Botswana, Foto T.Abritta, 2008

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Cantares de Amar Terrestre

...e muitos acreditavam que o Mar seria Eterno, Infinito e Indestrutível.

          Com grande tristeza, assistindo a esta mega destruição ambiental patrocinada por empresários e políticos desonestos, lembrei-me deste belo poema de Juju Campbell Penna, onde faz um paralelo do Mar/Terra, Masculino/Feminino.

          Abaixo uma cópia autografada de seu livro O Gato, publicado em 1970.


domingo, 22 de novembro de 2015

Portas da Percepção

... e o milagre do inteiro se desabrochou
da existência, em toda a sua nudez.
Aldous Huxley in Portas da Percepção.
Oito letras sete estrelas
o anel celeste a cintilar
sete véus a romper
segredos a penetrar.

Ardor e prazer
desejo a desejar
veludo a acolher
muita água pouco mar.

Chaves que trancam
aldrabas que batem
albarda labarda badalar.

Ferrolho que suspira
porta que geme

alma que se despe.



Porta que se abre.  Foto T.Abritta, 2013.


Nota: Poema publicado na Antologia Verso Prosa Testemunho, Oficina do Livro, 2015.


sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Transparências Montanhosas


A pedra ao longe se faz macia.
Nas sedutoras curvas das transparências
suspiram tênues névoas
em gemidos inaudíveis.


Transparências Montanhosas.  Nogueira, Petrópolis.  Foto T.Abritta, 2011.



segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A Cabeça de Cera


          Eu gostava de observar a Igreja da Penha da janela do meu trabalho.  No verão, o por do sol ia se deslocando cada vez mais para o sul, até o poente ficar atrás da igreja, transformando-a em raiada silhueta, emoldurada por infinitos tons avermelhados intensificados pela poluição atmosférica.  Ironias da degradação ambiental.  Ano a ano o ciclo se repetindo.  Às vezes esta exuberância trazia lembranças da minha cabeça.  Coitada, toda quebrada, colada com durex, repousando eternamente junto com pernas, braços e outras anatomias de cera.  Dizem que de tempos em tempos tudo é derretido, virando velas votivas, posto não existir espaço para tantos objetos de promessas.  Entretanto, quem sabe não está sob a guarda do ciclo solar, transcendendo nossas existências?
          Outro dia cheguei até a sentir a fumaça do ônibus caolho, apelidado de Camões.  Memórias daquele dia de longo retorno – minha avó tinha vindo de Belo Horizonte e lá fomos, junto com minha mãe, pagar a promessa.  Da Penha até a Central do Brasil e de lá até o Jardim Botânico, no 12, Estrada de Ferro-Leblon (V. Figura 1), que ia vagaroso e fumarento pela Voluntários da Pátria.  Mal saímos da igreja, caiu um temporal inundando tudo.  Mas a missão estava cumprida. 
          Nem me lembrava do acidente.  Mas a promessa tinha sido feita.  Só tenho vaga imagem de nós todos indo comprar a cabeça em uma loja em frente ao Cemitério São João Batista.  Na vitrine podiam-se escolher cabeças de adultos ou crianças; meninos ou meninas (V. Figura 2).  A minha, a menorzinha, foi guardada, cuidadosamente embrulhada, em cima do guarda-roupa de nossos pais, esperando pela nossa avó. 
          O problema é que assim que minha mãe saía, ainda nem tinha descido as escadas, e já gritavam: vamos pegar a cabeça do Léo.  Todos subiam na cabeceira da cama, de onde alcançavam o embrulho e começava a confusão, e meus tormentos.  Afinal era minha cabeça.  Não podia permitir tamanho desrespeito.  No fim sempre o mesmo – o estrado da cama quebrado com a pulação e minha mãe colando a cabeça sob olhares assustados.  Maior sofrimento era escutar baixinho nos ouvidos: promessa com cabeça colada não vale, vai ficar doido como castigo
          Hoje fico pensando: será que minha cabeça não era mais feliz servindo de brinquedo pra criançada do que depositada solitariamente, perdido ex-voto, entre peças fúnebres?

          E vozes infantis ecoavam: vamos pegar a cabeça do Léo... o quê que a barata faz?  Voaaaaa.


Figura 1 – Ônibus Camões.  Foto de 1955, autor desconhecido.


Figura 2 – Capela Nossa Senhora da Cabeça, Bairro do Jardim Botânico, Rio de Janeiro. Foto T. Abritta, 2009.




domingo, 4 de outubro de 2015

Dia de São Francisco



          “Gosto mais é do amanhecer, mesmo acordando com a visão da menina.  A noite é pior.  Sempre mesmos sonhos.  Ela caindo, a cara dentro do bebedouro, o dedinho ainda pressionando, a água molhando seus cabelos.  Depois vai escorregando, devagarinho, como filme em câmera lenta, e cai no chão, tremendo com os olhos arregalados, até ficar imóvel na poça de sangue.  Pela manhã, apenas seu sorriso.  De uniforme, fitinha no cabelo – o retrato nos jornais no dia do enterro.  Matar criança não tem perdão.  Nunca serei perdoado.  É assim mesmo.  Até mulher e filhos foram embora.  Depois de doze anos de cadeia, ainda bem que sobrou meu sítio neste buraco afastado.  Senão ia acabar aceitando a proposta para morar na Divineia e ser segurança daquele coronel africano que veio para treinar traficantes.  Na cadeia não foi nada fácil.  No dia da chegada fui logo mostrando as garras.  Que líder coisa nenhuma.  Cortei sua garganta, meti a cabeça na privada imunda, arriei a calça enfiando-lhe um cabo de vassoura.  Mesmo com essa cena horrorosa, ainda tive que mandar mais dois engraçadinhos para o inferno até entenderem quem eu era.  Meu pai sempre falava: é melhor fazer academia de polícia do que ir para as forças armadas.  Você vai ganhar o mesmo e não tem que começar carreira nestes fins de mundo do Brasil, cheios de malária.  Acabou dando nisto.  O Major, que aprendeu a trabalhar comigo quando era aspirante, rindo: segurança de político?  Nem pensar, você está mais do que babado!”
          “A caminhada matinal é o melhor do dia.  Tudo ainda escuro, sozinho, nem com os santos podendo contar; apenas com o 38 enferrujado.  Nem raias mais tem.  O cano todo comido, tal minha vida.  Mesmo assim, é a hora em que penso com mais calma.  Na época do frio é até melhor.  Depois aparecem as primeiras casas, os moradores indo trabalhar: bom dia, senhor Tenente.  Não sei se é por educação ou medo.  Pego a van e vou pra luta.”
          “Chego primeiro.  Só arma barraca ambulante autorizado.  O Major falou: todo dia quero doismilzinhos na mão.  A sobra é sua paga.  Tenho que ser duro, senão perco a moral.  A turma só respeita pancadaria.  É assim a vida.  Tem dia que amoleço e tento ajudar.  Aquele desgraçado teve coragem de armar barraca fiado para pagar no final do mês.  Acabei deixando.  Ele vendia frutas no cruzamento perto da Cruz Vermelha, guardando a mercadoria nos gavetões refrigerados, lá junto com defuntos.  Quando o Instituto Médico Legal mudou, acabou no hora veja.” 
          “Trabalho mais covarde é do Sargento.  Controla guardadores de carros.  A firma ganha a concorrência e depois passa pra ele administrar.  Coloca um monte de mendigos, pivetes e bêbados, correndo de um lado para outro por um trocado qualquer, só pra cachaça ou crack.  O lucro é grande.”
          “Eu penando por aqui e o Coronel, já aposentado, no conforto da varanda em seu sítio.  Tem dia que penso em ir lá e acabar com todos.  Matar a família toda.  Acabar até com o cachorro.  O ódio é grande.  No dia do acontecido, o desgraçado, com sorriso zombeteiro, falou: trabalhou mal, agora vai ter que pagar o pato sozinho.  Afinal, você era o comandante.  Os soldados apenas cumpriam ordem é isto que o inquérito vai concluir.  A ideia era dar um susto no gerente do tráfico.  Na hora do recreio vocês davam uns tiros, quebravam os vidros e furavam a caixa d’água pondo a criançada para correr.  Traficante também tem mulher merendeira e filhos na escola.  Se não funcionasse, aí que íamos partir pra coisa pior.  O que não podia era um moleque qualquer dizer a um coronel que em ano de eleição não ia mandar nada pro batalhão, pois a Secretaria já estava centralizando o pedágio.  Isto é o fim dos tempos.” 
          “As professoras saíram correndo, chamando as crianças e, num segundo, tudo deserto.  Com o pátio vazio, ia só furar o bebedouro.  Mas a bobinha voltou correndo pra beber água antes da aula.  Puro azar.  Um balaço na coluna.  A imprensa toda com esta história de crime hediondo.” 
          “Enquanto patrulho a praça fico escutando as rezas vindas do Convento de São Francisco.  Tenho vontade de ir lá, me ajoelhar.  Pedir perdão.  Mas acho que não mereço não.   No máximo chego perto e fico escutando do lado de fora da porta.” 

                        Oh Senhor, faze de mim um instrumento da tua paz:
                        Onde há ódio, faze que eu leve Amor;
                        Onde há ofensa, que eu leve o Perdão;
                        Onde há discórdia, que eu leve União;
                        Onde há dúvida, que eu leve a Fé;
                        Onde há erro, que eu leve a Verdade;
                        Onde há desespero, que eu leve a Esperança;
                        Onde há tristeza, que eu leve a Alegria;
                        Onde há trevas, que eu leve a Luz.

          “Hoje, sempre fico mais animado.  É festa de São Francisco.  A praça lotada, o povaréu indo rezar, comprando mais, minha paga aumentando.”

          A gritaria cortou a paz da manhã festiva.  O aleijadinho estava dando banho no Sargento.  Cobrava o dobro pelo estacionamento.  Embolsava o lucro todo.  Miliciano não perdoa.  Quebrou as muletas do infeliz e metia-lhe pontapés. 
“Covardia no dia do Santo?  Nunca.  Empurrei o Sargento, livrando o menino todo ensanguentado.” 
Como não se põe a mão em homem, a resposta foi rápida.  Em via pública, nada de escândalos.  Não usou a Mauser.  Preferiu a 22 que levava presa na perna.  Único e certeiro tiro na artéria femoral – asséptico.
O Tenente, conhecedor de matar e morrer, apertou o furo com os dedos, mesmo sabendo inútil.  Cada um tem sua hora.  Esta era a sua.  Apenas alguns segundos.  Nem tempo para rezar um pedacinho de salverainha.  Só admirar o céu. 
O olhar passou pela silhueta de concreto dos prédios, que emoldurava o azul celeste, pousou no Convento de São Francisco, onde nunca entrara.  O trânsito parou.  Ambulantes silenciaram.  A ladainha do povo rezando:

            Oh Mestre, faze que eu procure menos
            Ser consolado do que consolar;
            Ser compreendido do que compreender;
            Ser amado do que amar.

Uns dizem que sorriu.  Para outros, simplesmente o suspiro da morte – a última golfada de ar abandonando os pulmões. 
Mas fato é que todos viram alguma coisa durante a reza final:

            Porquanto
            É dando que se recebe;
            É perdoando que se é perdoado;
            É morrendo que se ressuscita para a Vida Eterna.

Era dia de São Francisco. 
          Dia de Governador, Prefeito, Secretário rezar.
          Cardeal abençoar.

Nota:

Oração, São Francisco de Assis – Tradução de Manuel Bandeira.  Antologia Poética, Henriqueta Lisboa, Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro – 1961.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

7 de Setembro de 1959.


Alunos do primeiro ano ginasial do Colégio Militar de Belo Horizonte, abrindo o desfile de sete de setembro na Avenida Afonso Pena,
Belo Horizonte.

          Como vemos na imagem, ficávamos todos iguais.  Já havia avistado a minha avó – moradora em Belo Horizonte –, que estava na calçada, tendo respondido ao meu aceno.  Mas e do Rio?  Não veio ninguém?
 Triste, no final do desfile aguardava a minha vez de embarcar nos caminhões que nos levariam de volta para o internato do Colégio.
Mas foi um grito muito alto: Téééééééo - a voz do meu irmão, bem ao meu lado!
Tempo apenas para abraçar o Mino e meu pai, que tinham que ir para a rodoviária e tomar o ônibus de volta para o Rio.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Ode à Escada

Sobe desce
vai vem
entra sai
para cima
para baixo
trepa desce
ofega
suspira.



Escada Freudiana.  Foto T.Abritta, Paris, 2004.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Arcobotante


Arcobotante, Catedral de Milão. Foto T.Abritta, 2002.

Ande nas nuvens
descubra novos caminhos
sonhe flutue
ouse arrisque
ascenda aos céus.



quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O Tatu e a Rainha

Há oito anos...


          Viajando pelo interior do Rio Grande do Sul, parei em um simpático restaurante em Cambará do Sul onde tocava um seleto repertório de música regional gaúcha.  Uma das canções era verdadeira ode à natureza e ao tatu em particular.  E ia a música cantando a esperteza deste animal, dizendo: “o tatu se esconde aqui, o tatu se esconde ali” e assim por diante.  Mas ao examinar o cardápio, fiquei pasmo com a variedade de pratos de tatu que apresentava.  Pensei indignado como andava o desrespeito a fauna silvestre por estas bandas.  O garçom, acostumado com forasteiros, vendo meu espanto se adiantou e me explicou que não vendiam carne de tatu, pois era um crime ambiental e que aqueles pratos eram na realidade de lagarto. ComoNão é também aquele bicho, é aquela parte do boi que vocês chamam de lagarto e aqui no Rio Grande chamamos de tatu, continuou o paciente garçom acostumado com as esquisitices dos visitantes ecológicosTudo esclarecido, foi servido um belo prato de carne bovina, um macio lagarto à moda gaúcha
          As minhas preocupações não eram totalmente infundadas.  Pela Lei Federal no 5.197/67, a caça é proibida em todo território nacional, sendo, entretanto, liberada na unidade da federação que através de estudos científicos determine quais os animais que não estejam ameaçados de extinção e que podem ser alvos dos caçadores, a pretexto de promover o equilíbrio ecológico, desde que promovam também uma efetiva fiscalização.  Obviamente esta Lei não tem nenhum fundamento baseado nas Ciências da Natureza, que o equilíbrio ecológico está relacionado a predadores naturaisInfelizmente o único estado brasileiro onde a caça foi permitida sob a égide desta lei foi o Rio Grande do Sul, onde a Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (www.fzb.rs.gov.br) realiza os tais estudos científicos indicando os animais para a matança e as temporadas de caça, o que muito agrada as associações de caçadores locais, como a Associação Gaúcha de Caça e Conservação (sic).  Podemos admitir que em alguns casos, como os javalis vindos de criações paraguaias e o chamado porco monteiro, de origem incerta, que não pertencem a fauna brasileira e causam problemas no Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, recebam um tratamento especialMas problemas como estes devem ser administrados pelo governo federal sob a tutela do IBAMA e não delegados a um determinado Instituto Estadual.  Em tempos de preocupação com a natureza, fica aqui a sugestão para que algum parlamentar com vocação ecológica proponha modificações nesta legislação absurda.
          E a Rainha, onde entra nesta históriaEla tem tudo a ver, pois a caça é uma importante instituição britânica para preencher a ociosidade de sua nobreza que se diverte com suas cargas de cavalaria, toques de clarins, correndo pelos campos acompanhada de dezenas de cães na perseguição de uma assustada raposa.  Os que viram o filme “A Rainha” de Stephen Frears, devem ter estranhado que para cuidar das reações de Harry e Willian, netos da Rainha Elisabeth II, com a notícia da morte de sua mãe Diana em Paris, em 31 de agosto de 1997, eles tenham sido levados a uma caçada na residência de campo de Balmoral, na Escócia, onde estava sediada a família real.  Era como se a notícia da tragédia de Diana, despedaçada em um acidente automobilístico na madrugada deste mesmo dia, fosse lavada com o sangue da caçada, mostrando às crianças que existe um valor maior, que é a realeza e o Império Britânico, que está acima das pessoas.  Afinal de contas, um bom caçador deve ser frio, calculista, muitas vezes até impiedoso e familiarizado com o sangue e a morte.  Estes requisitos são importantes na formação do caráter de futuros dirigentes britânicos, já que seu império colonial passado, sua realeza e agora no presente seus interesses econômicos pelo mundo afora sempre foram garantidos por extrema violência e sacrifício de muitas vidas humanas inocentes, tal qual os animais abatidos em caçadas.
          Um exemplo do modus operandi das forças armadas britânicas pode ser visto no Iraque.  As forças militares americanas, com mais de cento e cinqüenta mil homens, não conseguem assegurar os seus interesses, mesmo com bombardeios, mortes e destruição generalizada e, paradoxalmente, a par da sofisticação dos equipamentos militares, contrata até antigos integrantes dos esquadrões da morte salvadorenhos no seu desesperado esforço repressivoEnquanto isto os ingleses e a sua secular experiência de repressão colonial com uma pequena força militar de 8.000 homens, controla todo o sul do Iraque, assegurando o fornecimento de petróleo em Barsa.  Isto é fruto de um exército profissional que usa técnicas sofisticadas de violência e tortura no trato com a população civil, que é o celeiro de jovens insurgentes que lutam pela sua cultura e seu país.  As tropas britânicas agem sempre discretamente, mas quando alguma notícia de violência vaza para a imprensa, como os recentes casos de espancamentos, abusos sexuais e tortura, o Primeiro Ministro Tony Blair faz um discurso indignado e um júri militar condena os torturadores a penas simbólicas dizendo que apenas cumpriam ordens superiores de “trabalharem duro” e se excederam um pouco em suas missões patrióticas.  Este será o ambiente onde o Príncipe Harry, o filho mais novo do Príncipe Charles e da Princesa Diana, conviverá nos próximos meses, comandando no Iraque uma unidade de doze homens dos esquadrões do Household Calvary Regiment, ao qual pertence e graças a sua formação, desde as primeiras lições de caça, nada estranhará. 
          No filme “A Rainha” tem também uma cena em que Elisabeth II ao desistir de acompanhar seus netos na caçada encontra um belo alce real, que ao encará-la parece despedir-se da vidaLogo depois ecoam tiros, para finalmente a Rainha constatar que o belo animal foi abatido por mãos plebéias.  Nesta seqüência a emoção expressada pela Rainha poderia hipoteticamente estar relacionada ao fato de que no ano de 1952, ao receber a notícia do falecimento do seu pai, Rei da Inglaterra, George VI, ela também estava envolvida com atividades de caça.  A jovem princesa da Inglaterra, então com 26 anos de idade, estava casada há cinco anos com Philip Mountbatten, Duque de Edimbourg e passavam o tempo abatendo impiedosamente elefantes, zebras, leões e toda a rica fauna africana.  Neste ano o jovem casal praticava este reprovável “esporte” no alto das montanhas, em Aberdare, no Quênia, quando chegou um emissário vindo de Nairobi comunicando o falecimento do Rei da Inglaterra. Neste mesmo dia partiram para Londres tendo a Princesa, como filha mais velha do falecido Rei, assumido o Reino.  No caminho de volta o povo saudava a Princesa, mas na verdade não sabiam que se tratava da Rainha da Comunidade BritânicaHoje as ruínas das antigas instalações de caça real, destruídas há algum tempo por um incêndio, são mantidas como um registro desta esta época de violência tendo sido estas montanhas transformadas no Parque Nacional de Aberdare, um refúgio da vida selvagem, onde foi construído o Hotel Treetops, para caçadores de imagens da vida animal usarem suas lentes do alto de suas paliçadas e aberturas, focalizando os animais que diariamente visitam um pequeno lago em sua proximidade
          O hotel tem uma pequena biblioteca onde são encontradas fotos, documentos, registros das caçadas e todo o histórico do período colonial nesta região.
          O governo do Quênia leva a sério a sua política ambiental, fiscalizando efetivamente seus parques e reservas com um verdadeiro exército de rangers armados de metralhadorasEnquanto isto aqui pelo Brasil...

“Caçador Fotográfico”, Hotel Treetops, Parque Nacional de Aberdare,
Quênia – janeiro de 2001.

Montbläat
Rio de Janeiro, 4 de abril de 2007.
Teócrito Abritta



quinta-feira, 30 de julho de 2015

Encontrando Magdalena



          A lua cheia transformava a estrada de terra em caminho prateado.  Suave brisa levantava poeira, formando espessa nuvem de pó branco, fundindo céu e lajedos de pedra sabão.  Parei o carro atraído pela beleza desta noite de inverno.  Saí caminhando, tropeçando aqui e ali, terminando em estreita trilha.  No final, pequena casa rodeada de ora-pro-nóbis (1) floridos.  Planta rara, mas que conhecia do quintal de minha avó em Belo Horizonte.  Estranhei.  Estávamos em julho e a floração deveria ter terminado lá pelo final de abril. 
          No interior da casa uma jovem lavava louças.  Acenei, mas ela parecia alheia, olhar perdido, expressão facial indefinida.  Bati na porta, que estava entreaberta, entrando.  Fiquei observando-a, de costas, lavando e polindo louças, num remelexo de quadris sob o vestido caseiro, de um tecido tão ralo que provocava o olhar.  Aproximei-me e, no que parecia um reencontro festejoso, entre panelas ruidosamente caindo, o paninho de prato que ela usava.  Lá, em bordado delicado li: Magdalena.

          Estrondos metálicos arrancaram-me daquele mundo.  Eram os carrilhões da Igreja de Nossa Senhora do Rosário – a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos – chamando para a missa das seis.  Vista privilegiada da minha janela.  Quase tocava aqueles sinos vibrando ao lado.  Na mesa de cabeceira, um ramo florido de ora-pro-nóbis.  Não havia tempo para pensar.  Muito trabalho a fazer. 
          Tinha sido contratado por um escritório de artes gráficas em Tiradentes para fotografar igrejas barrocas mineiras.  As imagens ilustrariam um livro de poesias, falando não do grandioso, mas do singelo e pouco notado nesta arquitetura: a capela de Santa Quitéria em Catas Altas, e do Padre Faria em Ouro Preto; a Igrejinha de Santana, na Vila de Cocais, e outras, que muitos nunca ouviram falar, como a Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro ou a fachada em pedra sabão, quase em ruínas, da Igreja no povoado de Santo Antônio de Itatiaia, no caminho para Ouro Branco.

          Cedo, despedi-me de Ouro Preto.  No roteiro traçado passaria por Ouro Branco, chegando a Congonhas; daí, Prados, Bichinho e finalmente Tiradentes.
          No caminho dei carona a um falante viajante.  Contava-me histórias inacreditáveis:

          Magdalena era filha de rico e poderoso comerciante.  Teve o azar de apaixonar-se por Zé Boiadeiro.  Acabaram fugindo, acoitando-se em uma moita de ora-pro-nóbis aqui pela região.  Perseguidos, numa escura noite de eclipse lunar – noite que pode trazer sofrimentos, infortúnios e desgraças – foram encontrados.  Zé Boiadeiro acabou estraçalhado pela cachorrada dos capitães-de-mato e a infeliz, encerrada até o final de sua vida em um convento.  Apiedada, Nossa Senhora determinou que nos dias de Lua Azul, e somente nestes dias, dos amores impossíveis, teriam a oportunidade de um reencontro. 
          Ontem ninguém saiu de casa.  Dava até arrepios escutar as tristes cantorias do boiadeiro-encantado levando seu gadinho noite adentro. 

          Muitos quilômetros a rodar.  O carro corria, levantando o pó branco que lembrava a estrada do sonho.  Ontem foi trinta de julho, a segunda lua cheia deste mês.  A outra foi no dia primeiro.  Talvez venha daí esta história de Lua Azul, associada ao muito difícil ou quase impossível, já que é um evento de rara ocorrência – duas luas cheias no mesmo mês.  Estamos no ano de 1996 e a próxima Lua Azul será somente em janeiro de 1999. 

          Chegando a Tiradentes, entreguei o material.  Levei um susto.  Fui recebido por uma arquiteta que era “cuspida e escarrada” (2) a moça da noite anterior.  Não entendi nada. 


Relógio de sol talhado em pedra por Aleijadinho.
Adro da Matriz de Santo Antônio, Tiradentes, MG. Foto T.Abritta, 1996.

          Hoje, tantos anos depois, aqui estou, em Tiradentes, no adro da Matriz de Santo Antônio, admirando o relógio de sol talhado em pedra por Aleijadinho.  Último dia do ano, trinta e um de dezembro de 2009, dia de Lua Azul, das realizações de sonhos e desejos impossíveis.  Por outro lado, ameaças funestas – dia de eclipse.  Quem sabe, o funesto não será atenuado por aqui, já que esta ocultação lunar não é observada em nosso país? 
          Pensei como a expressão Blue Moon, usada em um poema de Shakespeare, chegou aos nossos dias com esta conotação.  Pensei na música (3) de mesmo nome, sendo tomado por sentimentos de solidão e melancolia.  Pensei nos mais antigos registros escritos falando em relógios solares: nas páginas da Bíblia, segundo Isaías (4), o Senhor teria feito a sombra do sol retroceder dez graus no conhecido quadrante de Acaz, em 750 a.C. 
          Fixando o olhar na escala angular gravada por Aleijadinho, há tanto tempo, com tantas dificuldades, por que não seria possível voltar, retroceder ao passado como em Acaz?
          Lentamente fui descendo pela Rua do Padre Toledo.  Esperavam-me para a festa de passagem do ano.  2010 chegava.  O tempo melhorou.  Entre as nuvens, surgiu brilhante lua cheia.  Não parecia azul.  Mas,

If they say the moon is blue, we must believe that it is true (5)


A Título de Posfácio
          A pedido da família de meu amigo, o fotógrafo Lázaro Lokovaks, desaparecido misteriosamente no dia 31 de dezembro de 2009, em Tiradentes, Minas Gerais, escrevi e tenho o prazer de publicar este conto, baseado em suas anotações.  Nas notas havia também um belo poema em língua inglesa, que identifiquei posteriormente como sendo de Stevenson.  Pela beleza e sonoridade (como, por exemplo: versos terminando em oxítonos ou a tripla coliteração final), reproduzo abaixo esta poesia, no original (6), como um Réquiem ao saudoso Lázaro:

Under the wild and starry Sky
Dig the grave and let me lie
Glad did I live and gladly die,
And I laid me down with a will.
This be the verse you’ grave for me:
“Here he lies where he longed to be;
Home is the sailor, home from the sea,
And the hunter home from the hill”.

Notas:
1. Espécie de verdura que fica comestível após o cozimento.  Herança da Cultura dos escravos que descobriram seu valor nutritivo.  O nome vem da crença na proteção divina nos momentos de fome. 
2. Esta expressão é, provavelmente, uma corruptela de “esculpido em carrara”, usada para falar da semelhança entre duas pessoas. 
3. Escrita por Richard Rodgers e Lorenz Hart em 1934 e imortalizada pelo grupo The Marcels.     Ver link: http://www.youtube.com/watch?v=gzG7bPRZvMk

4. Livro de Isaías, capítulo 38, versículo 8.
5. Antiga expressão inglesa: se eles dizem que a lua é azul, nós devemos aceitar como verdade. 
6. Em uma tradução deste poema (o que já é discutível), sem preocupação rímica ou métrica, escreveríamos: Sob o selvagem céu estrelado / Cavem a sepultura e me deixem deitar / Vivi feliz e feliz eu morro, / E me deitei com um derradeiro desejo. / Gravem este verso por mim: / “Aqui ele fica, onde ansiava estar; / De volta o marinheiro, de volta do mar, / E o caçador de volta das montanhas”.