Botswana, Foto T.Abritta, 2008

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Transparências Montanhosas


A pedra ao longe se faz macia.
Nas sedutoras curvas das transparências
suspiram tênues névoas
em gemidos inaudíveis.


Transparências Montanhosas.  Nogueira, Petrópolis.  Foto T.Abritta, 2011.



segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A Cabeça de Cera


          Eu gostava de observar a Igreja da Penha da janela do meu trabalho.  No verão, o por do sol ia se deslocando cada vez mais para o sul, até o poente ficar atrás da igreja, transformando-a em raiada silhueta, emoldurada por infinitos tons avermelhados intensificados pela poluição atmosférica.  Ironias da degradação ambiental.  Ano a ano o ciclo se repetindo.  Às vezes esta exuberância trazia lembranças da minha cabeça.  Coitada, toda quebrada, colada com durex, repousando eternamente junto com pernas, braços e outras anatomias de cera.  Dizem que de tempos em tempos tudo é derretido, virando velas votivas, posto não existir espaço para tantos objetos de promessas.  Entretanto, quem sabe não está sob a guarda do ciclo solar, transcendendo nossas existências?
          Outro dia cheguei até a sentir a fumaça do ônibus caolho, apelidado de Camões.  Memórias daquele dia de longo retorno – minha avó tinha vindo de Belo Horizonte e lá fomos, junto com minha mãe, pagar a promessa.  Da Penha até a Central do Brasil e de lá até o Jardim Botânico, no 12, Estrada de Ferro-Leblon (V. Figura 1), que ia vagaroso e fumarento pela Voluntários da Pátria.  Mal saímos da igreja, caiu um temporal inundando tudo.  Mas a missão estava cumprida. 
          Nem me lembrava do acidente.  Mas a promessa tinha sido feita.  Só tenho vaga imagem de nós todos indo comprar a cabeça em uma loja em frente ao Cemitério São João Batista.  Na vitrine podiam-se escolher cabeças de adultos ou crianças; meninos ou meninas (V. Figura 2).  A minha, a menorzinha, foi guardada, cuidadosamente embrulhada, em cima do guarda-roupa de nossos pais, esperando pela nossa avó. 
          O problema é que assim que minha mãe saía, ainda nem tinha descido as escadas, e já gritavam: vamos pegar a cabeça do Léo.  Todos subiam na cabeceira da cama, de onde alcançavam o embrulho e começava a confusão, e meus tormentos.  Afinal era minha cabeça.  Não podia permitir tamanho desrespeito.  No fim sempre o mesmo – o estrado da cama quebrado com a pulação e minha mãe colando a cabeça sob olhares assustados.  Maior sofrimento era escutar baixinho nos ouvidos: promessa com cabeça colada não vale, vai ficar doido como castigo
          Hoje fico pensando: será que minha cabeça não era mais feliz servindo de brinquedo pra criançada do que depositada solitariamente, perdido ex-voto, entre peças fúnebres?

          E vozes infantis ecoavam: vamos pegar a cabeça do Léo... o quê que a barata faz?  Voaaaaa.


Figura 1 – Ônibus Camões.  Foto de 1955, autor desconhecido.


Figura 2 – Capela Nossa Senhora da Cabeça, Bairro do Jardim Botânico, Rio de Janeiro. Foto T. Abritta, 2009.




domingo, 4 de outubro de 2015

Dia de São Francisco



          “Gosto mais é do amanhecer, mesmo acordando com a visão da menina.  A noite é pior.  Sempre mesmos sonhos.  Ela caindo, a cara dentro do bebedouro, o dedinho ainda pressionando, a água molhando seus cabelos.  Depois vai escorregando, devagarinho, como filme em câmera lenta, e cai no chão, tremendo com os olhos arregalados, até ficar imóvel na poça de sangue.  Pela manhã, apenas seu sorriso.  De uniforme, fitinha no cabelo – o retrato nos jornais no dia do enterro.  Matar criança não tem perdão.  Nunca serei perdoado.  É assim mesmo.  Até mulher e filhos foram embora.  Depois de doze anos de cadeia, ainda bem que sobrou meu sítio neste buraco afastado.  Senão ia acabar aceitando a proposta para morar na Divineia e ser segurança daquele coronel africano que veio para treinar traficantes.  Na cadeia não foi nada fácil.  No dia da chegada fui logo mostrando as garras.  Que líder coisa nenhuma.  Cortei sua garganta, meti a cabeça na privada imunda, arriei a calça enfiando-lhe um cabo de vassoura.  Mesmo com essa cena horrorosa, ainda tive que mandar mais dois engraçadinhos para o inferno até entenderem quem eu era.  Meu pai sempre falava: é melhor fazer academia de polícia do que ir para as forças armadas.  Você vai ganhar o mesmo e não tem que começar carreira nestes fins de mundo do Brasil, cheios de malária.  Acabou dando nisto.  O Major, que aprendeu a trabalhar comigo quando era aspirante, rindo: segurança de político?  Nem pensar, você está mais do que babado!”
          “A caminhada matinal é o melhor do dia.  Tudo ainda escuro, sozinho, nem com os santos podendo contar; apenas com o 38 enferrujado.  Nem raias mais tem.  O cano todo comido, tal minha vida.  Mesmo assim, é a hora em que penso com mais calma.  Na época do frio é até melhor.  Depois aparecem as primeiras casas, os moradores indo trabalhar: bom dia, senhor Tenente.  Não sei se é por educação ou medo.  Pego a van e vou pra luta.”
          “Chego primeiro.  Só arma barraca ambulante autorizado.  O Major falou: todo dia quero doismilzinhos na mão.  A sobra é sua paga.  Tenho que ser duro, senão perco a moral.  A turma só respeita pancadaria.  É assim a vida.  Tem dia que amoleço e tento ajudar.  Aquele desgraçado teve coragem de armar barraca fiado para pagar no final do mês.  Acabei deixando.  Ele vendia frutas no cruzamento perto da Cruz Vermelha, guardando a mercadoria nos gavetões refrigerados, lá junto com defuntos.  Quando o Instituto Médico Legal mudou, acabou no hora veja.” 
          “Trabalho mais covarde é do Sargento.  Controla guardadores de carros.  A firma ganha a concorrência e depois passa pra ele administrar.  Coloca um monte de mendigos, pivetes e bêbados, correndo de um lado para outro por um trocado qualquer, só pra cachaça ou crack.  O lucro é grande.”
          “Eu penando por aqui e o Coronel, já aposentado, no conforto da varanda em seu sítio.  Tem dia que penso em ir lá e acabar com todos.  Matar a família toda.  Acabar até com o cachorro.  O ódio é grande.  No dia do acontecido, o desgraçado, com sorriso zombeteiro, falou: trabalhou mal, agora vai ter que pagar o pato sozinho.  Afinal, você era o comandante.  Os soldados apenas cumpriam ordem é isto que o inquérito vai concluir.  A ideia era dar um susto no gerente do tráfico.  Na hora do recreio vocês davam uns tiros, quebravam os vidros e furavam a caixa d’água pondo a criançada para correr.  Traficante também tem mulher merendeira e filhos na escola.  Se não funcionasse, aí que íamos partir pra coisa pior.  O que não podia era um moleque qualquer dizer a um coronel que em ano de eleição não ia mandar nada pro batalhão, pois a Secretaria já estava centralizando o pedágio.  Isto é o fim dos tempos.” 
          “As professoras saíram correndo, chamando as crianças e, num segundo, tudo deserto.  Com o pátio vazio, ia só furar o bebedouro.  Mas a bobinha voltou correndo pra beber água antes da aula.  Puro azar.  Um balaço na coluna.  A imprensa toda com esta história de crime hediondo.” 
          “Enquanto patrulho a praça fico escutando as rezas vindas do Convento de São Francisco.  Tenho vontade de ir lá, me ajoelhar.  Pedir perdão.  Mas acho que não mereço não.   No máximo chego perto e fico escutando do lado de fora da porta.” 

                        Oh Senhor, faze de mim um instrumento da tua paz:
                        Onde há ódio, faze que eu leve Amor;
                        Onde há ofensa, que eu leve o Perdão;
                        Onde há discórdia, que eu leve União;
                        Onde há dúvida, que eu leve a Fé;
                        Onde há erro, que eu leve a Verdade;
                        Onde há desespero, que eu leve a Esperança;
                        Onde há tristeza, que eu leve a Alegria;
                        Onde há trevas, que eu leve a Luz.

          “Hoje, sempre fico mais animado.  É festa de São Francisco.  A praça lotada, o povaréu indo rezar, comprando mais, minha paga aumentando.”

          A gritaria cortou a paz da manhã festiva.  O aleijadinho estava dando banho no Sargento.  Cobrava o dobro pelo estacionamento.  Embolsava o lucro todo.  Miliciano não perdoa.  Quebrou as muletas do infeliz e metia-lhe pontapés. 
“Covardia no dia do Santo?  Nunca.  Empurrei o Sargento, livrando o menino todo ensanguentado.” 
Como não se põe a mão em homem, a resposta foi rápida.  Em via pública, nada de escândalos.  Não usou a Mauser.  Preferiu a 22 que levava presa na perna.  Único e certeiro tiro na artéria femoral – asséptico.
O Tenente, conhecedor de matar e morrer, apertou o furo com os dedos, mesmo sabendo inútil.  Cada um tem sua hora.  Esta era a sua.  Apenas alguns segundos.  Nem tempo para rezar um pedacinho de salverainha.  Só admirar o céu. 
O olhar passou pela silhueta de concreto dos prédios, que emoldurava o azul celeste, pousou no Convento de São Francisco, onde nunca entrara.  O trânsito parou.  Ambulantes silenciaram.  A ladainha do povo rezando:

            Oh Mestre, faze que eu procure menos
            Ser consolado do que consolar;
            Ser compreendido do que compreender;
            Ser amado do que amar.

Uns dizem que sorriu.  Para outros, simplesmente o suspiro da morte – a última golfada de ar abandonando os pulmões. 
Mas fato é que todos viram alguma coisa durante a reza final:

            Porquanto
            É dando que se recebe;
            É perdoando que se é perdoado;
            É morrendo que se ressuscita para a Vida Eterna.

Era dia de São Francisco. 
          Dia de Governador, Prefeito, Secretário rezar.
          Cardeal abençoar.

Nota:

Oração, São Francisco de Assis – Tradução de Manuel Bandeira.  Antologia Poética, Henriqueta Lisboa, Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro – 1961.