Botswana, Foto T.Abritta, 2008

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Um Cântico para Leibowitz



          Nestes estranhos tempos, onde a burrice e a ignorância tentam se impor contra a Ciência, Cultura, Artes e Progresso Social; nestes sombrios tempos onde falam, sem nenhum constrangimento, na Terra Plana, no Criacionismo, Horóscopo e por aí vamos como sendo as novas Verdades Inquestionáveis. Que tal nos salvarmos desta maré negra, onde aquecimento global, igualdade racial, redistribuição de renda etc., viraram “coisas de comunistas”?
          Fico impressionado como tantos simplesmente não são capazes de entender mais do que meia dúzia de palavras e tampouco formular uma ideia.  Apenas atacam o que não gostam, dentro dos princípios pétreos de suas “seitas”, com grosserias ou palavras ininteligíveis.  Se o comentarista é um letrado, identificam-no logo como um subversivo que não deve ser tolerado e sim desqualificado com qualquer besteirol. 
          Mas o mínimo que podemos fazer é prestigiar os livros, a leitura e a escrita.  Neste sentido lembrei-me de duas publicações que muito impressionaram minha geração.
          O primeiro, 1984, do autor inglês George Orwell, lançado em 1949, descreve os horrores de um totalitarismo radical, onde todos são vigiados por uma teletela, presente em todos lugares pelo hipotético governante chamado de Grande Irmão.  Os ministérios têm nomes estranhos, como Ministério da Verdade, da Paz e da Liberdade.  O lema do segundo ministério é Guerra é Paz e do último, Liberdade é Escravidão.  Outra prática deste regime é a Novilingua, onde palavras são reduzidas ao mínimo e substituídas por ideias reduzidas a um termo, como, por exemplo, crimideia que significa que o indivíduo tem que se auto reprimir de qualquer traço de especulação ou questionamento.  Orwell previu em 1949, depois dos horrores da segunda guerra mundial, que isto aconteceria em 1984.  Mas com grande atraso vemos chegar traços desta sociedade ao nosso Brasil do séc. XXI. 
          Não tolerar qualquer crítica e desqualificá-la como comunista, não seria uma crimideia?  E a reforma ministerial para 2019, com o desmerecimento de Ministérios importantes como Meio Ambiente e Cultura?  Não seria um começo para a criação do Ministério da Verdade? 
          O segundo livro que me lembrei foi Um Cântico para Leibowitz, escrito em 1959 pelo americano Walter M. Miller, Jr.  Neste livro é descrita a humanidade no Séc. XXX após uma guerra nuclear que praticamente acabou com qualquer vestígio de civilização.
Explosão Nuclear


          Os poucos sobreviventes passaram a perseguir cientistas e qualquer pessoa com um mínimo de cultura, considerando-os culpados pela tecnologia nuclear que acabou com a Humanidade.  Livros e qualquer obra elaborada pelo homem eram sistematicamente destruídos. 
          Escondidos em mosteiros, foram ressuscitados os monges copistas que reproduziam, mesmo sem saber o significado, qualquer fragmento de documentos e até desenhavam plantas de circuitos elétricos que encontravam. 
          O desprestígio de qualquer tipo de conhecimento, incêndios em museus e a retórica contra qualquer pessoa considerada intelectual não mostra uma volta para a Idade Média?

          Apavorante, não, caro leitor?  Mas, foi o mínimo que consegui escrever nesta triste tarde chuvosa...
          Perdoem-me pelo catastrofismo, lembrando que ontem, pelo calendário Maia, foi o Dia do Perdão e do Pecado!

Rio, 7 de dezembro de 2018




quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Floresta Fossilizada no Ceará



          Há alguns anos fiz uma viagem de jipe, de Natal a Fortaleza, sempre seguindo pelas praias.  Em uma das praias cearenses passamos por uma grande floresta petrificada que ia sendo escavada pelas ondas do mar.  É fato que assistimos a uma elevação do nível dos oceanos, que no litoral nordestino tem sido mais pronunciado, destruindo calçamentos e prédios, construídos muitas vezes ilegalmente, junto da orla marítima e até sobre as areias das praias. 
          Neste caso podemos imaginar, que as gigantescas dunas que se deslocam ao sabor dos ventos, cobriram esta floresta, avançando sobre o mar em um passado remoto.  Com a falta de oxigenação, a matéria orgânica não se decompôs, sendo petrificada.  Ou seja, substituída por minerais. 
          Na figura abaixo mostro uma amostra desta floresta petrificada, com dimensões máximas de uns vinte centímetros, que colhi no local.  Notem que a madeira não existe mais. O que vemos é o seu modelo tridimensional mineralizado. 
          Infelizmente não conheço estudos sobre esta floresta, que poderiam resultar em dados multidisciplinares, de interesse da Geologia, Climatologia e Botânica. 

Foto T.Abritta.


segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Delírios Tropicais: Índios, Caboclos, Cajus e Antas



          Por ocasião das comemorações do bicentenário da chegada da família real portuguesa à nossa terrinha, no ano de 2008, a cidade do Rio de Janeiro foi tomada por exposições de desenhos, pinturas e fotografias que documentavam o Brasil colonial e imperial.  Ao visitar uma destas exposições chamou minha atenção uma aquarela de Thomas Ender – artista austríaco que retratou o Brasil entre 1817 e 1818. 
          A aquarela tinha como título: Fruta do cocoFolha de caxueira (cajueiro), que foi traduzido das anotações na sua parte superior e inferior. 


Figura 1 – Aquarela de Thomas Ender:

Fruta do cocoFolha de caxueira (cajueiro)

          Neste desenho (V. Figura 1) foi colocada a imagem de um coco completo e outra com um corte transversal para mostrar o seu interior, acompanhando as folhas do cajueiro.  Provavelmente, Thomas Ender visitou o nordeste fora da época da colheita deste fruto, que vai de junho a dezembro, e não encontrou cajus como modelos para seus desenhos
          Como cada informação deve ser examinada com muita atenção, resolvi fazer alguns experimentos e sai por procurando cajus fora de sua época de colheitaDepois de muita procura uma loja de sucos me forneceu alguns, que guardava no refrigerador apenas para a decoração de seus balcões.  Fiz uma montagem com os frutos e aproximadamente dois séculos depois apresento (V. Figura 2) uma fotografia equivalente à aquarela que Thomas Ender deixou de fazer


Figura 2 – A beleza dos cajus.  Foto T. Abritta.

          Agora vem a pergunta: e daí?  Para responder a esta indagação temos de sair do mundo dos experimentos concretos com cajus e entrar no universo da especulação
          Em uma época em que a Flora Brasiliensis encantava artistas e naturalistas, que saiam por , como Von Martius (1794-1868), registrando em detalhes palmeiras, araucárias, para não falar na Musa paradisíaca, a nossa popular bananeira, não seria estranho deixar de registrar o encanto do caju?  Provavelmente os caboclos tentaram enganar Thomas Ender, fornecendo cocos no lugar de cajus.  As anotações na aquarela, mostram que a fraude parece ter sido descoberta a tempo, mas o resultado foi uma obra sem nenhum encanto
          Para mim, este foi caso flagrante do chamado “jeitinho brasileiro”, que não passa de um crime de estelionato, tão comum em nossa terraQuando os espertalhões são descobertos em suas falcatruas, simplesmente declaram ignorância e são sempre perdoados. 
          Diante disto seria interessante fazer uma análise histórica, sob enfoque não acadêmico, através um prisma do “nunca antes neste país”, ou que rompesse as cangalhas do “politicamente correto”.  Afinal, no poço em que se encontra a sociedade brasileira, talvez conhecendo as origens de certos costumes possa mudar para melhor

As Amazonas e os Fósseis
          Este encantamento pela natureza, clima e povo brasileiro teve vários exemplos.  Alguns, como diríamos, radicais, como o do dinamarquês Peter Lund, considerado o pai da paleontologia brasileira.  Lund veio jovem para nossa terra, vivendo aqui por cinqüenta e cinco anos, de 1825 a 1880, fazendo estudos científicos nas províncias do Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e finalmente Minas Gerais, onde ficou maravilhado com as grutas e fósseis da região de Lagoa Santa
          Mas não era apenas a exuberância brasileira, com suas possibilidades de estudo científico, que encantou os nossos visitantes.  Alguns acabavam iludidos por histórias de realidades fantásticas e seres míticos – curupira, boto-encantado, cobra-grande e mapinguari – contadas por índios e caboclos, em busca de ganhos monetários.

          Em 1735 partiu para o istmo do Panamá uma expedição chefiada por Charles-Marie de La Condamine, ex-soldado e explorador, um apaixonado pela química e a geodésica, e membro da Academia de Ciências da França.  Os expedicionários pertenciam a uma elite cientifica de matemáticos, astrônomos, geógrafos, médicos, naturalistas, engenheiros e técnicos e tinham como missão fazer medidas da gravidade terrestre e, sob a linha do equador, o comprimento de um arco de meridiano equivalente a um grauPouco tempo depois partiu para a Lapônia, próxima do pólo norte, uma outra expedição com os mesmos objetivos.  A comparação dos resultados permitiu mostrar que a Terra era achatada nos pólos, conforme a Teoria da Gravitação, de Newton
          A segunda expedição retornou um mês depois, mas La Condamine levou 10 anos para retornarApós chegar por terra a Quito, onde amargou meses de prisão acusado de espionagem, Condamine ficou fascinado com o mito das Amazonas – as mulheres guerreiras – e resolveu encontrá-las, sendo o primeiro cientista a fazer a viagem completa pelo rio Amazonas em toscas balsas, dos contrafortes dos Andes até o oceano AtlânticoDurante meses os caboclos, índios e ribeirinhos amazônicos tiraram vantagens dos expedicionários com histórias das mitológicas guerreiras.  Mas o saldo científico desta viagem acabou, felizmente, sendo positivo, apesar das mortes, sofrimentos e dificuldades encontradas – no fim da expedição, por exemplo, passaram sete meses perdidos entre igarapés, pântanos e braços de mar no retorno para a Guiana. 

Sexo, Inocência e Voyeurismo
          Para aqueles que passam horas na frente de uma televisão, praticando uma espécie de voyeurismo eletrônico – mas sempre falando de uma suposta permissividade dos costumes e da moral em nossos dias, em oposição a uma pureza e inocência do passado – lembramos que os índios, mesmo andando completamente nus, deixaram registros históricos de práticas voyeurísticas em plena selva
          Em 1899, o naturalista Henri Coudreau acompanhado de sua esposa, também naturalista, Mme. Coudreau, após percorrer durante meses rios paraenses, encontra a morte às margens do Rio Trombetas.  Mostrando uma grande coragem, mesmo desolada com a perda do marido, Mme. Coudreau continua a excursão pelo Rio Cuminá, onde, em um tenso encontro com os índios da região, teve que tirar parte de suas roupas e mostrar os seios em troca de sua vida.  O mais incrível nesta história toda é que, anos depois, em 1925, uma excursão liderada pelo geólogo Avelino de Oliveira e Picanço Diniz, ao encontrar um grupo de índios Pianocotó, na mesma região, fizeram contato verbal usando como intérprete uma índia “domesticada” falando o dialeto caxinauá.  Os índios, ao verem uma mulher aparentemente branca, que vestia roupas, fugiram apavorados, exceto um jovem nativo que ordenou, na língua comum, que ela mostrasse os seios e, a vista destes, abaixou o arco abandonando a atitude hostilAqui cabem algumas considerações: será que a atitude desse índio é baseada em conhecimento do mesmo fato anterior através uma tradição oralOu cabe aqui a teoria do inconsciente coletivo de Jung?  Ou será que esta prática voyeurística de alguma maneira está relacionada com o trabalho de catequese do Padre Nicolino, que percorreu esta região por mais de vinte anos em três sucessivas expedições no final do século XIX?  Afinal de contas o princípio básico de qualquer catequese religiosa é a destruição da religião, da moral e dos costumes do povo a ser dominado. 



Destruição do Patrimônio Cultural
          Em 1928 o General Rondon também explorou os Rios Trombetas e Cuminá, documentando não a fauna, flora e as culturas locais, como inscrições rupestres e petroglifos encontrados.  Na Figura 3, mostramos o registro fotográfico, feito por esta expedição, de uma pedra na Cachoeira do Resplendor, no Rio Cuminá, onde, ladeado por duas inscrições indígenas, o grupo do Padre Nicolino deixou, entalhado na pedra, a inscrição “VENIT 1887” (não muito legível nesta fotografia), e logo abaixo podemos observar a inscrição “DINIZ AVELINO 1925”, deixada pela expedição Diniz que comentamos acimaAqui, o General Rondon lega-nos um dos primeiros registros históricos da destruição de um patrimônio arqueológico patrocinada pela Igreja Católica e pelo governo do Pará responsável pela expedição Diniz-Avelino. 



Figura 3 – Destruição de petroglifos indígenas na
Cachoeira do Resplendor, Rio Cuminá – Pará.  Índios do Brasil vol. III, Cândido Mariano da Silva Rondon – Conselho Nacional de Proteção aos Índios, Ministério da Agricultura, Rio de Janeiro, DF, Brasil – 1953.

Antas e Racismo
          Parece que ainda não falamos das antasMas este singelo animal está relacionado a uma das evidências pseudocientíficas da origem do racismo e da superioridade racial dos descendentes de europeus em nosso país
          Assim como hoje – quando este esforço anti-científico tenta condenar as pesquisas com células tronco embrionárias – logo após a descoberta da América, o conhecimento de povos não mencionados na Bíblia era uma ameaça ao poder e domínio de grupos religiososMuitos simplesmente passaram a considerar os índios como animais não humanos.  A pequena tromba da anta (V. Figura 4) foi o exemplo utilizado para mostrar que se tratava de um mundo inferior, em um estágio primitivo, tanto que a anta não tinha chegado ao desenvolvimento do elefante com sua enorme trombaPara reforçar a teoria deste mundo inferior, ainda tinham as doenças tropicais e mosquitosApós séculos, estas idéias ainda são usadas para condenar o povo e absolver os governantes por suas incúrias


Figura 4 – Noturnos da Anta.  Alta Floresta, MT.  Foto T.Abritta

          E aqui fica uma modesta contribuição para outras visões de nossa História, que pode ser perdoada em seus exageros especulativos pelas palavras do Professor Abdias – personagem do romance Abdias de Cyro dos Anjos:

          ...mas que são a história, a filosofia, senão outras tantas ficções, e talvez mais ousadas, porque se presumem de alicerçadas no real?

Publicado no livro Cidades de Memórias