Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Extrema Latitude: Expedição Polo Norte


         A aventura se iniciou em Helsinque, de onde voamos para Murmansk, no extremo norte da Rússia.  Em menos de uma hora o piloto anunciava que atravessávamos o Círculo Ártico – latitude 66º 33’. 

         Entrando naquele remoto universo, pensava nos antigos navegadores gregos que observaram, quando iam mais para o norte, que os círculos dos anéis traçados pelas estrelas nos céus aumentavam de raio e que elas traçavam suas órbitas em torno de um polo fixo.  Notaram também que algumas estrelas eram sempre visíveis em todas as estações do ano.  Assim, separaram estas, traçando uma linha imaginária paralela ao equador terrestre passando pela constelação da Ursa Maior (1): Arktos. 

         Lembrei-me da solitária Estrela Polar:


Eu vi a estrela polar / Chorando em cima do mar / Eu vi a estrela polar... / Estrelinha franciscana / Teresinha, mariana / Perdida no Polo Norte / De toda a tristeza humana.

 
         Murmansk é uma verdadeira Stalingrado, só que esquecida pela História nas geladas encostas árticas.  Lá se travou uma das maiores batalhas da Humanidade contra os nazistas.  Praticamente todos seus prédios foram destruídos, grande parte da população morta em combate.  Mas a rota norte de abastecimento das tropas russas sempre aberta. 

         No mar, majestoso, o quebra-gelo Lênin.  O primeiro movido a energia nuclear, construído em 1959.  Adiante, o Atom Flot – ultra secreto porto da frota de quebra-gelos nucleares. 


         Embarcamos no 50 Let Propedy (“50 Anos da Vitória”) o mais moderno quebra-gelo, lançado ao mar em 1993 e que integra a série Arktika da Frota Atômica Russa. 


         Dos onze dias de viagem navegamos os dois primeiros e os dois últimos sobre as águas.  Nos outros, apenas o branco e azul da calota polar. 

         A bordo as atividades eram variadas: instruções de sobrevivência; treinamento de embarques e desembarques no helicóptero e zodíacos sob diversas condições – chuva, neve ou vento; palestras sobre Geologia, Geografia, História, Biologia e explorações no navio, visitando suas entranhas: os dois reatores nucleares, geradores de eletricidade, placas de dessalinização para produção de água doce – o gigante pode ficar até cinco anos produzindo energia e leva provisões para cinco meses.  A par destas atividades técnicas, muitos jantares, vodca, festas e até churrascos nos decks gelados e ventosos.

 
         Cortando o inóspito Mar de Barent, ao nos aproximarmos do arquipélago Terra de Franz Josef, com os primeiros blocos de gelo que apareceram, um urso polar nadava – pequeno ponto branco em um mar infinito.  Ao chegar à calota polar, afastou-se com ar desafiador: nada teme, honra seu nome, Ursus maritimus (V. Foto 1).

 
Muitas velas. Muitos remos. / Âncora é outro falar... / Tempo que navegaremos / Não se pode calcular. /... Curta vida. Longo mar. / Nem tormenta nem tormento / Nos poderia parar... / Andamos entre água e vento / Procurando o Rei do Mar.

 
No dia 12 de julho de 2012, a uma e trinta da madrugada ensolarada, o Capitão do navio, Valentin Davydyants, anunciou: “O GPS marca 90 graus, zero minutos!  Missão final: Polo Norte.”

Desde 1977, quando o primeiro quebra-gelo nuclear aqui aportou, este foi o nonagésimo segundo navio a chegar a esta latitude extrema, com representantes de vinte quatro nações, vindos de todos os continentes. 

Missão de paz, mas também de defesa deste ecossistema tão ameaçado. 

         Andar pela placa polar foi fascinante.  Imenso mundo silencioso, movimentando-se, dissolvendo em lagoas azuis e rachando perigosamente, mostrando as águas negras de um Ártico com mais de quatro mil metros de profundidade (V. Fotos 2 e 3).

         No decorrer do dia, muitos fotografavam, tocavam o casco do navio ancorado no gelo, outros faziam medidas tecno-científicas.  Alguns tomavam vodca e mergulhavam nas águas geladas, não se esquecendo da constante vigilância na prevenção contra a aproximação dos ursos polares que com a diminuição do gelo, migram cada vez mais para o norte.

         Uma festa estava sendo preparada: mesas, cadeiras, churrasqueiras, tudo sendo desembarcado pelos guindastes. 

Mas a Natureza é imprevisível. 

Ou quem sabe?  Prefere sua quietude e solidão.

         Forte estalo, pequeno movimento do navio.  Fendas começaram a abrir.  O negro das profundezas.  Todos para bordo.  Tudo recolhido, partimos para a única direção possível a partir do Polo Norte: Sul.

         Na volta, explorações em zodíacos, sobrevoos de helicóptero (V. Figura 4), desembarques em ilhas, visitas a antigas estações científicas abandonadas e o forte vento gelado do Mar de Barent. 

         No longo voo de retorno pensava na diminuição da calota polar, tanto em extensão quanto em espessura – média de menos de um metro e meio no verão (2).  Pensava na diminuição das geleiras na Antártica, Groenlândia, Alpes, Himalaia...  E o capitalismo selvagem poluindo e destruindo nossa frágil Natureza. 

         Para me confortar, apenas um poema Inuit registrado há mais de um século no extremo norte da Groenlândia e que fala da esperança, das cores pintadas no céu a cada renascer do sol (3):

Só existe uma grande Verdade / A única Verdade / Viver / Ver / Nas caçadas, nas jornadas / O grande dia que renasce / A luz que inunda o mundo.

 

Figura 1 – Urso Polar.  Foto T.Abritta 2012.
 
 
Figura 2 – Navegando no Gelo.  Foto T.Abritta 2012.
 
Figura 3 – Latitude 900 – 12 de julho de 2012.
 

Figura 4 – Sobrevoando o Gelo Ártico.  Foto T.Abritta 2012.

 
 
Notas:
-Fragmentos intertextuais de A Estrela Polar, Vinícius de Morais e de O Rei do Mar, Cecília Meireles.
 
1. Os nomes das duas constelações boreais, Ursa Maior e Ursa Menor, vêm da Mitologia Grega: Calisto, uma das ninfas de Diana, foi seduzida por Júpiter.  Para poupar sua vítima da fúria desta deusa, Júpiter transformou-a em uma ursa – a Ursa Maior.  Mas acabou flechada por Diana.  Mesmo assim deixou no mundo um filho, Arcas, que foi transformado na Ursa Menor e colocado a salvo no extremo norte da Terra.  Esta constelação é importante, pois sua estrela mais setentrional – Estrela Polar (Polaris) – está apenas a um grau do Polo Norte, indicando com facilidade esta direção aos navegantes, tal a Constelação do Cruzeiro do Sul orienta os viajantes austrais.
2. Neste verão de 2012 a composição da calota polar medida foi: 90% de gelo de “primeiro ano”, ou seja, gelo formado no inverno passado.  Desta camada, 30% com espessura variando entre 0,8 e 1,2 metros e 60% com espessura variando entre 1,2 e 1,6 metros.  Foi encontrado apenas 10% de gelo de diferentes camadas – gelo que “sobreviveu” a vários verões –, com espessura variando entre 2,2 e 2,5 metros.

3.Versão em Português a partir de textos em Francês e Inglês. 

 
 
 

 



 

Ártico que Arde



Ao Polo Norte rumei

Em muitos amores pensei

 
Irina Mikhaylova, Elena Golubtsova


Lá, o rumo encontrei

Na certeza do Sul retornei


Lyuba Afanaseva, Olya Morozova

 
Por Murmansk passei

O Círculo Polar Ártico cruzei


Vika Sachkova, Sveta Goryachova


Por fim, meu rumo trilhei

Na jornada suspirei
 

Katya Ryzhova, Luda Fitatova

 
Tantos amores abandonei

A solitária Ursa Menor lembrei

 
Lena Skakovskaya, Tanya Krivobokova

 
Coração gelado fiquei

Tristezas levei
 
 
Antes de atravessar o paralelo 850N os marinheiros russos fazem uma grande festa para pedir a permissão de Netuno, subornando o Rei dos Mares com muita vodca.