Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Testemunho 2014: Um dia ensolarado no Rio

Teócrito Abritta
            Teócrito Abritta, 68 anos, é Físico e Escritor. Foi Professor do Instituto de Física da UFRJ, colunista do jornal Montbläat, publicando quase duzentos artigos, crônicas e contos. Tem também colaborado em diversas publicações na Internet, em boletins de empresas, partidos políticos e blogs, bem como em revistas literárias. Publicou os livros “Memória, História e Imaginação” (2010), “Cidades de Memórias” (2011) – primeiro lugar em Crônica UBE/RJ (2012) e “Os Meus Papéis” (2013) – terceiro lugar em Crônica UBE/RJ (2014), pela Oficina do Livro Editora. Participou de diversas antologias. Escreveu prefácios para livros e apresentações de exposições artísticas.


Um dia ensolarado no Rio

...é assim:
          Podemos iniciar com uma visita à Natureza, admirando o colorido tapete vermelho-púrpura da floração de um Jambeiro que sobrevive nos jardins do Instituto Moreira Salles (V. Figura 1).
          Volta aos tempos da infância, da molecada empanturrando-se de jambos pelas ruas da cidade.
          Memória apagada pela pobre consciência ambiental.  Árvores impiedosamente abatidas com a alegação de que seus frutos e flores destruíam os carros, corroendo-lhes as pinturas.
          O culto do automóvel celebrando a ascensão social.

          Que tal refugiar-nos em pedaços do Rio Antigo?
          Visitar a Rua do Lavradio e adjacências?
          Admirar belos casarões emoldurados pelo céu azul.  Participar de uma Roda de Samba no Armazém do Senado.
          Comer pipoca – salgada ou doce.
          Um chope no Bar Brasil, ou até mesmo comer orelha de porco com caipirinha no meio da rua, admirando a imagem do recorte arquitetônico contra o glorioso azul celeste, refletida em uma poça de esgoto!
          Andar sobre velhos pisos de granito ou nos arabescos de ladrilhos hidráulicos.  Cortar cabelo em uma barbearia popular ou de “elite”, com cadeiras forradas com roto veludo vermelho e espelhos com molduras douradas descascadas.
          Explorar sinistros ambientes, atravessando a servidão de passagem sob as ruínas de um casarão incendiado, para, no final, descobrir pequena vila dos tempos antigos, com pessoas conversando sentadas em cadeiras defronte suas casas.
          Visitar velhos antiquários, escutar o pregão de leiloeiros:
Estamos mudando de ramo.  As peças estão baratíssimas.  Arrematei quase tudo de um luxuoso, e antigo, navio europeu que foi desmontado num estaleiro de Niterói.  Amanhã faremos um leilão.”

Quanto dão?  Quanto dão? 
Quem dá mais?  Quem dá mais? 
Esta bengala de castão de ouro!
Esta arca colonial!
Este faqueiro de prata!
Esta louça azul de Macau! (1)

“Com sorte podem ver a fumaça da última sopa na terrina ou os vestígios dos lábios da duquesa na borda daquela xícara com asa quebrada!”

          Por fim, almoçar sardinhas fritas e um pulpo a la galega na casa Momus, herdeira dos velhos balcões e estantes do Lidador, liquidado pela especulação imobiliária.
          ...beber café, admirar o gigantesco mural da artista Panmela Castro gritando em letras garrafais: Onde Há Respeito Há Paz!

          Ah, mas aquela rua está tão pertinho...
          Parei o carro na pracinha, olhando ao longo da Rua Salvador de Sá os casarões que se desfazem, ruínas de singular exemplo das moradias coletivas construídas pela antiga Prefeitura Municipal do Distrito Federal.  Escadarias de madeira, passadiços em balanço – acesso das habitações – tudo apodrecendo abandonado (V. Figura 2).  Escuto vozes das irmãs e primas por afinidade: “vamos visitar a vovó e a bisa”.  E lá iam todos para o casarão na Rua Presidente Barroso.  Vejo os meninos com suas camisas de jersey, meninas com enormes laçarotes brancos nos cabelos.  Escuto a voz grave de Seu Álvaro, histórias de Dona Annita, Dona Elvira, Dona Geni.  Vejo, do avarandado de madeira, as bandinhas carnavalescas no coreto da Pracinha.  De noite, no enorme Buick, retornávamos com seu Álvaro dirigindo.  Charuto na boca, sempre de terno marrom.  Ao passarmos pela Praça Paris, éramos sempre acordados e após o espetáculo das coloridas fontes luminosas, todos caíam novamente no sono.
          E o Buick rodava macio e vagaroso.

          Assim que contornei a Pracinha Coronel Castelo Branco, mal embiquei na Rua Presidente Barroso, a ordem de comando: “vai vasando senão vai sê pió!  Vai Manso, de ré mesmo...”.
          Não sei se tive medo ou pena.  Jovens com menos de vinte anos de idade portando armas de guerra.

          Há uns vinte anos todo aquele quarteirão havia sido desapropriado visando sua restauração para salvar um pouco de nossa História, registrando o sofrimento das primeiras levas de imigrantes italianos e do espírito dos anarquistas que não se curvavam diante das autoridades e se refugiavam da escravidão “branca” das antigas fazendas cafeeiras do Vale do Paraíba.
          Entra Secretário, sai Secretário de Cultura, tudo continua abandonado e invadido pelos novos deserdados, por Deus e pela sorte (V. Figura 3).
          Hoje preferem as “revitalizações” onde toneladas de vigas com mais de quarenta metros de comprimento se desvanecem no ar.  Preferem construir avenidas sem drenagem para águas pluviais, o “bota tudo abaixo”, as construções descartáveis.
          Empreiteiras felizes, ganho fácil, voto barato.

          Há dez anos, quando ali estive, foi diferente.  Na rua meninas brincando de amarelinha.  Nos terrenos baldios, onde casarões já desabaram, meninos brincando com bolas de gude ou cerca-terreno.  Pessoas conversando nas calçadas. 
          Assim que parei em frente ao número 87 (V. Figuras 4 e 5), todos se assustaram.  “Não sou polícia nem fiscal da prefeitura, apenas quero tirar uma fotografia deste casarão onde morou a família de meu bisavô”, declarei.
          Tudo voltou ao normal.

          Na década de oitenta do século dezenove, partiu de uma pequenina aldeia, próxima da cidade de Fagnano Castello, província de Cosenza, sul da Itália, um grupo de moradores.  Alguns aportaram nos Estados Unidos, outros no Rio de Janeiro, Santos e Buenos Aires.
          No Porto do Rio desembarcaram os irmãos Benjamin e José Abritta, com suas famílias e a irmã solteira Rosa.
          Já instruídos, ainda na Itália, deram nomes falsos aos funcionários da imigração, escapando do envio compulsório ao Vale do Paraíba.
          Com suas profissões de alfaiate e sapateiro, Benjamin e José sobreviviam às dificuldades do Rio de Janeiro.
          Com o surto de febre amarela e outras insalubridades, rumaram para Minas Gerais. 
          Provavelmente fizeram o trajeto pela estrada de ferro Rio-Três Rios-Porto Novo da Cunha (atual Além Paraíba)-Cataguases, e, pela antiga estrada de terra da Areia Branca, em carros de bois ou lombo de mulas, chegaram ao povoado de Espírito Santo do Empoçado, atual Cataguarino.(2)
          Benjamin passou a dedicar-se ao comércio de café e mais tarde retornou ao Rio, comprando a casa na Rua Presidente Barroso, onde três gerações de sua família moraram.
          No Rio, Benjamin chegou a enriquecer, tendo casa de comércio na Rua da Carioca.  Acabou falido.  Todo o dinheiro que ganhava era para ajudar seus compatriotas que aqui aportavam.
          Até hoje guardo na memória aquela cena do meu pai fazendo uma reverência e beijando a mão de Dona Angelina, viúva de Benjamin.  Toda a criançada ficava na soleira da porta, admirando a Mamma na penumbra, em meio à santaria, iluminada apenas pela chama de uma vela.  Pausadamente ia falando uma língua que ninguém entendia – esquecera o italiano e nunca aprendera o português.  Naquele centenário rosto enrugado, sobrevivia o dialeto de sua infância, de sua pequena aldeia.  Verdadeiro fóssil vivo de uma língua morta.


          A história poderia terminar aqui.  Mas meu cerne ordena que continue.  Que suba a Ladeira da Misericórdia e escute do Oficial de Dia no Instituto Geográfico do Exército, que funciona na outrora Fortaleza da Misericórdia: “Visitas estão suspensas até ordem superior.  Afinal o Morro da Providência não é longe e temos armas e bens a zelar.  Bom, neste caso, Professor, permitirei, por minha conta e risco, breves minutos de permanência junto à guarita com vista para a região portuária” (V. Figura 6).
          E assim, aquela fortaleza, que já teve “36 bocas de fogo e 1.000 balas de diferentes calibres”, é abatida pela segunda vez.  A primeira por perturbar a paz episcopal com suas salvas de canhões.  Hoje, pela tolerância dos nossos governantes com o crime organizado.

          A visão esplendorosa da Baía da Guanabara, as palavras do Biólogo Mário Moscatelli:

            Depois de gastos mais de um bilhão de dólares no Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, que não gerou expressivas melhorias ambientais, e agora está recebendo mais quinhentos milhões de dólares na esperança que esse dinheiro seja mais bem gerido, o que se constata é que o Rio de Janeiro, assim como o resto do país, naufraga nas próprias fezes.  Longe de ser um problema de falta de recursos, o que salta aos olhos é a falta de interesse, de vontade política e a mais completa falta de gerenciamento primário dos recursos financeiros.  As manchete dos jornais dizem tudo: 7% de 114 obras estão prontas e 60% atrasadas, paralisadas ou não iniciadas.  Enquanto a “burocracia” domina, os superfaturamentos abundam e a degradação ambiental dos corpos d’água e na Saúde Pública dominam o cenário nacional, a certeza da impunidade de irresponsáveis administradores públicos só faz crescer a certeza de que a sexta economia do mundo vai naufragar em pleno século XXI.

          Quando minha alma crítica perscrutava a dita revitalização da Zona Portuária, enorme prédio – o anexo da Biblioteca Nacional – tal um emissário do mal, surge à minha frente.  Ali, a Cultura não é preservada.  É condenada à morte em quilômetros de prateleiras empoeiradas: documentos, livros, mapas, fotografias, pergaminhos, mofados pelas infiltrações de água, comidos por traças, cupins e até mesmo ratos.  Um cheiro insuportável envolve o ambiente que deveria ser de conservação, pesquisa e conhecimento (3).
          E não me canso de enumerar a lista de nossas perdas já reconhecidas oficialmente:
            “A desídia de nossos governantes é responsável pela destruição de nosso patrimônio cultural, encontrando-se desaparecidas no presente momento mais de 8.000 fotos históricas, mapas e gravuras; cerca de 2.000 livros raros e insubstituíveis; para não falarmos das mais de 1.000 obras sacras que ninguém sabe ninguém viu.  No tocante à fotografia, somente da Biblioteca Nacional foram roubadas 750 fotos, incluindo parte da coleção Thereza Christina Maria, doada por Pedro II e tombada em 2003 pela Unesco comomemória do mundo”.  Para a Delegacia de Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da Polícia Federal, uma estimativa de mil obras furtadas nesta biblioteca é ainda muito conservadora.  Outra perda irreparável foi o roubo de 1.500 fotos – 19 de um total de 27 álbuns de fotografias – de Augusto Malta do acervo do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.  O ataque aos nossos museus e centros culturais intensificou-se nestes tempos de total desvalorização cultural, da perda de valores éticos por nossa intelectualidade, bem como do vergonhoso silêncio em nossos meios acadêmicos, que a tudo tolera por interesses inconfessáveis.  Podemos falar também dos saques no Palácio do Itamaraty, no Museu da Chácara do Céu, na Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFRJ, na Biblioteca da Fundação Oswaldo Cruz, para não falarmos de museus estaduais ou municipais, por exemplo, o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco e a Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo.  Não esquecendo do corte dos recursos de diversos centros culturais, como a Casa de Jorge Amado, abandonando à própria sorte, milhares de documentos sobre a História do Brasil, da Bahia e da grande literatura deste escritor”.


          O dia já caía, tempo apenas para uma visita ao Cais do Valongo, onde, entre 1811 e 1843, desembarcaram mais de quinhentos mil negros escravizados, vindos, em sua maioria, do Congo e de Angola.
          O Valongo foi declarado patrimônio nacional em novembro passado.  Na ocasião, a Unesco considerou o local parte da chamada Rota do Escravo, projeto que foi lançado por esta instituição em 2006 para destacar o patrimônio material e imaterial relacionado ao tráfico de escravos no mundo.  Este cais foi construído para ser ponto de desembarque e comércio de escravos.  Em 1843 foi transformado no Cais da Imperatriz para receber Theresa Christina, que se casaria com D. Pedro II.  Em 1911 esta área foi aterrada, o passado soterrado, dando lugar à Praça do Commercio

          Já anoitecendo, chego em casa.  Passo os olhos nos jornais.  Duas notas escondidas em páginas secundárias:
          “Toma posse no Palácio Gustavo Capanema, blá-blá-blá, o Comitê Consultivo da Candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade, composto por membros de associações sociais e comunitárias, representantes das três esferas governamentais; fulano, sicrano e beltrano”.
          “O Ministério da Cultura autorizou a captação de R$ 3.526.900,00 para a turnê que irá celebrar os cinquenta anos de carreira da cantora fulana de tal.  Em 2011 essa cantora foi alvo de uma polêmica por seu projeto para um blog de poesia autorizado a captar R$ 1,3 milhão pela Lei Rouanet”.
          O dinheiro público, que falta na Cultura, indo para o ralo. 


          A título de epílogo:
          “Essa menina já está parecendo uma intelectual. Quanto mais souber, mais infeliz será.”
Do conto O Espartilho, de Lygia Fagundes Telles, onde a patroa passa a trancar uma estante onde ficavam os dicionários e livros – preocupada com a mania da empregada de consultar o pai-dos-burros.


          Desesperanças?
          Não.
          A minha Escrita de Resistência
          é a minha Esperança.




Figura 1 – Jambeiro, Instituto Moreira Salles.  Foto T.Abritta.


Figura 2 – Casarão em ruínas na Rua Salvador de Sá.  Foto T.Abritta.


Figura 3 – Área que já deveria ter sido restaurada
no centro do Rio de Janeiro. Google Maps.


Figura 4 – Rua Presidente Barroso 87. Foto T.Abritta.


Foto 5 – Rua Presidente Barroso 87 (detalhe da fachada). Foto T.Abritta.


Figura 6 – Fortaleza da Conceição. Foto T.Abritta.
Notas:
(1) Intertexto com fragmentos da poesia Leilão de Mauro Mota.
(2) Exma. Família Abritta, Maria Joana Neto Capella, Edição do Autor, 2004.
(3) No conto A Morte e a Morte de Erivaldo (publicado em Os Meus Papéis, Teócrito Abritta, Oficina do Livro Editora, 2013) abordamos também o abandono de um dos maiores patrimônios ferroviários do mundo que está sendo vendido como sucata, na região da Leopoldina, Rio de Janeiro.

Fotografias da Rua do Lavradio e imediações, bem como do mural da artista Panmela Castro podem ser vistas nos ensaios fotográficos Um dia Ensolarado no Rio e Onde Há Respeito Há Paz.  Procurar em “Álbuns” no link abaixo:











sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Convite para cerimônia de recebimento dos Prêmios Literários UBE/RJ 2014





Tenho o prazer de convidar para a cerimônia de entrega dos prêmios da UBE-RJ (União Brasileira dos Escritores) de 2014, quando receberei, pelo terceiro lugar na modalidade Crônica, o Prêmio Alejandro Cabassa, com o livro “Os Meus Papéis”.

A cerimônia terá início às 15 horas do dia 24 de outubro, na Academia Brasileira de Letras, Av. Presidente Wilson 203, Castelo.
Rio de Janeiro-RJ.

Sobre a Escrita Ficcional


"Escrever é como abraçar um corpo que não se vê"

Bernard Noël



Um Corpo Invisível.  Foto T.Abritta, 2014.


“Mais que os beijos, são as coisas escritas que unem as almas”
John Donne


Escrita Corporal.  Foto T.Abritta, 2014


Errâncias

          Tal pássaro peregrino pousei na claraboia.  Breve parada no voo sem fim desta rota infinita.

          Com a luz do dia admirei.  No brilho das estrelas penetrei a cor capitosa de pele sinuosa: cabelos escorrendo em curvas de olhar.  Boca molhada insinuando um desejar, um moldar de seios aconchegantes no imaginário abraçar. 

          Frio insensível espírito errante.  Sete continentes a percorrer.  Sete véus a desvendar.  Carnes vibrantes a revelar...

          A hora é de partir.  Rumo errático na chegada sem fim.
          Apenas tênue brilho estelar. 
          Apenas uma claraboia a iluminar.


          Frio insensível espírito errante. 

Texto do livro "Os Meus Papéis".


Voo.  Galápagos, Equador.  Foto T.Abritta, 2000.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Um Refugiado Ambiental

Hoje, 15 de outubro, dia do professor, recordamos o Educador  Paulo Freire que caiu no esquecimento juntamente com seu "Plano de Alfabetização de Adultos".  Primeiro. pela Ditadura, agora enterrado pela "Nova Direita" brasileira que cultua a ignorância como valor supremo para manterem-se no Poder.  Abaixo  uma crônica publicada em 2007, no Montbläat, e no meu livro "Memória, História e Imaginação", onde falo um pouco deste plano de alfabetização e  do desrespeito ambiental, fruto da ignorância associada à corrupção.

          O Noctilio leporinus é um morcego de pelo amarelo e patas longas, cuja espécie é considerada extinta na Amazônia, seu habitat natural, onde devido a sua peculiaridade de alimentar-se de pequenos peixes era conhecido popularmente por morcego-pescador.  Este poderia ser um registro definitivo de mais uma espécie animal desaparecida, mas felizmente este escorraçado brasileiro foi redescoberto na costa norte do Peru do outro lado da Cordilheira dos Andes.  Podemos dizer que tal morcego-pescador é o primeiro refugiado ambiental que teve que voar sobre montanhas geladas, enfrentando ventos glaciais, o ar rarefeito e toda sorte de dificuldades alimentares para tentar a vida no desértico litoral peruanoInfelizmente, para sobreviver, este pequeno animal teve que se portar tal qual os exilados econômicos mexicanos que atravessam o Rio Bravo, pulam muros de concreto e cercas de arame farpado – passando através das balas dos membros dos Clubes do Rifle que se divertem “abatendo” latinos – para tentar a vida além da desértica fronteira americana.
          A odisséia deste morcego é um alerta de que muito de nossa rica biodiversidade pode desaparecer sem deixar nenhum registro, que, com os avanços da ciência genética, com a informatização e a facilidade da pesquisa científica, freqüentemente são registradas novas espécies de animais e vegetaisRecentemente dois novos velhos brasileiros deram o ar da sua graça: no Parque Nacional Grande Sertão Veredas, entre Minas e Bahia, foi descoberto o lagarto Stenocercus quinarius e no Parque Nacional da Serra das Confusões, no Piauí, o lagarto Stenocercus squarrosus.  Podemos falar também na infinidade de pássaros que ainda são redescobertos pela ciência, como a Aratinga pintoi, em Monte Alegre no Pará, conhecido localmente como cacaué, e mesmo perto de uma represa da Grande São Paulo, foi descoberto um novo pássaro batizado de bicudinho-do-brejo-paulista.
          Mas esta história toda não sensibiliza o Presidente Lula, que praticamente entrou no governo sob a égide de um crime ambiental.  Ainda em abril de 2003, em visita a Buíque, no agreste pernambucano, onde Lula foi lançar o seguro-safra, ele e toda a sua comitiva participaram do massacre de uma cobra-coral morta a pauladas e pisoteada.  Especialistas em Direito alertaram que os responsáveis pela morte do animal eram passíveis de autuação no artigo 29 da Lei de Crimes Ambientais, que a cobra-coral é um animal da fauna brasileira.  Foram criticados e um conhecido jornalista escreveu “Tudo o que Lula precisa na vida é de um matador de cobra-coral ao seu lado”.  Criou-se o monstro que agora declara “que alguns se preocupam com cinco ou seis espécies de peixepara mostrar o seu desagrado com os relatórios de impacto ambiental das hidrelétricas do Rio Madeira.  O nosso presidente prefere esconder as suas incompetências governamentais empurrando para cima da sociedade brasileira hidrelétricas que, após dez anos de funcionamento, resultarão em um imenso areal poluído de mercúrio, não tendo mais capacidade de geração de energia, com o agravante de destruir a fauna do Rio Madeira deixando milhares de ribeirinhos sem meios de subsistência, com o desaparecimento dos Dourados, Jatuaranas, Tambaquis, Pacus e outras 463 espécies de peixe, muitos existentes neste rio
          A fúria de Lula contra os bagres tem um sério agravante, configura-se como um desrespeito à nossa Constituição Federal que tem um capítulo inteiro dedicado às questões ambientais, além de vários parágrafos relacionados ao tema distribuídos em outros capítulos.  Esta lei maior considera um dever do poder público, não a preservação do meio ambiente e da vida, como a promoção da educação ambiental. 
          Se não fosse a nossa tradição de impunidade protegida pelo foro privilegiado, onde a jurisprudência reinante é “hoje eu absolvo para ser perdoado no futuro”, Lula deveria no mínimo ser obrigado a voltar para a escola onde poderia aprender um pouco sobre equilíbrio ecológico e todos aqueles temas que felizmente entusiasmam as nossas crianças que têm a sorte de freqüentar uma sala de aula.
          Eu não matricularia o nosso presidente em uma escola formal, onde ele poderia ser promovido automaticamente e diplomado tão ignorante como entrou.  Aproveitaria para homenagear o educador Paulo Freire, falecido há dez anos, levando Lula a participar do método de Educação de adultos desenvolvido por este grande brasileiro banido pelos golpistas de 1964 e até hoje esquecido pelas elites do passado, do presente e do PT que preferem um povo ignorante, manipulável. 
          O método Paulo Freire não ensina apenas a escrever palavras, ele leva o homem a pensar o mundo, a sociedade e todos os processos que o envolvem, conscientizando-o para uma vida digna e plena.  O diferencial deste método de alfabetização de adultos é que ele respeita a cultura dos educandos, sendo baseado em seu universo vocabular de onde são selecionadas as palavras de maior significado cultural e emocional.  Deste subconjunto de palavras, são escolhidas aquelas interessantes do ponto de vista fonético para o processo de alfabetização.
          No caso de Lula não teríamos grande dificuldade em selecionar o seu universo vocabular, que, com uma simples consulta aos seus últimos discursos, aparecem com freqüência: churrasco, picanha, futebol, sexo, hidrelétrica, bagre, elite, companheiro, mensalão, e vamos por afora.
          Nas primeiras aulas de Lula poderíamos enfocar alguns temas comuns a uma pessoa com mais de sessenta anos, como medicamentos, pressão alta etc.  Assim, para mostrar a relação entre alguns insignificantes animais (obviamente do ponto de vista do Presidente) e o nosso cotidiano, vamos falar da jararaca e de um dos medicamentos anti-hipertensivos mais usados no mundo que é o Captopril.  Este medicamento foi sintetizado tendo como inspiração substâncias encontradas, em 1965, no veneno da jararaca pelo farmacologista Sérgio Henrique Ferreira, da USP em Ribeirão PretoOutro fato interessante vem da observação de uma gelatina viscosa e transparente que protege a Phyllomedusa hipocondrialis da desidratação e também de seus predadores por conter uma mistura de proteínas tóxicas.  Este nome pomposo é o apelido científico para uma pequena perereca, que vive sob o sol intenso da caatinga do Rio Grande do NorteAnálise recente desta secreção mostrou que ela é rica em compostos capazes de eliminar bactérias e reduzir a pressão arterial.
          Para uma pessoa não acostumada a ler e a meditar, que passou a vida inteira gritando palavras de ordem ou repetindo frases de efeito, creio que por hoje devemos encerrar esta aula, propiciando um pouco de material para as piadinhas presidenciais, falando dos estudos científicos que têm sido feitos no veneno da aranha Phoneutria nigriventer, conhecida popularmente como armadeira.  Cientistas observaram que homens picados pela aranha apresentavam diferentes sintomas, incluindo o priapismo (ereção do pênis dolorosa, mas persistente). 
          Para terminar, enquanto Lula se diverte com o “Rock das Aranhas”, vamos nos despedir com os últimos versos de Paulo Freire, em sua poesia A Escola.

...numa escola assim vai ser fácil
estudar, trabalhar, crescer,
fazer amigos, educar-se,
ser feliz.




________________________________________________________________
Referências
- Pesquisa FAPESP - 132, fevereiro de 2007; 133, março de 2007 e
  134, abril de 2007
- Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 225.
- Educação como prática da Liberdade, Paulo Freire.

- Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire.