Botswana, Foto T.Abritta, 2008

sábado, 29 de agosto de 2020

As Pirâmides de Dashur


          Ainda ofegante deitei-me na areia quente, escondido atrás das lápides do cemitério muçulmano em Dashur.  Dali, descortinava o imenso deserto, horizonte rasgado apenas por três enormes silhuetas, enegrecidas pelo contraste de luminosidade, tal gigantescos navios em mar nebuloso. 

O coronel garantiu que as sentinelas escondidas no areal não atirariam em cemitérios.  Estaria seguro?  Pelo sim-pelo não, permanecia nas sombras.

          Pela primeira vez observava uma pirâmide com a cobertura original em granito de Turah, mesmo que carcomida e rachada pelo tempo.  Foi o legado do primeiro sonho geométrico do Faraó Snofru em chegar à forma piramidal perfeita.  A construção se iniciou subindo em ângulo de aproximadamente cinquenta e quatro graus.  A desilusão com as primeiras rachaduras obrigou os construtores a diminuírem a inclinação para quarenta e três graus, criando a forma única da Pirâmide Romboidal de faces tortas.

          O cenário não era favorável para fotografias devido à grande claridade de fundo.  Mas a objetiva fotográfica ampliava o olhar, mostrando, tal uma luneta, cada detalhe, rachadura ou fresta entre os gigantescos blocos de granito (V. figura 1).

Figura 1 - Pirâmide Romboidal.  Foto T.Abritta, 1991.  Original em negativo colorido

          O faraó não desistiu.  Depois da tentativa, também frustrada, em Meidum, aqui construiu uma terceira pirâmide, pouco mais ao norte, em rampa suave de aproximadamente quarenta e três graus, conhecida como a Pirâmide Vermelha – devido à cor da pedra usada e ao brilho avermelhado com a reflexão dos raios solares (V. figura 2).

 

Figura 2 - Pirâmide Vermelha.  Foto T.Abritta, 1991.  Original em negativo colorido

          À esquerda destes gigantes, grande massa desabada de terra e tijolos marcava a tentativa de outras dinastias no uso de diferentes materiais, como tijolos de barro, que se fragmentaram com o peso da construção (V. figura 3).


Figura 3 - Pirâmide de Tijolo.  Foto T.Abritta, 1991.  Original em negativo colorido

          Mesmo tocando apenas com os olhos, as pirâmides Romboidal, Vermelha e de Tijolos, compensaram o susto.  Ver o que normalmente não é visto, pode ser perigoso, mas deixa histórias.  

          Na frente do cemitério, todos os habitantes da vila se reuniam: o coronel, seu tanque, soldados, fileiras de homens sentados de cócoras, dezenas de cachorros, mulheres mais afastadas – com compridos olhares – e aquela multidão de crianças que rodeava Cristina.  Umas exibiam-lhe filhotes de cabra, outras, trabalhos escolares.  A criançada morria de rir com o desconhecimento dela, que, ao abrir cada caderno, tentava ler de trás para diante, não sabendo identificar algarismos ou letras.  Para eles, uma descoberta fantástica saber que em outras culturas a leitura não era feita da direita para a esquerda.

   

       O carro rodava na estradinha de areia.  Eu no banco da frente junto com o motorista.  Cristina, sentada atrás, comia uma romã. 

          Finalmente pegaram os invasores.  Disseram que foi a eficiência do Serviço Secreto conjugada com o que eles chamavam de “correio árabe”, onde tudo era visto pela população e informado às autoridades.  Grande vantagem!  Como ficar invisível com aquela nuvem de poeira de centenas de metros que nos acompanhava? 

          Aqueles dez minutos pareceram uma eternidade.  Podia contar os dentes podres dos soldados, observar a sujeira em suas unhas, ver o tremor dos dedos que comprimiam firme os gatilhos das AK-47, e ficar tão perto do orifício negro de seus canos por onde sairiam as balas. 

          Parecia um terremoto.  Tudo tremeu com a chegada daquele enorme tanque de guerra, coberto de soldados.  A escotilha abriu surgindo um rosto horroroso, onde vastos bigodes tentavam encobrir cicatrizes deformantes.  A figura aproximou-se e rosnou: 

Passport!

          Franziu o cenho, mostrando grande concentração mental na leitura do documento.  Perfilou-se, bateu continência apresentando-se:

– Coronel Mohamed, Chefe Regional do Serviço Secreto.  Virou de costas e iniciou uma preleção para a tropa. 

– Parece que pelo menos obedecem à Convenção de Genebra, comentei com a Cristina. 

– Obedecem coisa nenhuma! Vão nos fuzilar e nem querem saber quem sou.  Nem ao menos pediu meu passaporte.  Vou “soltar os cachorros” pra mostrar do que sou capaz!

          Eu já não sabia se tinha mais medo do coronel ou da feminista ofendida. 

          Milagres acontecem.  Todos os soldados abaixaram as armas, sorriam, falavam, e escutávamos claramente: Pelé, Garrincha, Careca, Roberto Carlos...

          Aquele rosto horroroso transformou-se em sorriso brilhante, arreganhando a dentadura de ouro.

– Vocês invadiram área militar.  Entendem?  Área onde testamos nossas armas secretas.  Da próxima vez não deixem de avisar para podermos organizar uma partida de futebol. 

          Despedimo-nos do agora simpático coronel que transbordava de felicidade em saber que o seu jogador preferido, Roberto Carlos, também era um grande cantor de sucesso no Brasil, conforme minhas informações.  Só depois compreendi, pelo sorriso contido da Cristina, que os meus pobres conhecimentos futebolísticos confundiram um jogador de futebol com um cantor!

Uma coisa é certa.  Na região de Dashur não me arrisco a voltar. 

 



 


sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Ahram El-Kaddah


          Saímos cedo para mais uma expedição.  A uns oitenta quilômetros da Cidade do Cairo, abandonamos a estrada que margeava a linha férrea, cruzamos a Vila de Meidum, mergulhando no deserto.

          Em meio à secura entendíamos, agora, o que era um oásis.  Mancha verde, úmida, pastores e animais.  Uma modesta fresta de frescor na aridez da natureza.  Sorriso condescendente para a vida. 

          Do outro lado da vegetação, mais montes, mais areia e ao longe se levantava Ahram El-Kaddah – a Falsa Pirâmide.  Gigantesco degrau de pedra encimado por dois outros menores, cercados de entulhos.  O barulho do desabamento e a poeira pareciam permanecer no ar, como o sonho de Snofru, pai do Faraó Quéops, de construir a forma piramidal perfeita, ascendendo aos céus em rampa de pedra com ângulo inimaginável nesta época.  Uma utopia geométrica, só materializada mais tarde por seu filho na Grande Pirâmide. 

Foto T.Abritta, 1991.


Foto T.Abritta, 1991.

 

...possa o céu chover a fresca mirra,

  possa ele gotejar incenso sobre o teto do templo do Faraó Snofru.

 

          Estes reis não subiram ao firmamento, mas deram um senso de eternidade à escala humana de tempo, quando lemos, mais de três mil anos depois, esta mensagem deixada por visitantes que aqui estiveram quase mil anos após esta pirâmide elevar-se no deserto de Meidum (*)

A inscrição nos levava através este mundo, largos corredores e galerias, ora descendo ou subindo até chegarmos à portentosa câmara mortuária. 

Em desafio ao tempo, no teto, enfiadas entre blocos de pedra, toras de madeira.  Esquecidas da época da construção?  Há quanto tempo?  Mistério.  Convite à reflexão (**)

Madeira no teto da câmara mortuária.  Foto T.Abritta, 1991

 

Quando saímos da pirâmide, momento único e especial: o sol raspava o solo atravessando as palmeiras do oásis.  De longe, muito longe, como trazido pelo vento, o cântico Alaaaá, propagava-se na planura. 

Ao nos dirigirmos para o carro, um tropel, cavaleiro com cara de nenhum amigo.  Falava em árabe, aos arrancos, como sua montaria que rodopiava e bufava irrequieta.  Empinou o cavalo que, num relincho como se gabasse ser um puro sangue, sumiu em nuvem de poeira.  O motorista tremia – jamais havia recebido tão importante emissário – e gaguejou explicando que fomos convidados para um chá por importante líder tribal. 

A casa era de tijolos de barro secados ao sol, coberta de esteiras feitas com fibras de palmeiras, mostrando que praticamente não chovia por aqui.  Tiramos os sapatos e sentimos a maciez e a beleza dos tapetes que contrastava com a aridez exterior.  Suas tramas irregulares diziam terem sido tecidos por diferentes mãos a cada parada de uma caravana.  Os chefes locais nos esperavam em torno de reluzente narguilé de cobre.  Em uma trempe, fogo aquecendo chá.  Por aqui, brasileiros eram considerados irmãos.  Não traziam a arrogância dos conquistadores. 

Entre outros assuntos falei do Saara (Sociedade dos Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega), centro comercial no Rio de Janeiro, onde todos os brasileiros convivem pacificamente, independente de religião ou origem de seus país. 

O assunto foi um sucesso, a cada pausa eram enviados emissários que traziam novos ouvintes para a história.  E lá ia eu repetindo tudo de novo, e o pobre motorista – que falava todas as línguas e nenhuma – nervosamente traduzindo.  Só Alá poderia conhecer a versão que saía em árabe.

Infeliz ideia.  Resolvi mudar a história.

Falei de um árabe em Paris, vizinho de minha cunhada, proprietário de pequena loja que só fazia trabalhar de segunda a domingo.  Para tal, tinha sócio judeu e outro cristão.  Seu comércio não tinha dia santo.  Enquanto isto, os franceses tiravam férias e descansavam nos fins de semana.  O árabe acabou rico e dono de um supermercado. 

Todos os antigos ouvintes foram chamados de novo.  A cada tropel, nova repetição, e o motorista sempre assustado com as reprimendas que recebia cada vez que tentava abreviar o relato daquela história, que já sabia de cor e salteado.

Foi um chá inesquecível, todos felizes com a paz no nosso Saara e as notícias do esperto árabe parisiense que já consideravam como irmão.

Os primeiros raios de sol da alvorada já iluminavam a grande pirâmide de Quéops, enquanto sacolejávamos no carro retornando para o Cairo.


Notas:

(*) Nos corredores e na câmara funerária desta pirâmide foram encontradas diversas inscrições.  Uma delas foi traduzida como: “No 12o dia, do 4o mês do verão, no 41o ano do reinado de Tutmósis III, o escriba Aakheperkara-Seneb, filho de Amenmesu, veio ver o magnífico templo do Faraó Snofru.  O seu sentimento foi como se o céu estivesse presente e aqui o sol se erguesse.  Então ele disse: Possa o céu chover a fresca mirra, possa ele gotejar incenso sobre o teto do templo do Faraó Snofru”.  Ver em As Pirâmides do Egito, I.E. S. Edwards, Editora Record, Rio de Janeiro, 1985.

 (**) oito anos depois, esta madeira e outros resíduos orgânicos encontrados em outras pirâmides, foram datados por técnica de rádio carbono, dando resultados, em média, quatrocentos anos mais antigos do que as datas históricas associadas aos faraós e suas pirâmides, como constavam na Cambridge Ancient History.  Ver em Dating the Pyramids, David H. Koch Pyramids Radiocarbon ProjectArchaeology, volume 52, número 5, 1999.

 


 





quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Hórus

 

          Era nossa segunda vez no Egito.  Visitaríamos o que normalmente não é visitado.  Veríamos o que não é visto. 

          Caminhávamos por areias infinitas.  As pirâmides de Abusir reduzidas a três montes de pedras e terra, cercadas de ruínas de templos, inscrições e colunas papiriformes que teimavam permanecer em pé por mais de quatro mil anos.  Pareciam as páginas de enorme livro despedaçado, revelando aqui e ali um pouco da história destes faraós. 

Pirâmide de Sahurê. Foto T.Abritta, 1991.

          A entrada da pirâmide de Sahurê estava pouco abaixo do nível do solo, pequena abertura esmagada entre lajes de granito. Para facilitar a passagem, deixei de fora a mochila com todos os equipamentos, inclusive lanternas e pilhas extras – um esquecimento imperdoável.  

Entrada da Pirâmide de Sahurê. Foto T.Abritta, 1991.

 

          O guia ia à frente, seguido por mim e Cristina.  Descemos por inclinado corredor quase obstruído, pedras desabadas do teto, fendas por todos os lados.  Morcegos adornavam o caminho, soprando nossos rostos com os deslocamentos de ar dos precisos e invisíveis voos na escuridão.  O facho de luz do guia mal iluminava as fendas de passagem e os lugares seguros para nossos passos.  O negrume, o silêncio e as mãos ressequidas tateando a pedra, pareciam ampliar o cheiro insuportável. 

          O corredor ficou horizontal, diminuindo o medo de rolar no desconhecido.  Não me saia da cabeça o conto A Nova Catacumba, de Conan Doyle, onde um arqueólogo abandona seu colega na escuridão, fugindo com o único lampião disponível.  Cada metro avançado, a lembrança desta história:

 

          ...em algum lugar, um ruído roçagante.

 

Atravessamos um pórtico de granito, iniciando pequena subida.

 

          ...vago som de pé batendo em pedra.

 

          A câmara mortuária, em calcário de Turah, originalmente tinha o teto formado por três pares superpostos de gigantescos blocos de pedra, pesando, cada, umas oitenta toneladas.  Hoje o grandioso é assustador.  Mal ficávamos de pé, mesmo assim graças aos dois únicos blocos não fragmentados.  Quantos dias, anos ou séculos ainda resistiriam ao esmagamento do peso de quase cinquenta metros de rochas e areia?

          Nisto, a gravidade do momento foi conspurcada por uma voz feminina em tom desconhecido pelo Ba de Sahurê:

          – Eu me arrastando, quase esquecida na escuridão, e apenas os pés do Sahibi iluminados!

Era o preço do curto-circuito da cultura islâmica e latina. 

 

          ...o silêncio envolveu e engolfou o velho templo – um silêncio estagnado e pesado se fechou.

 

          Não resisti, tomei violentamente a lanterna do guia e iniciamos o retorno.

          Na saída da tumba, um falcão assustado alçou voo, dando a impressão de que estava pousado nos ombros da Cristina.  O guia, até então face cerrada, sorriu, apontou o pássaro cortando o céu.

Com alegria, disse: Hórus (*).

 

(*) Deus Solar, filho de Osíris e Ísis, representado por um falcão.