Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Um Mundo de Imagens: “Photoshop” Analógico

Publicado no Montbläat em outubro de 2007.

          Finalmente, depois das dificuldades criadas pelas autoridades alfandegárias, que parecem não saber o que é uma obra de arte (*), foi inaugurada, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) a exposição Marilyn Monroe, O MitoSão apresentadas sessenta fotos assinadas pelo fotógrafo americano Bert Stern, que foram selecionadas de um conjunto de dois mil quinhentos e setenta e um fotogramas.  Este foi o último ensaio da atriz, seis semanas antes de sua trágica morte em 5 de agosto de 1962, aos trinta e seis anos de idade.  Por ocasião da exposição, a Editora Sextante produziu um belo catálogo com todas as fotos expostas, sob a coordenação de Geraldo Jordão Pereira, curador do evento.
          Durante a visita retornamos obrigatoriamente ao nosso mundo de imagens, conversando um pouco sobre o retoque fotográfico com suas implicações na arte e na credibilidade da fotografia

O retoque fotográfico
          O mérito destas fotografias de Marilyn Monroe, a par de documentar um dos ícones dos anos 60, é mostrar que uma mulher real pode ser bonita, sem necessidade de cirurgias físicas ou virtuais – através de retoques fotográficos –, sendo consideradas normais pequenas rugas, ou marcas do tempo, como alguns preferem, em oposição às mulheres siliconadas, plastificadas e artificiais que povoam as revistas masculinas de moda e glamour
          Felizmente o fotógrafo Bert Stern tinha o senso de documentação histórica, pois considerava que quanto menos uma foto era retocada mais conservava sua forçaGraças à sua sensibilidade foi conservado este magnífico acervo
          Eu não sou contra o retoque fotográfico, normalmente associado a uma praga da fotografia digital.  As facilidades apresentadas pelas técnicas digitais são extremamente positivas, desde que seja respeitado o limite da fotografia como um registro históricoPara exemplificar, mostramos na Figura 1 a dramática foto Migrant Mother da fotógrafa americana Dorothea Lange e sua versão digital feita posteriormente pela artista plástica Kathy Grove, nesta onda “moderninha” de chamar de arte a tal de criação sobreapropriações fotográficas” e outras sandicesComo no passado, o retoque fotográfico ou o chamado “photoshop” analógico era na maioria dos casos feito diretamente no negativo, um impulso artístico inconsequente poderia ter destruído a dramática foto de 1936, que mostra a pobreza e o desamparo dos trabalhadores migrantes e suas famílias, ao mesmo tempo estampando seus rostos plenos de dignidade, apesar da dureza das circunstâncias (ver Digital x Ética, uma briga feia, Flávio Damm - Photo Magazine, abril/maio de 2006). 
          Por outro lado, devemos lembrar que a manipulação fotográfica praticamente nasceu com a fotografia e que toda esta discussão atual é antigaEm 1855, por ocasião da Exposição Universal de Paris, o gravador e fotógrafo alemão Franz Hanfstaengl apresentou fotos de um modelo em que os negativos foram retocados.  A partir daí uma discussão acirrada envolveu a Sociedade Francesa de Fotografia com o crítico Paul Périer defendendo a prática do retoque fotográfico em nome da arte e o fotógrafo Durieu alegando, em nome da especificidade do meio fotográfico, ser contra estas intervenções manuais, que no fundo, em nome de uma pretensa arte, excluía precisamente a arte fotográfica.  Na realidade esta discussão é atual como uma crítica aos artistas contemporâneos que usam as facilidades das técnicas digitais para escamotearem as suas deficiências e incompetências no domínio da arte fotográfica e se abrigam em verdadeiras confrarias sob as asas dos defensores de que a fotografia é um mero suporte para uma pretensagrande arte”.



Figura 1 – Migrant Mother, foto da fotógrafa americana Dorothea Lange (à esquerda) e a sua versão digital feita posteriormente pela artista plástica Kathy Grove (à direita).


          Em 1859 o fotógrafo Henri de La Blanchère ilustrou um livro sobre famosa atriz de ópera, fundindo fotos tiradas em estúdios com desenhos feitos diretamente sobre as fotografias.  O resultado foi um meio caminho entre a foto e o desenho, como mostrado na Figura 2.  A partir daí cessaram as discussões, que foram ressuscitadas somente com o advento da fotografia digital em nossos dias.

Figura 2 – Fotografia em estúdio de uma modeloesquerda) e o resultado final com o desenho do fundo feito diretamente sobre a fotografiadireita).

Retratos de família e a “arqueologia” do “photoshop” analógico
          Na Figura 3 mostramos um retrato de família feito na década de quarenta por um filho em homenagem ao seu pai falecido.  Nesta imagem temos o triunfo do retoque e da arte fotográfica, pois, em certo sentido, expressa na imagem física do retratado todos os atributos não materiais que o filho via em seu pai, como: seriedade, honestidade, sabedoria e determinação, indo além dos limites ópticos da imagem original, em uma forma artística de registrar as emoções e o conhecimento que temos de um ser humano.  O processo desta fusão da imagem estática de uma pessoa com seus traços de caráter é mostrado na Figura 4, com a reconstituição deste “photoshop” analógico através de uma verdadeira arqueologia fotográfica.  Nesta figura, à esquerda, temos um negativo de vidro, onde o retratado aparece no centro do grupo.  Em um segundo passo teve o seu busto isolado com uma tinta pintada ao seu redor.  Esta tinta foi posteriormente removida, como podemos ver na revelação digital deste negativo, mostrada no centro da figura.  À direita desta mesma figura mostramos o positivo obtido a partir do qual o fotógrafo trabalhou até chegar à foto apresentada na Figura 3.  Neste processo a visão artística do fotógrafo enriqueceu a arte fotográfica.


Figura 3 - Um retrato de família feito na década de quarenta por um filho em homenagem ao seu pai falecido.


Figura 4 - À esquerda, temos um negativo de vidro, onde o retratado aparece no centro de um grupo.  No centro da figura apresentamos a revelação digital deste negativo e a direita o positivo final obtido.

Fotografia e credibilidade
          Desta história toda vemos que não são as técnicas digitais que vão abalar a credibilidade da fotografia.  O que assistimos é a reedição daquela velha discussão de que a fotografia acabaria com a pintura ou de que a televisão acabaria com o cinema.  As preocupações com as novas tecnologias levaram, por exemplo, o artista e fotógrafo David Hockney declarar: posso dizer que o Cristo que se eleva no afresco de Piero della Francesca é uma prova de sua ressurreição.  Se me perguntarem se acredito mais numa pintura ou numa foto, direi que, sem dúvida, é numa pintura.  Esta onda de desconfiança envolveu até museus e revistas especializadas em fotos de natureza, com algumas instituições solicitando aos fotógrafos seus arquivos RAW originais – equivalentes a um negativo sem retoques – onde as imagens são codificadas, sem a intervenção de qualquer processamento, mesmo os ajustes feitos pela máquina fotográfica para exibir a imagem em seu visor (ver The Nature of Veracity, William Neill - Outdoor Photographer, dezembro de 2005). 
          Para terminar, ficamos com as palavras de Walter Firmo, por ocasião de sua primeira exposição de fotografia digital em 2005: ...dessa lição, o que me preocupa é o homem não perder sua essência, derrotado pela força e frieza das máquinas que ele mesmo criou.  Para onde irá sua intuição e almaeis a pergunta que não quer calar...

          Terminamos este artigo com uma bela imagem de Marilyn Monroe, O Mito, do fotógrafo americano Bert Stern, que motivou esta discussão.


Foto 5 - Marilyn Monroe, O Mito, do fotógrafo americano Bert Stern.


Nota:
(*) Recentemente foi exigido um laudo farmacológico para a importação do livro de fotografias “Vitamin Ph: New Perpectives in Photography”, Editora Phaidon, 2006.









segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Um Mundo de Imagens – Reflexão Óptica e Fotografia: primeira parte

Publicado no Montbläat em julho de 2007.

          A técnica e a arte fotográfica a cada dia tornam-se mais importantes no Brasil.  Isto é atestado pela qualidade das imagens em nossos meios de comunicação e pelas inúmeras exposições e eventos relacionados a fotografia que acorrem por aquiAtualmente no Rio de Janeiro continua a FOTORIO - Encontro Internacional de Fotografia do Rio de Janeiro e em São Paulo, inicia-se em julho o 8º Mês Internacional da FotografiaEstes dois eventos promovem dezenas de exposições e instalações em centros culturais, galerias e espaços diversosLevados por esta corrente fotográfica, vamos voltar ao nossoMundo de Imagens”, falando sobre reflexão óptica e fotografia.  Vamos iniciar a nossa conversa observando e comparando as fotos apresentadas nas Figuras 1 e 2, que foram tiradas de uma antiga fazenda de café com um intervalo de tempo de aproximadamente noventa anos.  A primeira fotografia é do início do século XX e mostra a tulha e o pátio de secagem dos grãos de café desta fazenda, tendo sido obtida através de uma revelação digital de um negativo de vidro.  A segunda fotografia é uma imagem digital obtida no ano de 2004.  Se observarmos a disposição das portas e janelas em ambas as fotos, veremos que a par da remoção da chaminé e de um bloco sem janelas, que aparecem na foto primitiva, elas são iguais, desde que consideremos que a primeira foto (V. Figura 1) sofreu uma reflexão especular.  Uma análise dos arquivos originais mostrou que de fato isto ocorreu, tendo sido a imagem da desta fotografia invertida no processamento digitalPortanto ambas as fotos mostram a mesma cena, que obtidas de ângulos opostos e podem ser usadas na análise arquitetônica da tulha desta fazendaAlém deste exercício visual, fica aqui um alerta para os cuidados no uso de imagens fotográficas em História.  Os livros Fotografia & História e Realidades e Ficções na Trama Fotográfica, ambos de Boris Kossoy abordam com profundidade este tema.
          Cuidados com a inversão de um negativo no processo de escaneamento e outras falhas digitais são importantes, pois muitos acervos domésticos e arquivos de diversas instituições têm sido copiados digitalmente, sendo que no primeiro caso os originais muitas vezes são descartados.  No segundo caso, os originais são preservados, mas os pesquisadores passam a trabalhar apenas com as versões digitais

          Esta conversa levou-me a um saudosismo daquelas velhas sessões de projeção de slides, quando os cromos eram montados invertidos e dizíamos que a imagem estava com o lado direito trocado com o esquerdo, como se sofresse uma reflexão especular.  Lembrei-me também das velhas câmaras fotográficas como a lendária Rolleiflex e a Olympus OM1, sendo esta última o máximo da tecnologia para máquinas fotográficas leves com lentes compactas. 


Figura 1 – Tulha de uma fazenda de café.  Revelação digital de um  negativo de vidro.


Figura 2 - Tulha de uma fazenda de café.  Imagem digital de 2004. Foto T.Abritta.

          Na Figura 3 homenageamos uma destas câmaras com o “Autorretrato de Allan e Diana com Rolleiflex”.  Esta imagem foi obtida com uma segunda máquina fotográfica, ajustada para disparar automaticamente após um intervalo de tempo.  Na foto apresentada na Figura 4, o autorretrato foi obtido através de uma superfície reflexiva, como mostra a inversão das letras que aparecem na imagem e se observarem, a câmara está sendo acionada com a mão esquerda, o que implicaria em ter sua construção invertida. 
          Aqui vamos fazer uma pausa na nossa conversa, deixando a pergunta: se a imagem de um espelho inverte o lado direito com o esquerdo, por que o lado de baixo não é invertido com o de cima
Na próxima semana continuaremos.


Figura 3 – Autorretrato de Allan e Diana com Rolleiflex, por Diana e Allan Arbus, publicada no artigo Mr. and Mrs. Inc., Glamour, abril de 1947.


Figura 4 – Auto Retrato Sr. e Sra. K. 
Obtido com uma câmera Olympus OM1.






Um Mundo de Imagens – Reflexão Óptica e Fotografia: segunda parte

Publicado no Montbläat em julho de 2007

          Retomando a nossa conversa, podemos comparar a Figura 5, abaixo, com a Figura 4 apresentada na primeira parte deste artigoEm ambas as fotos são mostradas câmaras Olympus OM1.  A diferença é que na Figura 5 a máquina é acionada com a mão direita e na foto anterior, um auto retrato usando uma superfície reflexiva, o mecanismo da máquina está invertido, sendo acionada com a mão esquerda, o que nos faz voltar à pergunta feita anteriormente: se a imagem de um espelho inverte o lado direito com o esquerdo, porque o lado de baixo não é invertido com o de cima?




Figura 5 – Fotografando com Olympus OM1.  Foto T.Abritta.

          Para responder a esta pergunta basta fazermos uma rotação de 180 graus na Figura 4, o que equivale girarmos a fotografia de modo que fique de cabeça para baixo – como mostramos na figura 6 – e tudo volta ao normal, com a máquina fotográfica sendo acionada pela mão direita do fotógrafo que agora está também de cabeça para baixo
Logo a lição que tiramos desta história é que na Natureza não existem lados privilegiados e que quando uma imagem sofre uma reflexão, a única afirmação que podemos fazer é que a imagem não será mais a mesma através de rotações
          Para os que acharam esta discussão um tanto complicada ou para aqueles que gostaram, deixamos para reflexão uma cópia da pintura surrealista de René Magritte, intitulada A reprodução proibida (V. Figura 7).



Figura 6 – Rotação de 180 graus do Autorretrato Sr. e Sra. K (V. Figura 4).



Figura 7 – La reproduction interdite, René Magritte, 1937.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Velhas Imagens, Novas Cores




Publicado no Montbläat, novembro de 2007.

          A tecnologia digital revolucionou o mundo da fotografia trazendo novas concepções como o imediatismo da imagem capturada, que em uma pequena fração de tempo pode ser enviada por celulares para a Internet ou mesmo publicada em mídias impressas.  Estas vantagens, entretanto, mudaram a maneira de ver a fotografia, que sofre nestes tempos um empobrecimento em termos de composição, focalização, fotometria, resolução e outros parâmetros, que para muitos a qualidade final pode ser obtida através de programas de manipulação de imagens, os chamados “photoshops”Isto leva também alguns a se desinteressarem pelos fundamentos da arte fotográfica e praticarem uma fotografia de baixo nível, mascarada pelos chamados “efeitos artísticos”, que são oferecidos pelos filtros dos programas mencionados acimaInfelizmente os meios de comunicação e galerias de arte dão espaço para estas expressões, onde a criatividade é substituída pela ação de um programa de computador que, em última análise, manipula as escalas de cores e as relações espaciais entre pontosAssim muita gente vai produzindo “aquelas” instalações fotográficas e performances, em geral acompanhadas por textos explicativos, que tentam mostrar uma genialidade inexistente, através de palavras vazias e sem sentido
          Neste mundo saturado de imagens é interessante olharmos cuidadosamente o trabalho de fotógrafos que têm uma atividade mais artística, para não apreciarmos as facilidades das novas técnicas digitais, como usá-las com propriedade
          Na fotografia tradicional – que podemos chamar de fotografia químicavários efeitos especiais eram obtidos na revelação dos negativos e na ampliação de cópias positivas.  Na fotografia em preto e branco, processos de colorização eram obtidos através de banhos químicos, produzindo uma gama de tons que ia do ocre ao vermelho, conhecidos como viragem sépiaOutros fotógrafos pintavam negativos, usavam filtros e máscaras nas ampliações, bem como múltiplas exposições.  Existiam também processos interessantes que davam aquele ar metalizados nas fotografias, como, por exemplo, os Efeitos de Sabattier – obtidos, no laboratório químico, através da exposição de uma impressão à luz, por momentos muito breves antes do processo de revelação terminar.  Na fotografia colorida efeitos fantásticos eram obtidos revelando-se o negativo não pelo seu processo normal (C-41) e sim pelo processo usado na revelação de cromos (E-6) ou ao contrário, revelando-se um cromo pelo processo do negativo.  Usava-se também a redução de tons e vários filtros coloridos no processo de ampliação.  Eram processos laboriosos, com resultados imprevisíveis, onde a criatividade do fotógrafo era importante para chegar a uma imagem com valor artístico.
          Hoje os programas de ajuste de imagem têm filtros que ajustam os processos tradicionais mencionados acima, podendo rapidamente serem aplicados a uma foto digital com um toque do mouse, libertando o fotógrafo do laborioso e demorado trabalho de laboratório.  Mas, por outro lado, exigindo uma criatividade muito grande para sair da mesmice e produzir imagens com valor artístico.
          Com as facilidades computacionais que dispomos, produzir imagens como fotografias solarizadas ou com dupla exposição dos tempos de Ray Man; as imagens com reflexos de rostos em diferentes objetos, de Alain Fleischer; pinturas com reduções de tons, como as de Marilyn Monroe, feitas por Warhol ou os fantásticos mosaicos fotográficos de Hockney, como Highway, seriam meros plágios, pois é necessário irmos um pouco mais além, que recursos gráficos não nos faltam.  O que conta é a criatividade.  Boa parte das imagens que vemos hoje em dia podem ser até bonitas, mas ficam limitadas ao mundo das artes gráficas, cumprindo o papel de ilustrar publicações, vender sabonetes ou celulares, mas que dificilmente estarão nas paredes de um museu em um futuro próximo.  
          Outras mudanças neste mundo digital é que as vendas das próprias câmeras digitais estão caindo, que os consumidores de fotografias instantâneas estão dando preferência aos cliques com aparelhos celulares, que dia a dia melhoram a qualidade de suas câmeras, o que levou a HP a encerrar a fabricação de máquinas fotográficas digitais para se concentrar em dispositivos para impressão de fotografiasEm um futuro próximo a fotografia com mais qualidade técnica ficará restrita a muito poucas pessoas

Tecnologia digital e a desmaterialização da imagem
          Uma das maiores contribuições da tecnologia digital é a aplicação na restauração de documentos, preservação de imagens, leituras de textos e inscrições, chegando ao que podemos chamar de desmaterialização da imagem, que prescinde de uma mídia física para a sua existência, podendo sobreviver como um conjunto de números e algoritmos, que se tomados os devidos cuidados em sua armazenagem digital, poderá tornar-se eterna.
          Em setembro último, tivemos um exemplo surpreendente das ideias discutidas acimaApós duzentos e dez anos retornou a Veneza uma grande pintura de Paolo Veronese, As Bodas de Caná, (V. Figura 1).  Esta obra havia sido cortada em pedaços e levada por Napoleão como butim de guerra.  O surpreendente é que o imenso quadro (6,77m x 9,94m) pintado por este mestre do Renascimento em 1563, para a sala criada por Palladio no refeitório dos Beneditinos, na ilha de San Giorgio Maggiore em Veneza, ainda permanece no Museu do Louvre, em Paris. A obra que retornou para a Itália é na realidade um fac simile que dificilmente pode ser identificado como cópia.


Figura 1 - As Bodas de Caná, Paolo Veronese – 1563.

          O fac simile da obra de Veronese foi o resultado de dezoito meses de trabalho – o mesmo tempo que o artista levou para pintar sua obra –, feito pela firma Factum Arte, especializada em cópias digitais para restaurações de obras artísticas.  Os mil quinhentos e noventa e um arquivos digitais da obra original foram juntados e após estudos de pigmentos, das telas e materiais usados no tempo de Veronese foi feita a impressão em tamanho real, permitindo que As Bodas de Caná voltasse para o velho refeitório do Convento.
          O crítico de arte Pierluigi Panza, a propósito deste trabalho, escreveu no jornal Corriere della Serra tratar-se de um terceiro milagre.  O primeiro foi quando Jesus transformou a água em vinho neste episódio bíblico e o segundo, a pintura original, considerada uma obra-prima do século XVI.  Para outros, a firma Factum Arte criou um Frankenstein.  Cesare De Michelis, professor de Literatura da Universidade de Pádua, declarou que esta substituição da obra original é devastadora e imoral como uma clonagem da vida humana, conforme escreveu no jornal Sole 24 Ore.  O artista Adam Lowe, diretor da Factum Arte, defende o trabalho dizendo que não se trata de um clone, e sim um detalhado e profundo estudo artístico.  De qualquer maneira As Bodas de Caná adquiriu uma vida imaterial, que pode ser apreciada com todo seu esplendor em Veneza ou com toda emoção no Museu do Louvre em Paris, se ficarmos diante da obra-prima original que atravessou mais de dois séculos

Olhando o passado
          Toda esta história pode ser um grande incentivo para não desprezarmos aquelas velhas fotos de viagens e familiares, não pelo valor histórico que estão adquirindo ao transformarem-se em peças de colecionadores, como pelas descobertas que podemos fazer com os recursos computacionais que temos em nossas residênciasUm exemplo disto é mostrado nas Figuras 2 e 3.
A Figura 2 apresenta uma cópia digital de um negativo de vidro encontrado no depósito de ferramentas de uma antiga fazenda.  Este negativo sofreu vários ataques químicos, estando bem deteriorado.  Com uma simples operação de revelação digitalinversão de cores – chegamos à imagem apresentada na Figura 3, onde uma jovem nos cumprimenta com um sorriso enigmático, guardado neste negativo há aproximadamente um século.  Seria o negativo original em preto e branco e sucessivas mudanças químicas é que criaram uma pátina resultando nesta cópia positiva colorida?  Como foi encontrado outro negativo idêntico, podemos inferir que ambos eram reproduções de um original, sendo provavelmente indícios de experimentos com o registro fotográfico da cor.


Figura 2 – Negativo de vidro.



Figura 3 – Revelação digital do negativo.

          A importância crescente das fotos instantâneas e familiares como relíquias de colecionadores pode ser avaliada pela exposição The Art of the American Snapshot 1888-1978: From the Collection of Robert E. Jackson na “National Gallery of Art” em Washington, D.C.  Esta amostra, que ficará aberta até 31 de dezembro deste ano, apresenta aproximadamente duzentas fotografias de um universo de nove mil imagens deste colecionador
          Logo, vamos ao trabalho e quem sabe não faremos uma descoberta surpreendente em nossas velhas fotografias?


Figura 4 - Foto Coleção Robert Jackson.