Botswana, Foto T.Abritta, 2008

sexta-feira, 10 de abril de 2015

A Espinha de Peixe



          Bem cedinho – no inverno ainda escuro – o Capitão Serafim rumava para Anchieta.  Partindo da Gávea cortava Botafogo, mergulhava no Túnel Santa Bárbara e saía em domínios mais familiares, onde o reluzente Karmann Ghia rodava veloz e imponente, sempre atraindo os olhares femininos, para grande satisfação de nosso herói.  Quem sabe uma conquista matinal?  Com as durezas da vida militar, o tempo era sempre curto – melhor aproveitar as oportunidades.
          Quando voltava para casa, guardava sua preciosa viatura e parava para uma prosa com a rapaziada reunida na esquina:

          Pô, hoje uma carreta virou em Parada de Lucas...

          O Capitão era nosso vizinho de porta e muito considerado por meu pai:

          Um rapaz muito dedicado e estudioso.  Pouco mais de vinte e cinco anos e já é Capitão.  Em breve será Major.  Belo exemplo para nossa juventude.

          Nesta tarde todos esperavam a chegada do Capitão com certa preocupação:

          Estava até roxo quando foi para o hospital.  A espinha de peixe quase o matou!

          Mas logo logo, o ronco do Karmann Ghia, e Serafim cercado pela rapaziada para saber do acontecido:

          Vocês nem imaginam.  Ontem Luiza preparou um peixe para o jantar e, enquanto servia, contava os progressos de Lilica, filha de Dona Antônia:
          “Lilica é uma menina muito inteligente.  Uma das melhores alunas do Instituto de Educação.  Agora, Professora formada, está dando aula em Anchieta.”
          Eu já tinha dado uma garfada no peixe e quase engasguei.  Bem, em Anchieta tem duas escolas.  Poderia estar dando aula na outra.
          E Luiza continuava:
          “Nos dias de chuva ela deixa os sapatos na casa da mãe de um aluno e calça tamancos para caminhar no lamaçal que vai do ponto de ônibus até a escola.  Chegando lá, lava os pés e pega um chinelo emprestado.  Vida dura de Professora!”
          “Imagina como a garota é corajosa: não é que ela chamou na escola um tal de Tigrão e falou que se continuasse espancando o filho, que é um de seus alunos, iria dar parte na Delegacia?  O bandido ficou fininho, prometendo não mais bater no garoto.”

          Eu suava frio, o peixe não descia.  Mas o pior foi quando Luiza falou:

          “A escola é tão longe que, atravessando uma pontezinha, saímos do Estado da Guanabara e entramos em Olinda, Estado do Rio de Janeiro.”

          Foi demais.  A espinha de peixe atravessou na garganta...
          E agora, como posso visitar a Professora Claudete?  Quem vai mandar os soldados pintarem a escola?  E as goteiras do telhado?

          Após longas conversações os rapazes acharam que o jeito era Serafim “dar assistência” às duas escolas para não dar “na pinta”.  Dizem que foi até condecorado pela Secretária de Educação.

          Pouco tempo depois veio o golpe de 64 e as últimas pungentes palavras do nobre Capitão:

          Se não fosse a revolução, os de lá, da Rússia, comiam a gente aqui.

          Nunca mais vimos o Capitão Serafim.  Mudou-se na calada da noite e em pouco tempo virou Coronel.

          Um dia meu pai, lendo uma notícia no jornal, falou:

          Aquele Capitão agora dirige uma agência federal de torturadores.  Foi condecorado por relevantes serviços prestados.

          Nunca me enganei tanto com uma pessoa.

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