Botswana, Foto T.Abritta, 2008

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A Cabeça de Cera


          Eu gostava de observar a Igreja da Penha da janela do meu trabalho.  No verão, o por do sol ia se deslocando cada vez mais para o sul, até o poente ficar atrás da igreja, transformando-a em raiada silhueta, emoldurada por infinitos tons avermelhados intensificados pela poluição atmosférica.  Ironias da degradação ambiental.  Ano a ano o ciclo se repetindo.  Às vezes esta exuberância trazia lembranças da minha cabeça.  Coitada, toda quebrada, colada com durex, repousando eternamente junto com pernas, braços e outras anatomias de cera.  Dizem que de tempos em tempos tudo é derretido, virando velas votivas, posto não existir espaço para tantos objetos de promessas.  Entretanto, quem sabe não está sob a guarda do ciclo solar, transcendendo nossas existências?
          Outro dia cheguei até a sentir a fumaça do ônibus caolho, apelidado de Camões.  Memórias daquele dia de longo retorno – minha avó tinha vindo de Belo Horizonte e lá fomos, junto com minha mãe, pagar a promessa.  Da Penha até a Central do Brasil e de lá até o Jardim Botânico, no 12, Estrada de Ferro-Leblon (V. Figura 1), que ia vagaroso e fumarento pela Voluntários da Pátria.  Mal saímos da igreja, caiu um temporal inundando tudo.  Mas a missão estava cumprida. 
          Nem me lembrava do acidente.  Mas a promessa tinha sido feita.  Só tenho vaga imagem de nós todos indo comprar a cabeça em uma loja em frente ao Cemitério São João Batista.  Na vitrine podiam-se escolher cabeças de adultos ou crianças; meninos ou meninas (V. Figura 2).  A minha, a menorzinha, foi guardada, cuidadosamente embrulhada, em cima do guarda-roupa de nossos pais, esperando pela nossa avó. 
          O problema é que assim que minha mãe saía, ainda nem tinha descido as escadas, e já gritavam: vamos pegar a cabeça do Léo.  Todos subiam na cabeceira da cama, de onde alcançavam o embrulho e começava a confusão, e meus tormentos.  Afinal era minha cabeça.  Não podia permitir tamanho desrespeito.  No fim sempre o mesmo – o estrado da cama quebrado com a pulação e minha mãe colando a cabeça sob olhares assustados.  Maior sofrimento era escutar baixinho nos ouvidos: promessa com cabeça colada não vale, vai ficar doido como castigo
          Hoje fico pensando: será que minha cabeça não era mais feliz servindo de brinquedo pra criançada do que depositada solitariamente, perdido ex-voto, entre peças fúnebres?

          E vozes infantis ecoavam: vamos pegar a cabeça do Léo... o quê que a barata faz?  Voaaaaa.


Figura 1 – Ônibus Camões.  Foto de 1955, autor desconhecido.


Figura 2 – Capela Nossa Senhora da Cabeça, Bairro do Jardim Botânico, Rio de Janeiro. Foto T. Abritta, 2009.




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