sonho quase real.  Olhei pelas frestas da janela a tropa chegando com mercadorias e notícias do Rio de Janeiro.  Aqueles degraus dependurados na mata magicamente agora estavam ligados ao velho trilho de chegada ao Santuário.  Por ali, o pátio ia se enchendo de animais.  Na frente, a madrinha com a cabeçada de prata, plumas e fitas, rebolando com nobreza, ampliando o som dos guizos do peitoral.  Ao seu lado, o madrinheiro sorria contente com o sucesso da jornada.  A rígida ordem na marcha de deslocamento da tropa evaporou-se, fundindo em uma alegria única.  Tudo misturado.  Animais e homens, cargueiros e tropeiros, burro culatreiro perdido entre o arreador e tocador.  Luzes acendendo, pessoas saindo por todas as portas. 
Ao acordar, corri para o pátio e nada vi.  No café da manhã todos comentavam o mesmo sonho. 
          E aqui voltamos A Palavra Minas:

Ninguém sabe Minas.  A pedra, o buriti, a carranca, o nevoeiro, o raio.  Selam a verdade primeira, sepultada em eras geológicas de sonho.  Só os mineiros sabem.  E não dizem nem a si mesmos o irrevelável segredo chamado Minas. 

Glossário
Avulso: trabalhador informal, sem registro profissional.
Madrinha: mula madrinha, animal que liderava a tropa.
Madrinheiro: tropeiro líder.
Culatreiro: animal que ia em último lugar em uma tropa, na culatra.
Arreador: responsável pelos arreios, indo atrás da tropa com os animais de reserva.
Tocador: tropeiros que auxiliavam na condução da tropa.