Botswana, Foto T.Abritta, 2008

domingo, 12 de abril de 2015

Fora dos Trilhos


Será que vão roubar também o bonde e a estação?
Ou quem sabe, até o portão?
Na busca do voto fácil, cria-se o ladrão.  E depois?
Só acreditando naquela velha brincadeira, do fazendeiro mineiro que comprou um bonde na enganação.
Será que ele não seria a salvação?
Poderia reiniciar a plantação de bondes na estação.


Estação de Bondes de Santa Teresa, Rio de Janeiro-RJ.
Foto T.Abritta, 2011.




sexta-feira, 10 de abril de 2015

A Espinha de Peixe



          Bem cedinho – no inverno ainda escuro – o Capitão Serafim rumava para Anchieta.  Partindo da Gávea cortava Botafogo, mergulhava no Túnel Santa Bárbara e saía em domínios mais familiares, onde o reluzente Karmann Ghia rodava veloz e imponente, sempre atraindo os olhares femininos, para grande satisfação de nosso herói.  Quem sabe uma conquista matinal?  Com as durezas da vida militar, o tempo era sempre curto – melhor aproveitar as oportunidades.
          Quando voltava para casa, guardava sua preciosa viatura e parava para uma prosa com a rapaziada reunida na esquina:

          Pô, hoje uma carreta virou em Parada de Lucas...

          O Capitão era nosso vizinho de porta e muito considerado por meu pai:

          Um rapaz muito dedicado e estudioso.  Pouco mais de vinte e cinco anos e já é Capitão.  Em breve será Major.  Belo exemplo para nossa juventude.

          Nesta tarde todos esperavam a chegada do Capitão com certa preocupação:

          Estava até roxo quando foi para o hospital.  A espinha de peixe quase o matou!

          Mas logo logo, o ronco do Karmann Ghia, e Serafim cercado pela rapaziada para saber do acontecido:

          Vocês nem imaginam.  Ontem Luiza preparou um peixe para o jantar e, enquanto servia, contava os progressos de Lilica, filha de Dona Antônia:
          “Lilica é uma menina muito inteligente.  Uma das melhores alunas do Instituto de Educação.  Agora, Professora formada, está dando aula em Anchieta.”
          Eu já tinha dado uma garfada no peixe e quase engasguei.  Bem, em Anchieta tem duas escolas.  Poderia estar dando aula na outra.
          E Luiza continuava:
          “Nos dias de chuva ela deixa os sapatos na casa da mãe de um aluno e calça tamancos para caminhar no lamaçal que vai do ponto de ônibus até a escola.  Chegando lá, lava os pés e pega um chinelo emprestado.  Vida dura de Professora!”
          “Imagina como a garota é corajosa: não é que ela chamou na escola um tal de Tigrão e falou que se continuasse espancando o filho, que é um de seus alunos, iria dar parte na Delegacia?  O bandido ficou fininho, prometendo não mais bater no garoto.”

          Eu suava frio, o peixe não descia.  Mas o pior foi quando Luiza falou:

          “A escola é tão longe que, atravessando uma pontezinha, saímos do Estado da Guanabara e entramos em Olinda, Estado do Rio de Janeiro.”

          Foi demais.  A espinha de peixe atravessou na garganta...
          E agora, como posso visitar a Professora Claudete?  Quem vai mandar os soldados pintarem a escola?  E as goteiras do telhado?

          Após longas conversações os rapazes acharam que o jeito era Serafim “dar assistência” às duas escolas para não dar “na pinta”.  Dizem que foi até condecorado pela Secretária de Educação.

          Pouco tempo depois veio o golpe de 64 e as últimas pungentes palavras do nobre Capitão:

          Se não fosse a revolução, os de lá, da Rússia, comiam a gente aqui.

          Nunca mais vimos o Capitão Serafim.  Mudou-se na calada da noite e em pouco tempo virou Coronel.

          Um dia meu pai, lendo uma notícia no jornal, falou:

          Aquele Capitão agora dirige uma agência federal de torturadores.  Foi condecorado por relevantes serviços prestados.

          Nunca me enganei tanto com uma pessoa.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

na praia da noite escura


Não sei se sonhando
talvez insone pensando
Vênus deitava no horizonte.

As Três-Marias tão longe
no Zênite luziam.
Coração-Corpo-Alma.

Nas areias, uma fenda de espumas
em beijo molhado
quente brisa suspirou.

E o oceano estremeceu
rútilo rubro céu endureceu
no leito das verdes relvas de areias.


  
Mar Absoluto.  Óleo sobre tela, Humberto Carneiro Ribeiro, 2004.
Foto T.Abritta, 2005.

domingo, 5 de abril de 2015

Elegia a um Sapateiro

O Sapateiro. Foto T.Abritta, Rio de Janeiro, 1970.
Original em cromo colorido, restaurado fisicamente e digitalizado.

Diziam sapateiro, que as quatro letras faziam tipógrafo sagaz.
Pelo solo brasileiro vagou, de Pernambuco ao Rio de Janeiro.
O Livro da Sabedoria divulgou.

Maltratado, judiado, esquecido, definhou.
O fósforo só alumiou, o fogo levou.

Da locomotiva Salgado apitou.
João Capenga saudou.
Cachimbo a todos enfumaçou.

Neste final, apenas sonhou.
Salgado, lá do Balança, com seu boné de maquinista.
João Capenga, do Saneamento, o rouco apito da América Fabril.

O aroma de mama-cadela no fumo do Cachimbo.

Do Italiano, o trovão da Zündapp,
a doçura de sua música...bella ciao ciao ciao.

De seu Pernambuco,
o telizinho de Seu Ambrósio...

O cheiro de tinta gravando palavras:

          ...mal podemos conhecer o que há na Terra, e com muito custo compreender o que está ao alcance de nossas mãos; quem, portanto, investigará o que há nos céus?

Notas:
-As quatro letras: o b e d; depois o p e q.  Como tinham formas parecidas, confundiam os tipógrafos que trabalhavam com tipos móveis e tinham que montar as letras invertidas na placa de impressão.
-Telizinho: pequeno ateliê gráfico composto de prensa manual e caixa de tipos.
-Podemos ver um exemplar de uma destas prensas na Academia
  Brasileira de Literatura de Cordel, Rua Leopoldo Fróes, 37 - Santa Teresa,
  Rio de Janeiro-RJ.
-Zündapp: marca de motocicleta fabricada na Alemanha.
- Música citada: Bella Ciao, versão dos Partigianos que lutavam contra os
  Fascistas na Segunda Guerra Mundial.
  Escutar música no link: https://www.youtube.com/watch?v=4CI3lhyNKfo