Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quinta-feira, 14 de abril de 2016

A última maca

Intervenção digital em radiografia. T.Abritta.

...no metálico rolar, a trepidação era afago final.  Longa viagem.  Corredores labirínticos intermináveis.  O oxigênio me fugia, tal a rima ao poeta.  Palavras diferentes.  Letras repetidas.  Sonoridades de nota só.  Sons aprisionados, vibrações amortecidas em rígidas cordas de aço.  Nos delírios respiratórios, duras mãos, ossificados dedos, inexistentes unhas vermelhas, teclando palavras mortas nos teclados da imaginação que não brilham mais nos pixels da iluminação, nem iluminam o fosco opaco do cansado cristalino.  Na escuridão, vultos felinos, lânguidas criaturas, afiam garras de sedução.  Inútil esforço.  Vã tentativa em atenuar, na ilusão, o terror do coma induzido para respiração.  O desconhecido: será como um sonho, o não pensar deste falso respirar?  A maca chega.  É o final.  Perco a dimensão na estranha sensação do girar espacial.  Agarro-me a uma ilusória ópera de rua.  Atores sumindo, dança cada vez mais lenta, música afastando-se.  Doce música.  Brilhará até o fim da transitória noite escura?  E depois, quando o nada triunfar sobre o mecânico pulsar?


sábado, 2 de abril de 2016

Paraísos Perdidos: Reinos do Tibet e do Nepal


          Agora chegamos a última crônica desta série sobre os paraísos perdidos do Himalaia, visitando os reinos do Tibet e Nepal.
Os visitantes do Tibet normalmente ficam encantados com a beleza de sua natureza e a grandiosidade de seus palácios e templos, principalmente com o gigantesco Potala, centro político e espiritual, no alto de uma colina no centro da capital Lhasa (V. figura 1), de onde reinava o Dalai Lama, em uma verdadeira “Cidade Proibidapara o povoMas, como observou Mario Vargas Llosa falando sobre viagens e seus lugares preferidos no mundo, não se pode entender uma sociedade e um país se não se interessar minimamente por sua problemática políticaAssim procurei ver o que normalmente não é visto, com os olhos insuspeitos de uma pessoa que, para lembrar a idade da esposa, tem que associar a sua data de nascimento ao ano da Revolução Chinesa. 


Figura 1 – O gigantesco Potala no centro de Lhasa.  Foto T.Abritta, 2007.

          O Tibet, antes da invasão chinesa na década de 50, era um reino teocrático onde o Dalai Lama reinava absoluto, com o povo vivendo em um sistema medieval, pagando tributos e enviando alimentos para os monastérios, verdadeiras cidades, como o Monastério de Ganden com dois mil monges e Drepung, o maior de todos, com dez mil monges
          Os chineses chamam a invasão do Tibet de libertação, mas na realidade substituíram o poder medieval do Dalai Lama por um sistema de apartheid, onde os tibetanos são sistematicamente eliminados, expulsos de seu próprio país e têm a sua cultura destruída, para serem substituídos por uma massa chinesa passiva e bem comportada.  Hoje, esta política reduziu drasticamente a população tibetana – já é menos da metade da chinesa – neste país chamado eufemisticamente de “Território Autônomo do Tibet”.  Neste massacre físico e cultural, os tibetanos são considerados seres inferiores, diante da suposta superioridade racial chinesa.  Nas escolas se ensina o mandarim.  Todas as oportunidades de emprego, como cargos públicos e até um simples alvará para a abertura de um comércio, contemplam prioritariamente os cidadãos chineses.  Este governo de ocupação legisla até no mundo sobrenatural, com a “Regulamentação Nacional Chinesa sobre Assuntos Religiosos”, que determina qual é o Lama que vai encarnar o supremo Dalai Lama após sua morte.  O interessante é que o governo de Pequim escolhe também os bispos católicos e o Vaticano simplesmente se cala, em um pragmatismo político que rasga princípios éticos que deveriam ser inegociáveis

Destruição cultural e monges drogados
          Na chegada ao aeroporto de Lhasa, todo o esplendor da paisagem se dissipa com a estrutura militarista de recepção.  No caminho para a capital levamos aproximadamente uma hora, percorrendo uma estrada ladeada de instalações militares, que, ao longo do seu percurso, vai destruindo a paisagem, cortando montanhas e aterrando lagos, dando uma amostra da “modernização chinesa”, onde impera o mau gosto, o desrespeito ambiental e o desprezo a qualquer valor cultural, em um culto absoluto ao lucro fácil.
          Um pouco antes da chegada, paramos para ver uma enorme estátua de Buda talhada na encosta de um rochedo no séc. XI (V. figura 2).  A visão do monumento foi chocante.  Assim como as duas estátuas gigantes de Buda no Afeganistão – Os Budas de Bamiyan – foram destruídas, por aqui os chineses cobriram todos os resquícios da pintura original com uma “restauração do tipo alegoria de escola de samba”, num grande atentado cultural, ao gosto de uma mentalidade modernista simplória, onde tudo deve estar tinindo de novo para agradar ao turismo de massa.


Figura 2 – Estátua de Buda talhada em um rochedo no séc. XI. 
Foto T.Abritta, 2007.

          Mas outras grandes surpresas ainda nos aguardavam, como a entrada em Lhasa, transformada em uma mistura de cidade americana brega com o bairro oriental de São Francisco, com fachadas douradas, muito plástico e mau gosto por todos os lados
          Dentro desse festival de surpresas, ficamos também conhecendo os monges-funcionários-públicos que administram o Norbulingka, antigo palácio de verão dos Dalai Lamas – vestiam-se de monges budistas e para passar o tempo eram muito criativos.  Misturavam haxixe com incenso, conseguindo não espantar os visitantes com uma fedentina insuportável, como chegar aos seusnirvanas” cantarolando com olhos vermelhos e ares imbecilizados.  Um dos supostos monges estava tão drogado que resolveu usar um aspirador de para encerrar o expediente mais cedo com a barulhada que fazia.

A Igreja Universal chinesa
           A nossaperegrinação” continuou visitando o Jokhang, um dos templos mais sagrados do budismo tibetano, restaurado às pressas naquele estiloalegoria de escola de samba” e transformado em uma espécie de Disneylândia chinesa.  Na entrada do templo havia um estacionamento para os luxuosos automóveis das autoridades chinesas, e as massas de turistas tinham que se esgueirar entre os carros, tal bando de zumbis seguindo guias com bandeirinhas coloridas que vão gritando informações e fazendo o circuito da visita, parando em alguns pontos para fotografias, como se fosse a esteira rolante de uma fábrica.  As paredes do templo são cobertas de dinheiro, e por todos os lados observamos cofres para as doações, que são recolhidas constantemente e levadas para uma pequena sala onde o dinheiro é contado e ensacado (V. figura 3).
A fé popular gerando lucros para o capitalismo chinês.


Figura 3 – Montanhas e sacos de dinheiro “recolhidos” como bilhete para o Nirvana chinês.  Foto T.Abritta, 2007.

          No final do dia as bilheterias deste circo são fechadas e assistimos a uma cena de cortar o coração, com a chegada de centenas de peregrinos tibetanos com roupas típicas, mostrando a enorme diversidade cultural que Pequim quer apagar da HistóriaNos arredores do templo fica o quarteirão da rua Barkhor, ainda não destruído, onde podemos viver um pouco do verdadeiro Tibet, tomar uma bebida local – horroroso chá misturado com manteiga de yak – e refletir que a luta do povo tibetano deve ser inserida em um processo mais amplo de autodeterminação dos povos, como os curdos, palestinos, armênios e todos aqueles massacrados neste mundo, desde os beduínos em Israel aos afegãos estraçalhados pelos bombardeios da OTAN.  A visão de um grupo de Khampas, com seus cabelos envoltos em vermelha (V. figura 4), reforça esta idéiaPor que não reivindicar a criação do país Kham e de outros que formariam uma federação tibetana?  Afinal de contas, conforme o Zen Budismo, O caminho do meio está onde nãonem meio nem dois lados, aqui formados pela opressão de Pequim e pelo antigo regime medieval dos Dalai Lama.


Figura 4 – Um grupo de Khampas, um povo altivo e guerreiro
que habita a região Kham.  Foto T.Abritta, 2007.

O Reino do Nepal
          Em Kathmandu, no Nepal, terminei esta longa viagem nostálgica, jantando no restaurante Kilroy`s, tendo ao meu lado uma mesa posta com todos os requintes reais (V. figura 5), aguardando, desde 2001, a volta para jantar em seu lugar preferido, do Rei Birendra e da Rainha Aishwarya, assassinados por seu filho, o Príncipe Dipendra, que se suicidou como em uma tragédia grega, marcando o encontro da tradição oriental com o ocidente, representado pela fria face do capitalismo, que não consegue melhorar a vida desses povos, trazendo apenas desgraças e pobreza para a maioria e riquezas para poucos

Figura 5 – Restaurante Kilroy`s, Kathmandu.  Foto T.Abritta, 2007.




Paraísos Perdidos: Reino do Butão


          A História do Reino do Butão aos pés do Himalaia, espremido entre dois gigantes – Índia e China – vem de tempos imemoriais.  Diz a tradição que o pequeno reino foi dominado pelo demônio, tendo sido libertado pelo legendário Guru Rimpoche que o converteu ao Budismo.  Os primeiros europeus a visitar estas terras foram os Jesuítas Portugueses Cacella e Cabral, em 1627, que como bons religiosos sempre procuravam rendosos negócios.
O país permaneceu como um Estado Teocrático até 1907, quando os principais Lamas resolveram escolher um rei. Com o título de “Rei do Dragão” iniciou-se uma monarquia hereditária que está atualmente no seu quarto representante, o atual rei Jigme Singye Wangchuck.  Este governante anunciou na época que abdicaria do trono em favor de um de seus filhos e transformaria o país em monarquia constitucional, elegendo uma assembleia constituinteMas a força do poder real vem da religião, com uma verdadeira multidão de monges – calculada em quinze mil – sustentada pelo governo e vivendo em imensos mosteiros e palácios.
Quando conhecemos o esplendor do reino budista terreno, passamos a acreditar em algum poder mágico, que nãopara imaginar a fonte de recursos para a sua construção e sustento, arrancada de pobres camponeses.  Ainda hoje, noventa por cento da população do Butão (aproximadamente setecentos mil habitantes), vive da prática da agricultura de subsistência.  O governo falava em um Índice de Felicidade Interna Bruta, em substituição ao índice que mede o produto interno bruto, mas que na realidade apenas reflete o controle da população pela coerção religiosa e falta de informaçãoPelo sim pelo não, uma droga muito comum por aqui, principalmente entre as pessoas mais idosas, é uma espécie de noz que após ser triturada é envolvida por uma folha de um vegetal chamado betel; mascada, produz efeitos alucinógenos, mas causa como efeito colateral uma gengivite crônica que afeta boa parte da população

A face colorida do Butão
          Para os estrangeiros as únicas entradas para este reino são ou por via aérea, pelo único aeroporto do país na cidade de Paro, ou por via terrestre saindo da cidade indiana de Jaigaon que faz fronteira com a cidade butanesa de Phuentsholing, uma espécie de zona franca de fronteira, onde comerciantes indianos, árabes e do mundo inteiro espalham uma imundície indescritível vendendo suas mercadorias.
Ao sairmos da cidade, começamos a gostar do Butão, com seus rios cristalinos, florestas e um povo receptivo que tem orgulho de vestir roupas típicas e grande prazer em convidar para conhecer suas casas.
Chega-se à capital do país, Thimphu, a cento e oitenta quilômetros da fronteira, por uma estrada precária que acompanha vales de rios maravilhosos, viajando por alturas que causam arrepios cada vez que os carros e caminhões se encontram e têm que se espremer entre os abismos e paredões para as complicadas manobras de ultrapassagem que às vezes levam minutos
          Ao chegar a Thimphu, voltamos no tempo: arquitetura típica, pessoas trajando roupas locais, sem sinais de trânsito, onde não existem sacos plásticos e ninguém fuma em lugares públicos.  O ar medieval é acentuado quando conhecemos um pouco da história em que o atual rei, mesmo com uma educação europeia, casou-se com quatro irmãs, no mesmo dia e em uma única cerimônia.  Outo acontecimento fantástico foi participar de uma grande festa cívica e religiosa no Trashi Chhoe Dzong, um complexo de templos budistas, palácio real e sede administrativa do governo.  Estava presente a família real, todas as pessoas importantes da sociedade e do clero, e o povo vestido com suas melhores roupas como em uma verdadeira ópera gigantesca, com muito incenso e rufar de tambores (V. figura 1).


Figura 1 – Cerimônia no Palácio Real em Thimphu.  Foto T.Abritta, 2007.

          Na saída da família real todos abaixaram as cabeças, o rei passou célere sem olhar para os lados, mas as duas irmãs, rainhas mais velhas, não resistiram em nos olhar e sorrir, ao que respondi com uma piscadela discreta para não quebrar o protocolo.
          O Butão tem mais de setenta por cento de seu território coberto por florestas, e mais da quarta parte do país protegida por parques nacionaisNos últimos anos seu monarca iniciou um processo de modernização.  As transmissões de televisão via satélite chegaram em 1999 e posteriormente os telefones celulares e a Internet.  Neste processo tem sido dada grande importância à saúde pública, educação (V. figura 2), melhoria de estradas e comunicações, sem descuidar da política de preservação da natureza e cultura.
          A renda para o desenvolvimento do país vem do turismo, com a construção de luxuosos hotéis de cadeias internacionais, da venda de energia elétrica para a Índia, o que representa trinta e dois por cento da arrecadação governamental, e da extração madeireira.

Figura 2 – Escolares butaneses com os seus belos uniformes.
Foto T.Abritta, 2007.

A face negra do Butão
          Infelizmente, o pequeno Reino do Butão, no seu processo de desenvolvimento, torna-se cada vez mais refém da Índia, que compra sua energia elétrica, destrói florestas com a extração madeireira, fornece técnicos, professores e segurança militar.  O Butão resiste, mas a Índia, como a China, tem que exportar parte de seu povo para aliviar a explosão populacional.  No Butão existem atualmente 50 mil trabalhadores indianos na condição de empregados temporários na construção de estradas e trabalhos braçais, fora os técnicos mais especializados, necessários para a modernização do país.
          Nos trabalhos de melhoria das estradas, feitos pelo Exército Indiano, são empregadas milhares de mulheres que trabalham quebrando pedras, carregando terra em cestos, praticamente fazendo tudo com as mãos sem ferramentas ou recursos técnicos.  Trabalham em regime de quase escravidão, vigiadas por militares indianos armados, algumas carregando crianças nas costas, cozinhando e vivendo na lama e chuva (V. figuras 3 e 4).  No final do dia cruzamos nas estradas com aqueles sinistros comboios de caminhões, militares indianos armados sentados nos tetos e nos estribos, levando mulheres amontoadas como gado, que nos acenam tristemente com mãos feridas e enroladas por trapos, a caminho para uma espécie de campo de concentração onde dormem.


Figura 3 – Trabalhadoras indianas no Butão.  Foto T.Abritta, 2007.

          Paradoxalmente, nos campos de trabalhadores masculinos faltam mulheres, sendo comum a formação de casais homossexuais que se acariciam no meio da lama nos breves momentos de descanso.
          Os indianos não têm em suas construções nenhuma preocupação com o meio ambiente, e as estradas são alargadas jogando em rios intocados todo o entulho, manchando a natureza de lama, óleo e lixo.
          Parece que o chamado milagre econômico indiano no fundo significa lucros gigantescos para uma minoria e miséria para a maioria, com o desprezo pela dignidade humana com o uso de mão de obra escrava.



Figura 4 – Trabalhadoras indianas com toscas ferramentas e improvisações para compensar as limitações de sua fragilidade física.  Foto T.Abritta, 2007.

Santos e Demônios
          Após longo percurso por essa região, visitando dezenas de templos e palácios, tivemos apenas uma única oportunidade de encontrar um verdadeiro discípulo de Buda, que caminhava pela estrada, visitando amigos camponeses que conheceu nos seus oitenta anos de vidaEste verdadeiro monge tinha como bens materiais duas bolsas de pano.  Na primeira carregava algumas roupas, um cobertor, uma toalha, alguns pedaços de pão e pequenos objetos.  Na outra trazia dois pesados livros, com páginas soltas e escritas à mão em papel artesanal antigoApós conversarmos por gestos, deitou-se no chão para enfiar os braços nas alças das sacolas; pediu que o erguêssemos e despediu-se contente por ter ganhado uma maçã.
Depois desse encontro refleti e cheguei à conclusão de que uma espécie de santidade estava também nos milhões de pessoas que sofrem, lutando para sobreviver neste mundo de injustiças.
Por outro lado, parece que os demônios que atentavam Buda, oferecendo-lhe um reino material, tiveram grande sucesso, criando um mundo com tanta opressão e desigualdade.