Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Velhas Imagens, Novas Cores




Publicado no Montbläat, novembro de 2007.

          A tecnologia digital revolucionou o mundo da fotografia trazendo novas concepções como o imediatismo da imagem capturada, que em uma pequena fração de tempo pode ser enviada por celulares para a Internet ou mesmo publicada em mídias impressas.  Estas vantagens, entretanto, mudaram a maneira de ver a fotografia, que sofre nestes tempos um empobrecimento em termos de composição, focalização, fotometria, resolução e outros parâmetros, que para muitos a qualidade final pode ser obtida através de programas de manipulação de imagens, os chamados “photoshops”Isto leva também alguns a se desinteressarem pelos fundamentos da arte fotográfica e praticarem uma fotografia de baixo nível, mascarada pelos chamados “efeitos artísticos”, que são oferecidos pelos filtros dos programas mencionados acimaInfelizmente os meios de comunicação e galerias de arte dão espaço para estas expressões, onde a criatividade é substituída pela ação de um programa de computador que, em última análise, manipula as escalas de cores e as relações espaciais entre pontosAssim muita gente vai produzindo “aquelas” instalações fotográficas e performances, em geral acompanhadas por textos explicativos, que tentam mostrar uma genialidade inexistente, através de palavras vazias e sem sentido
          Neste mundo saturado de imagens é interessante olharmos cuidadosamente o trabalho de fotógrafos que têm uma atividade mais artística, para não apreciarmos as facilidades das novas técnicas digitais, como usá-las com propriedade
          Na fotografia tradicional – que podemos chamar de fotografia químicavários efeitos especiais eram obtidos na revelação dos negativos e na ampliação de cópias positivas.  Na fotografia em preto e branco, processos de colorização eram obtidos através de banhos químicos, produzindo uma gama de tons que ia do ocre ao vermelho, conhecidos como viragem sépiaOutros fotógrafos pintavam negativos, usavam filtros e máscaras nas ampliações, bem como múltiplas exposições.  Existiam também processos interessantes que davam aquele ar metalizados nas fotografias, como, por exemplo, os Efeitos de Sabattier – obtidos, no laboratório químico, através da exposição de uma impressão à luz, por momentos muito breves antes do processo de revelação terminar.  Na fotografia colorida efeitos fantásticos eram obtidos revelando-se o negativo não pelo seu processo normal (C-41) e sim pelo processo usado na revelação de cromos (E-6) ou ao contrário, revelando-se um cromo pelo processo do negativo.  Usava-se também a redução de tons e vários filtros coloridos no processo de ampliação.  Eram processos laboriosos, com resultados imprevisíveis, onde a criatividade do fotógrafo era importante para chegar a uma imagem com valor artístico.
          Hoje os programas de ajuste de imagem têm filtros que ajustam os processos tradicionais mencionados acima, podendo rapidamente serem aplicados a uma foto digital com um toque do mouse, libertando o fotógrafo do laborioso e demorado trabalho de laboratório.  Mas, por outro lado, exigindo uma criatividade muito grande para sair da mesmice e produzir imagens com valor artístico.
          Com as facilidades computacionais que dispomos, produzir imagens como fotografias solarizadas ou com dupla exposição dos tempos de Ray Man; as imagens com reflexos de rostos em diferentes objetos, de Alain Fleischer; pinturas com reduções de tons, como as de Marilyn Monroe, feitas por Warhol ou os fantásticos mosaicos fotográficos de Hockney, como Highway, seriam meros plágios, pois é necessário irmos um pouco mais além, que recursos gráficos não nos faltam.  O que conta é a criatividade.  Boa parte das imagens que vemos hoje em dia podem ser até bonitas, mas ficam limitadas ao mundo das artes gráficas, cumprindo o papel de ilustrar publicações, vender sabonetes ou celulares, mas que dificilmente estarão nas paredes de um museu em um futuro próximo.  
          Outras mudanças neste mundo digital é que as vendas das próprias câmeras digitais estão caindo, que os consumidores de fotografias instantâneas estão dando preferência aos cliques com aparelhos celulares, que dia a dia melhoram a qualidade de suas câmeras, o que levou a HP a encerrar a fabricação de máquinas fotográficas digitais para se concentrar em dispositivos para impressão de fotografiasEm um futuro próximo a fotografia com mais qualidade técnica ficará restrita a muito poucas pessoas

Tecnologia digital e a desmaterialização da imagem
          Uma das maiores contribuições da tecnologia digital é a aplicação na restauração de documentos, preservação de imagens, leituras de textos e inscrições, chegando ao que podemos chamar de desmaterialização da imagem, que prescinde de uma mídia física para a sua existência, podendo sobreviver como um conjunto de números e algoritmos, que se tomados os devidos cuidados em sua armazenagem digital, poderá tornar-se eterna.
          Em setembro último, tivemos um exemplo surpreendente das ideias discutidas acimaApós duzentos e dez anos retornou a Veneza uma grande pintura de Paolo Veronese, As Bodas de Caná, (V. Figura 1).  Esta obra havia sido cortada em pedaços e levada por Napoleão como butim de guerra.  O surpreendente é que o imenso quadro (6,77m x 9,94m) pintado por este mestre do Renascimento em 1563, para a sala criada por Palladio no refeitório dos Beneditinos, na ilha de San Giorgio Maggiore em Veneza, ainda permanece no Museu do Louvre, em Paris. A obra que retornou para a Itália é na realidade um fac simile que dificilmente pode ser identificado como cópia.


Figura 1 - As Bodas de Caná, Paolo Veronese – 1563.

          O fac simile da obra de Veronese foi o resultado de dezoito meses de trabalho – o mesmo tempo que o artista levou para pintar sua obra –, feito pela firma Factum Arte, especializada em cópias digitais para restaurações de obras artísticas.  Os mil quinhentos e noventa e um arquivos digitais da obra original foram juntados e após estudos de pigmentos, das telas e materiais usados no tempo de Veronese foi feita a impressão em tamanho real, permitindo que As Bodas de Caná voltasse para o velho refeitório do Convento.
          O crítico de arte Pierluigi Panza, a propósito deste trabalho, escreveu no jornal Corriere della Serra tratar-se de um terceiro milagre.  O primeiro foi quando Jesus transformou a água em vinho neste episódio bíblico e o segundo, a pintura original, considerada uma obra-prima do século XVI.  Para outros, a firma Factum Arte criou um Frankenstein.  Cesare De Michelis, professor de Literatura da Universidade de Pádua, declarou que esta substituição da obra original é devastadora e imoral como uma clonagem da vida humana, conforme escreveu no jornal Sole 24 Ore.  O artista Adam Lowe, diretor da Factum Arte, defende o trabalho dizendo que não se trata de um clone, e sim um detalhado e profundo estudo artístico.  De qualquer maneira As Bodas de Caná adquiriu uma vida imaterial, que pode ser apreciada com todo seu esplendor em Veneza ou com toda emoção no Museu do Louvre em Paris, se ficarmos diante da obra-prima original que atravessou mais de dois séculos

Olhando o passado
          Toda esta história pode ser um grande incentivo para não desprezarmos aquelas velhas fotos de viagens e familiares, não pelo valor histórico que estão adquirindo ao transformarem-se em peças de colecionadores, como pelas descobertas que podemos fazer com os recursos computacionais que temos em nossas residênciasUm exemplo disto é mostrado nas Figuras 2 e 3.
A Figura 2 apresenta uma cópia digital de um negativo de vidro encontrado no depósito de ferramentas de uma antiga fazenda.  Este negativo sofreu vários ataques químicos, estando bem deteriorado.  Com uma simples operação de revelação digitalinversão de cores – chegamos à imagem apresentada na Figura 3, onde uma jovem nos cumprimenta com um sorriso enigmático, guardado neste negativo há aproximadamente um século.  Seria o negativo original em preto e branco e sucessivas mudanças químicas é que criaram uma pátina resultando nesta cópia positiva colorida?  Como foi encontrado outro negativo idêntico, podemos inferir que ambos eram reproduções de um original, sendo provavelmente indícios de experimentos com o registro fotográfico da cor.


Figura 2 – Negativo de vidro.



Figura 3 – Revelação digital do negativo.

          A importância crescente das fotos instantâneas e familiares como relíquias de colecionadores pode ser avaliada pela exposição The Art of the American Snapshot 1888-1978: From the Collection of Robert E. Jackson na “National Gallery of Art” em Washington, D.C.  Esta amostra, que ficará aberta até 31 de dezembro deste ano, apresenta aproximadamente duzentas fotografias de um universo de nove mil imagens deste colecionador
          Logo, vamos ao trabalho e quem sabe não faremos uma descoberta surpreendente em nossas velhas fotografias?


Figura 4 - Foto Coleção Robert Jackson.





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