Publicado no Montbläat, novembro de 2007.
A
tecnologia digital
revolucionou o mundo da fotografia
trazendo novas concepções
como o imediatismo
da imagem capturada, que em uma pequena fração
de tempo pode ser
enviada por
celulares para a Internet ou mesmo
publicada em mídias
impressas. Estas vantagens,
entretanto, mudaram a maneira de ver a fotografia,
que sofre nestes tempos
um empobrecimento
em termos
de composição, focalização, fotometria, resolução e outros
parâmetros, já
que para muitos a qualidade
final pode ser
obtida através de programas
de manipulação de imagens,
os chamados “photoshops”. Isto leva também alguns a se desinteressarem pelos
fundamentos da arte
fotográfica e praticarem uma fotografia de baixo
nível, mascarada
pelos chamados “efeitos
artísticos”, que
são oferecidos pelos
filtros dos programas
mencionados acima. Infelizmente
os meios de comunicação
e galerias de arte
dão espaço para
estas expressões, onde
a criatividade é substituída pela ação de um programa de computador que,
em última
análise, manipula as escalas de cores
e as relações espaciais
entre pontos. Assim muita gente vai
produzindo “aquelas” instalações
fotográficas e performances, em geral
acompanhadas por textos
explicativos, que
tentam mostrar uma genialidade
inexistente, através
de palavras vazias e sem sentido.
Neste
mundo saturado
de imagens é interessante olharmos
cuidadosamente o trabalho de fotógrafos
que têm uma atividade
mais artística,
para não só apreciarmos as facilidades
das novas técnicas
digitais, como usá-las com propriedade.
Na
fotografia tradicional – que podemos chamar de fotografia química
– vários efeitos
especiais eram obtidos na revelação dos negativos
e na ampliação de cópias
positivas. Na fotografia
em preto e branco,
processos de colorização eram obtidos através de banhos
químicos, produzindo uma gama de tons que ia do ocre
ao vermelho, conhecidos
como viragem sépia. Outros
fotógrafos pintavam negativos,
usavam filtros e máscaras
nas ampliações, bem
como múltiplas exposições. Existiam também
processos interessantes que davam aquele
ar metalizados nas fotografias,
como, por
exemplo, os Efeitos
de Sabattier – obtidos, no laboratório químico, através
da exposição de uma impressão
à luz, por
momentos muito
breves antes
do processo de revelação
terminar. Na fotografia colorida efeitos
fantásticos eram obtidos revelando-se o negativo não pelo seu processo normal
(C-41) e sim pelo
processo usado na revelação
de cromos (E-6) ou
ao contrário, revelando-se um cromo pelo processo
do negativo. Usava-se também
a redução de tons e vários
filtros coloridos no processo
de ampliação. Eram processos
laboriosos, com
resultados imprevisíveis,
onde a criatividade
do fotógrafo era
importante para
chegar a uma imagem
com valor
artístico.
Hoje os programas
de ajuste de imagem
têm filtros que
ajustam os processos tradicionais
mencionados acima, podendo rapidamente
serem aplicados a uma foto digital com um toque do mouse, libertando o fotógrafo
do laborioso e demorado trabalho
de laboratório. Mas, por outro lado, exigindo uma criatividade
muito grande
para sair da mesmice e produzir imagens
com valor
artístico.
Com as facilidades
computacionais que dispomos, produzir imagens como fotografias solarizadas ou com dupla exposição dos tempos de Ray Man; as imagens
com reflexos
de rostos em
diferentes objetos, de Alain Fleischer; pinturas com
reduções de tons, como as de Marilyn
Monroe, feitas por
Warhol ou os fantásticos
mosaicos fotográficos
de Hockney, como Highway, seriam meros plágios, pois é necessário irmos um pouco mais além, já que recursos gráficos não nos faltam. O que conta é a criatividade. Boa
parte das imagens
que vemos hoje
em dia
podem ser até
bonitas, mas ficam limitadas ao mundo das artes
gráficas, cumprindo o papel
de ilustrar publicações, vender
sabonetes ou
celulares, mas que
dificilmente estarão nas paredes de um museu em um futuro próximo.
Outras
mudanças neste mundo digital é que
as vendas das próprias câmeras digitais
estão caindo, já que
os consumidores de fotografias
instantâneas estão dando preferência aos cliques com aparelhos celulares,
que dia
a dia melhoram a qualidade
de suas câmeras,
o que já
levou a HP a encerrar
a fabricação de máquinas
fotográficas digitais para
se concentrar em
dispositivos para
impressão de fotografias. Em um futuro próximo a fotografia com mais qualidade técnica
ficará restrita a muito poucas pessoas.
Tecnologia digital
e a desmaterialização da imagem
Uma
das maiores contribuições
da tecnologia digital
é a aplicação na restauração de documentos, preservação
de imagens, leituras
de textos e inscrições,
chegando ao que podemos chamar
de desmaterialização da imagem, que prescinde de uma mídia
física para a
sua existência,
podendo sobreviver como
um conjunto
de números e algoritmos,
que se tomados os devidos
cuidados em
sua armazenagem digital,
poderá tornar-se eterna.
Em setembro
último, tivemos um exemplo
surpreendente das ideias discutidas acima. Após duzentos e dez anos
retornou a Veneza uma grande pintura de Paolo
Veronese, As Bodas
de Caná, (V. Figura 1). Esta obra havia sido cortada
em pedaços
e levada por
Napoleão como butim de guerra. O surpreendente é que o
imenso quadro
(6,77m x 9,94m) pintado por este mestre do Renascimento em 1563, para a sala criada por Palladio no refeitório
dos Beneditinos, na ilha
de San Giorgio Maggiore em Veneza, ainda permanece no Museu
do Louvre, em Paris. A obra que
retornou para a Itália é na realidade
um fac
simile que dificilmente pode ser identificado como
cópia.
Figura 1 - As Bodas de Caná, Paolo
Veronese – 1563.
O
fac simile da obra
de Veronese foi o resultado de dezoito
meses de trabalho – o mesmo
tempo que
o artista levou para
pintar sua obra –, feito pela firma Factum Arte,
especializada em cópias
digitais para
restaurações de obras
artísticas. Os mil quinhentos e noventa e
um arquivos digitais
da obra original
foram juntados e após estudos
de pigmentos, das telas e materiais usados no tempo
de Veronese foi feita a impressão
em tamanho
real, permitindo que
As Bodas de Caná voltasse para o velho refeitório
do Convento.
O
crítico de arte
Pierluigi Panza, a propósito deste trabalho,
escreveu no jornal Corriere della Serra
tratar-se de um terceiro
milagre.
O primeiro foi quando
Jesus transformou a água em vinho neste episódio bíblico e o segundo, a pintura
original, considerada uma obra-prima do século
XVI. Para outros,
a firma Factum Arte criou um
Frankenstein. Cesare De Michelis, professor
de Literatura da Universidade de Pádua, declarou
que esta substituição da obra original é
devastadora e imoral como uma clonagem
da vida humana,
conforme escreveu no jornal Sole 24
Ore. O artista
Adam Lowe, diretor da Factum Arte,
defende o trabalho dizendo que
não se trata
de um clone, e sim
um detalhado e profundo
estudo artístico. De qualquer
maneira As Bodas de Caná adquiriu
uma vida imaterial,
que pode ser
apreciada com todo
seu esplendor
em Veneza ou
com toda
emoção no Museu
do Louvre em Paris, se ficarmos diante da obra-prima
original que atravessou mais de dois séculos.
Olhando o passado
Toda esta história
pode ser um grande incentivo
para não desprezarmos aquelas velhas fotos de viagens
e familiares, não
só pelo valor histórico
que estão adquirindo ao transformarem-se
em peças de colecionadores,
como pelas descobertas
que podemos fazer
com os recursos
computacionais que temos em nossas residências. Um exemplo disto é mostrado nas Figuras
2 e 3.
A Figura
2 apresenta uma cópia digital de um negativo de vidro
encontrado no depósito de ferramentas de uma antiga
fazenda.
Este negativo sofreu vários ataques químicos, estando bem deteriorado. Com
uma simples operação
de revelação digital
– inversão de cores
– chegamos à imagem apresentada na Figura 3, onde
uma jovem nos
cumprimenta com
um sorriso
enigmático, guardado neste negativo há
aproximadamente um século. Seria o negativo
original em preto
e branco e sucessivas mudanças químicas é que criaram uma pátina
resultando nesta cópia positiva colorida?
Como foi encontrado outro negativo idêntico, podemos inferir que ambos
eram reproduções de um original, sendo provavelmente indícios de experimentos
com o registro fotográfico da cor.
Figura 2 – Negativo
de vidro.
Figura 3 – Revelação
digital do negativo.
A
importância crescente
das fotos instantâneas e familiares como
relíquias de colecionadores
pode ser avaliada pela
exposição The
Art of the American Snapshot 1888-1978: From the Collection of Robert E.
Jackson na “National Gallery of Art” em
Washington, D.C. Esta amostra, que ficará aberta
até 31 de dezembro
deste ano, apresenta aproximadamente duzentas fotografias
de um universo
de nove mil imagens deste colecionador
Logo,
vamos ao trabalho e quem
sabe não faremos uma descoberta surpreendente em nossas velhas fotografias?
Figura 4 - Foto
Coleção Robert Jackson.