Botswana, Foto T.Abritta, 2008

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Viva Florença


          Florença é uma cidade de grandes emoções, onde o esplendor do patrimônio artístico e cultural permite que o passado invada suavemente o presente, mantendo vivas algumas das ideias mais significativas da humanidade.  Florença é Giotto, Masaccio, Botticelli, o azul de Fra Angélico, a grandiosidade de Michelangelo, a sabedoria de Maquiavel, a poesia de Dante, bem como o espírito empreendedor dos Médicis e de muitos outros que contribuíram para a construção do pensamento renascentista, criando uma nova consciência do próprio homem como centro e medida de todas as coisas.  Para penetrarmos na intimidade desta cidade, devemos ser cautelosos como Dante, conduzido pelas sábias mãos de Virgilio.  Devemos percorrer lentamente suas ruas, passear pelas margens do rio Arno, apreciar a graciosidade da ponte Vecchio, admirar a elegância e cortesia de seu povo, deliciar-nos com a culinária Toscana e assim ir descobrindo, pouco a pouco, os escritos em suas praças, monumentos, palácios, catedrais e dezenas de museus.

          Outra alternativa para penetrarmos em Florença é através de uma de suas portas mágicas, como por exemplo o afresco da Trindade, pintado por Masaccio por volta de 1427, na paróquia de Santa Maria Novella.  Os Florentinos desta época, não acostumados com a sensação de volume e tridimensionalidade criada pela perspectiva artística, devem certamente ter ficado maravilhados com o evento divino representado neste afresco, tão real como se estivesse acontecendo no interior de um nicho construído na parede da capela paroquial.  A pintura, neste estilo artístico, convida o espectador a participar da própria cena, lembrando-o de que a natureza não é simplesmente para ser copiada ou temida, e sim dominada pelo homem.

          Este espírito humanista reflete-se em vários aspectos da cultura florentina, sendo um de seus exemplos mais marcantes a catedral e o domo de Santa Maria del Fiore, que se recorta amplo e imponente no horizonte da cidade, como se estivesse cheio de ar, aparentando-se a um gigantesco guarda-sol aberto sobre o coração de Florença, projetando sua sombra protetora sobre uma comunidade de indivíduos livres, ao contrário das antigas catedrais medievais, onde o homem era reduzido a um mero ser temente a Deus.  A construção deste domo foi, antes de tudo, uma façanha de engenharia estrutural para a época, mostrando como a tecnologia pode ser impulsionada pelo puro humanismo.  Quando contemplavam a catedral, com todas suas partes em harmonia, desde o campanário de Giotto até o Domo de Brunelleschi, ou admiravam, a pouca distância, o maior de todos os cenários: a Piazza della Signoria, o Palazzo Vecchio – sede da municipalidade – e a loggia adjacente, os florentinos devem ter se sentido, indubitavelmente, membros de uma comunidade civilizada, onde a arte e a arquitetura refletiam as ideias e os objetivos da sociedade.  Não se pensava mais nas catedrais e agulhas sobre-humanas que se projetavam cada vez mais alto para o céu, nem nos castelos fortificados da nobreza medieval.  No lugar disto tudo, surge o simples espaço geométrico da praça citadina: pórticos abertos para o sol e, para admiração de quem passa, locais para desfiles, procissões, reuniões e comemorações sociais. 

          O desenvolvimento cultural de Florença contou com um grande aliado, que foi o crescimento econômico.  Em meados do século quinze, esta cidade possuía mais de duas centenas de oficinas especializadas em , fabricando também tecidos de seda, brocados de ouro e de prata, damasquins, veludos, cetins e tafetás.  A bela Florença possuía ainda, segundo um cronista da época, "trinta e três bancos sólidos, com balcão e tapete no exterior, que efetuavam operações cambiais e comerciais com vários lugares do mundo onde circulava a riqueza".  Florença permaneceu por longo tempo como a primeira praça bancária da Europa.  Os símbolos do poderio econômico foram imortalizados em grandes palácios e belas praças, que hoje podemos admirar como se entrássemos em um túnel do tempo.  Os palácios Davanzati, Médicis-Riccardi, Rucellai e Pitti, outrora serviam de residência e escritório de ricos mercadores e hoje acolhem os visitantes para contar-lhes um pouco da história desta cidade.

          A nossa chegada em Florença foi sutil e cautelosa, mas na partida usaremos os sólidos conhecimentos científicos de navegação astronômica, de conhecimento dos florentinosquase dois séculos antes das grandes viagens portuguesas pelas costas africanas e das precisas descrições feitas por Américo Vespúcio das constelações estelares observadas no hemisfério sul.  O caminho para este preciso retorno encontramos registrado poeticamente, em terza rima, nos versos da Divina Comédia (*):

 

                    À destra me volvi, e, bem à frente

                    Do polo austral, fitei as quatro estrelas,

                    não vistas mais que da primeva gente.

                                                                         (Purg. I, 22/24)

 

                    Após olhá-las, procurando o lado

                    de seu contrário polo, em cujo teto

                    não estava o Carro, deslocado,

                                                                         (Purg. I, 28/30)

 

          Nestes versos, Dante, ao emergir das profundezas do inferno, viu o céu pontilhado de estrelas e, de frente para o polo austral, fitou o Cruzeiro do Sul (as quatro estrelas) e ao virar-se para o seu polo contrário (polo norte), em seu retorno, observou que a constelação da Ursa Maior (O Carro) não estava deslocada, ou seja, começava a ser visível.  Aqui homenageamos não a ciência Florentina, como também o conjunto de conhecimentos que culminaram com a descoberta oficial da América.

          Como último adeus atravessaremos a Porta Romana e subiremos até a Praça Michelangelo, de onde teremos uma incomparável vista panorâmica de Florença.  Exatamente às doze horas assistiremos ao espetáculo ímpar, quando em todos os campanários os sinos repicam, transmitindo-nos a certeza de que, assim como esta cidade Toscana soube integrar seu patrimônio histórico e cultural à vida moderna, com grande atividade econômica, universidades e academias, ela muito contribuirá para as soluções dos problemas que afligem a nossa tão dilacerada humanidade deste início de século. 

 

Nota:

(*) Tradução de Cristiano Martins.

Foto T.Abritta.