Botswana, Foto T.Abritta, 2008

terça-feira, 26 de julho de 2011

Uma Cidade Reencontrada


“Encantamentos do Desconhecido
Oh, Senhor, ilumina esta pobre alma que mares atravessou, campos e terras viajou, tentando entender um pouco desta magnífica obra Divina que deixastes aos nossos cuidados para minorar sofrimentos e alegrar as vidas humanas com tantas descobertas. Alguns preferem fechar os olhos, simplesmente negando acreditar que mundos não mencionados na Bíblia possam ser habitados por povos com alma, cordeiros como nós deste imenso rebanho do Povo de Deus.
Deitado na proa desta nau observo o infinito firmamento estrelado. Fico a pensar se não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, com estas bordas desconhecidas, a bela Cruz a nos guiar, sempre apontando o contrário polo da agulha flutuante, para deleite dos homens? Não seria a vida monótona sem o desconhecido a revelar-se? O inflar e desinflar do velame, o ranger dos mastros, o uivar dos ventos sinalizam a certeza de meus pensamentos.
Partimos ao entardecer do porto da Parayba do Norte. Agora a noite cai pesada. Terei muito tempo para refletir sobre o que vi, sobre o que aprendi nestas terras. Daqui até Lisboa, dias e dias com apenas céu e mar, noite e dia. Noite escura, noite estrelada. Tempestade, calmaria.
Como não seriam humanos, como não teriam almas, aqueles que se emocionam com o despertar da vida, sofrem com as perdas da morte, oram pelas almas dos antepassados e derretem lágrimas afetuosas?
Acredito que a exuberância deste mundo desconhecido, plantas, terras, águas, animais, almas e estrelas, seja um desafio de Deus para testar a sabedoria e a bondade humana, presenteando-nos com tantas maravilhas.
Ao fogo dos infernos os indignos desta dádiva Divina! Afinal, uma só natureza nos foi dada. Não criou Deus os naturais diversos, e de um só Adão formou os homens?
Cônego Brandão Lopes, 1723”

Assim que cheguei, reli mais uma vez este manuscrito e guardei-o bem protegido em um envelope. Não quis pensar mais sobre sua autenticidade. Afinal, documentava o reencontro com esta cidade que já acreditava perdida para sempre.
De agora em diante prefiro não retornar mais a lugares que tanto me agradaram e impressionaram. Que fiquem na memória e nas fotografias.
Há muitos anos não visitava Salvador. Hoje, ando por suas ruas procurando o que praticamente não existe mais: a verdadeira Cultura do Povo, substituída pela chamada “Cultura Popular” moldada pelos meios de comunicação a serviço de políticos sempre desonestos, sempre arrebanhando o voto fácil, forjado na enganação, ignorância, exploração da fé. Os pilares da corrupção.
Entristeço-me percorrendo corredores do agora luxuoso hotel no outrora convento. Arrancaram a alma, expulsaram a tradição. Apenas paredes sem emoção ou História. Chamam de parceria público-privada este massacre cultural. Como condescendência à minha tristeza, ainda chego a ver, sentado junto à janela – olhar triste, rosto macilento, batina surrada – aquele velho monge que conhecera no passado.



Convento do Carmo, Salvador. Foto T.Abritta, 2008.

Na noite escura vou descendo a Ladeira do Carmo. Desesperanças nesta última noite em uma cidade que não reconheço mais. Acabo em um beco lateral. Da sebenta cortina de veludo no fundo da lojinha, abriu-se uma fresta, surgindo já conhecido rosto, apenas bem mais velho, que falou: “como o senhor parece ser de rara sensibilidade e cultura, ofereço este manuscrito ao qual certamente dará o merecido valor.”
Pouco antes do Largo do Pelourinho, fui atraído por bela fachada de um casarão todo restaurado. Misteriosa voz, de sotaque italiano, conduziu-me a pequena mesa nos fundos do restaurante que parecia flutuar nos céus.
Acenderam as velas que iluminaram a Salvador perdida: velhos telhados, sons familiares, o esplendor da Baia de Todos os Santos.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Égloga Sertaneja

Dilze? Dilze? Onde está o meu facão?
Dilze? Dilze? Onde está o meu velho punhal Caroca?
Hoje vai ter servidão nesta biboca.

Café brejeiro, feijão verde, jerimum do sertão.
Galinha capoeira, bode mamão.
Cacto facheiro, xique-xique, coroa de frade.
Esta, a visão.

Inverno-verão, chuva-secura.
Inverno-inferno – esta, a estação.

Minha casa, minha vida (a deles).
Só dissimulação, muito dinheiro pra desconstrução.

A filha da prefeita é vereadora. O filho deputado.
O marido prefeito ao lado. Tem irmão senador de estado.

Sertão-servidão-ladrão.
Dilze? Dilze? Onde está o meu facão?
Pra correr sangue neste chão.
Libertar o Sertão desta servidão!

Nota:
Caroca: Antigo e tradicional fabricante de punhais, que existia em Campina Grande, Paraíba