Botswana, Foto T.Abritta, 2008

segunda-feira, 26 de maio de 2014

A Fauna Perdida de Wadi Rum


Se você envolver-se com a viagem, você chegará.
Ibn Arabi (1165-1240).

          A picape 4x4 rodava macio no silêncio daquele tapete infinito de areias vermelhas.  Majestosa paisagem.  Aqui e ali, pilares montanhosos erguiam-se a mais de mil metros de altura.
          Serpenteando nos estreitos desfiladeiros, observávamos gigantescas paredes de rochas em camadas coloridas, como páginas de imenso livro geológico narrando capítulos de milhões de anos.
          Na sinfonia de ecos, vibrando nas estreitas fendas, o ruído do olho d’água brotando das pedras.  Ao lado, contrastando com o ocre das areias, pequenas flores amarelas colorindo o deserto.  Dezenas de pássaros em revoada nos saudavam. 
          Olhos fechados, tentávamos ver o inexistente.  Onde estavam os animais que por aqui habitavam? 
          A fauna se foi, caçada, morta, violentada por guerras e conflitos entre os que por aqui passaram.  Mas suas marcas ficaram talhadas na pedra por hábeis mãos humanas.
          Diante de imenso paredão rochoso, a surpresa: magníficos painéis de inscrições rupestres (1).  Verdadeira viagem no tempo.  Um retorno aos tempos bíblicos (2), chegando a mais de mil anos antes de nossa era.  Lá estava a fauna perdida do Deserto de Wadi Rum na Jordânia, perto da fronteira com a Arábia Saudita.  Animais e homens lutando pela vida.
          O primeiro painel, a uma altura de uns quinze metros, é mostrado na Figura 1.  À sua esquerda, podemos observar uma cena de luta entre dois guerreiros, armados com espadas e escudos, e dois leões.  A cena é acompanhada por um cavaleiro, o que pode ser observado melhor no detalhe apresentado na Figura 2.  As feras parecem ameaçar um bando de gazelas que se espalham pela área representada no painel.  No canto inferior à esquerda, ainda podemos “ver” dois pequenos animais, provavelmente raposas do deserto.  À direita, observamos um texto com características da escrita árabe primitiva.
          Os outros dois painéis estão a uma altura de uns cinco metros.  No primeiro destes (V. Figura 3), testemunhamos três cavaleiros caçando um bando de óryxes (espécie de antílope das areias, atualmente existente nos desertos da Namíbia) (3)
          O terceiro painel (V. Figura 4) também representa um bando de óryxes, agora caçados por um jaguar (ver centro) e um caçador armado de arco e flecha (ver pequena figura à direita).  O jaguar é identificado pelas manchas na pelagem e sua boca de fera semelhante a dos leões).
Saímos desta remota era com estampidos de tiros que perfuram as graciosas figuras.  Chegamos à Primeira Guerra Mundial – ano de 1916.  Tropas britânicas, que invadiram a região sob a orientação de T. E. Lawrence, treinam a pontaria antes de combater os exércitos turcos.
Alguns também aproveitam para conspurcar estas maravilhas, talhando na rocha as iniciais “A N”. 
Fim do domínio turco, início do império colonial britânico. 

          Com o sol caindo entre as montanhas, o avermelhado do céu confundindo-se com o colorido das areias, iniciamos o retorno.
          No caminho um tropel de camelos.  Pouco adiante, um viajante perdido, com o jipe atolado nas areias macias, sendo socorrido pela caravana – encontro da tradição com a modernidade.

Notas:
1. Feitas provavelmente pelos primitivos Nabateus, povo árabe que ocupou esta região.
2. No Velho Testamento, tempo dos Patriarcas, segundo milênio antes de Cristo, podemos observar inúmeras menções à fauna existente no Oriente Médio.  Por exemplo: leão e urso em Samuel 17.34-37; leões em Daniel 6.1-23; lobo, leopardo e leão em Isaías 11.6-7; chacais e avestruzes em Jó 30.29 etc. 
É também importante observar que os camelos ainda não eram domesticados nos tempos dos Patriarcas – segundo milênio antes de Cristo.  A menção deste animal nestas épocas é um erro histórico, mostrando que a Bíblia foi escrita anos depois dos fatos narrados.  Os camelos primitivos eram menores, patas mais frágeis, sendo apenas caçados para alimentação.  A domesticação deste animal, com sua seleção e uso nas caravanas, deu-se plenamente no século VII A.C.  Tais conclusões são suportadas por datações de ossos usando técnicas de rádio carbono.
3. Outros animais existentes nestas regiões e que possuem longos chifres curvos para trás, são os íbexes ou cabras monteses.  Mas são muito dependentes de água, vivendo em rochas perto de fontes e não em campo aberto como os óryxes.
- O Governo da Jordânia criou diversas reservas, onde óryxes e outros animais são protegidos, para posteriormente serem reintroduzidos em outros habitats naturais.


Figura 1 – Inscrições Rupestres. Deserto de Wadi Rum, Jordânia.
Foto T.Abritta, 2014.


Figura 2 – Inscrições Rupestres (detalhe da Figura 1),
Deserto de Wadi Rum. Foto T.Abritta, 2014.


Figura 3 – Inscrições Rupestres. Deserto de Wadi Rum, Jordânia.
Foto T.Abritta, 2014.



Figura 4 – Inscrições Rupestres. Deserto de Wadi Rum, Jordânia.
Foto T.Abritta, 2014.