Botswana, Foto T.Abritta, 2008

sexta-feira, 8 de junho de 2012

A Reforma Ortográfica


         Muito se tem falado sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.  Alguns chegaram a ficar indignados.  Mas não precisamos ser tão paranoicos, já que algumas letras foram até reabilitadas e hoje podemos escrever corretamente Kafka e Willian ou chegar a um perfeito equilíbrio entre o Yin e Yang.  Nestas linhas iniciais já eliminamos vários acentos e foram usados legalmente as letras K, W e Y inexistentes, até então, no alfabeto oficial brasileiro.  Ah... temos aquelas complicações dos hífens, com dezenas de regras, contrarregras (contra-regras pela velha ortografia), parágrafos, itens e subitens (será que está correto?). 

         Vamos esquecer as complicações e falar nas vantagens para o enriquecimento de nossa língua. 

         Os portugueses podem ficar tranquilos, já que continuarão a existir, por exemplo, grafias como adopção.  Se fosse escrita como adoção passaria a ler-se adução.  Uma coisa é o verbo adoptar e outra o verbo aduzir!

         Os nordestinos, com a sua pronúncia mais aberta, serão os mais favorecidos, pois passaram a vida toda falando António e Jerónimo e tendo de escrever Antônio e Jerônimo.  Agora as duas escritas serão corretas.  E os mineiros?  Em parte ficarão livres das zombarias por usarem a palavra trem para designar qualquer coisa, qualquer treco.  Os portugueses entram com os seus trens de cozinha, mas o trem da estrada de ferro, em Minas, continua a ser chamado de trem de ferro e em Portugal de comboio. 

         Mas vamos sair dos regionalismos e pensar no enriquecimento vocabular.  As calças jeans, que já foram calças americanas ou rancheiras (em Minas) poderão ser agora chamadas de calças de ganga. 

         E a evolução na ciência e na informática?  Agora temos os ficheiros de ordenador, já que arquivo é tradução de file e as máquinas não computam, apenas ordenam dados de acordo com os programas feitos pelo Homem. 

         Do ponto de vista social, nenhum brasileiro perderá a razão quando um médico português falar que sua esposa tem que tomar uma picainjeção no Brasil – ou quando pedir em um hotel que a mamadeira do bebê seja colocada sobre a piavaso sanitário em Portugal (ver, por exemplo, Dicionário Contrastivo Luso-Brasileiro, Mauro Villar – Ed. Guanabara, 1989 - Rio de Janeiro). 

         Outra grande vantagem é que algumas palavras terão outras acepções e os pais menos preocupações com as baixarias televisivas.  Na Figura 1 mostramos o singelo nome de uma loja portuguesa de artigos infantis.

Figura 1 – “Pra crianças”, loja de artigos infantis.
Foto T. Abritta, Portugal-2003.
         Poderemos também aprender a falar mais “claramente”, como observamos no nome da exposição de joias mostrada na Figura 2. 
Figura 2 – A clareza da linguagem.  Foto T. Abritta, Portugal-2003.

         Para aqueles que ainda não acreditam no enriquecimento da nossa língua, que tal ler Camões e falar mais bonito (V. Figura 3)? 

Figura 3 – Aqui... Onde a terra se acaba e o mar começa...
Foto T. Abritta, Portugal-2003.

         Para outros, que mesmo assim ainda resistem às mudanças, não se preocupem, pois a nossa língua continuará tão bela como o poema abaixo escrito na velha ortografia:


            Língua-mar
A língua em que navego, marinheiro,
na proa das vogais e consoantes,
é a que me chega em ondas incessantes
à praia deste poema aventureiro.
É a língua portuguesa, a que primeiro
transpôs o abismo e as dores velejantes,
no mistério das águas mais distantes,
e que agora me banha por inteiro.

Língua de sol, espuma e maresia,
que a nau dos sonhadores-navegantes
atravessa a caminho dos instantes,
cruzando o Bojador de cada dia.
Ó língua-mar, viajando em todos nós.
No teu sal, singra errante a minha voz.
Adriano Espínola






terça-feira, 5 de junho de 2012

Aporia


         Em três dias diferentes, três episódios de verão.  O começo foi no final de ano ensolarado, novembro ou dezembro.  Creio que foi por aí.  Depois breve encontro em janeiro – na verdade nem encontro foi.  Por fim o Carnaval.  Acho que foi assim, pelo menos é o que lembro.  Sempre quis escrever sobre isto.  Mas escrever o quê?  O fascínio da história e seu mistério, ou seja, o que nunca soube, ou apenas imaginei, salvaria a minha intenção.  O resto?  O resto apenas cenários mal iluminados, simples arcabouços.  No fundo parece ser assim que funciona a ficção.  De concreto mesmo, sobraram apenas as palavras de minha avó:  “fuja desta moça!  Não deve ser boa bisca.”

         Quando a conheci?  Foi em frente daquele cinema que ficava na esquina da Rua General Artigas com a Avenida Delfim Moreira, Leblon no Rio de Janeiro.  No final das sessões portas se abriam de frente para a praia.  Havia também o Rian, na Avenida atlântica.  O Alvorada, na Raul Pompéia, era um espaço mínimo, poucas poltronas.  Para chegar ao azul do mar podíamos caminhar para Copacabana ou em direção a Ipanema.  Foi lá que assisti o Acossado.  Mas nosso cinema, ou seja, o do encontro, não é nenhum destes dois.  Para quem conhece ou não conhece o Rio, cinema Miramar – já situa o ocorrido nos fundões do tempo.  O relato, portanto, se desenrola na década de setenta, pelo menos.  Ou melhor, daí para trás, posto que este cinema foi demolido em mil novecentos e setenta e três e inaugurado em mil novecentos e cinquenta e um, como atesta a cópia do programa inaugural encontrado enfiado num livro (V. Figura 1). 



         Tempos de ditadura.  Seria uma informante?  Afinal, tinha várias carteiras de identidade com diferentes nomes.  Para não falar nos passaportes do Perú, Brasil e até um escrito em alemão.  Lembro-me da tal de Maçã Dourada, que dedurava lá em São Paulo.  Tudo era possível.  Na minha Faculdade, nos corredores atuava Dona Severina.  Na portaria, o Mãozinha sempre de olho, sempre esticando o dedo.  Quando não conseguiam nada, o que era comum, inventavam.  Mas não acho isto não.  Cheguei a suspeitar que fosse uma fugitiva de alguma clínica para doentes mentais.  Neste caso a família deveria estar preocupada. 

Por fim, concluí que qualquer jovem perseguida, com problemas de apendicite, fugindo o tempo todo entre Lima, no Perú, Rio e São Paulo, teria necessidade extrema de compartilhar seus dramas com alguém de sua idade.  Prefiro esta versão, real ou não.  De qualquer maneira, o que importa?  Escrevo sobre o que não sei.  Se não gostar, basta mudar o rumo. 

         Pele muito branca, cabelos curtos, pretos contrastantes.  Parece que mancava um pouco, mas disfarçava bem.  Vestia-se formalmente, parecendo até uma normalista: blusa engomada – mal se percebia os cerzidos na gola –, saia na altura dos joelhos.  Deveria ter uns dezesseis ou dezessete anos.  Disse chamar-se Sanney.  Com dois enes.  Isto tenho certeza. 



         “Nem sei o nome do meu pai.  Não sei se está vivo ou morto.  Nunca me disseram nada.  Criança sempre escuta conversas e vai compondo sua verdade.  Para mim, um criminoso de guerra, oficial da SS.  Daqueles com fardas negras e que enriqueceram com morte e pilhagem.  Quando eu tinha uns sete anos sofremos sério atentado em Lima.  Fiquei uns três anos sem poder andar.  Acabei adotada por uma família de São Paulo que enriqueceu do dia para a noite: mansão nos Jardins, carros de luxo na garagem.  Sempre falavam que minha mãe viria me buscar.  Mas sempre soube que ela morreu no atentado.  Era uma grande bailarina espanhola, do balé clássico às danças folclóricas.  Não me lembro, mas acho que aprendi a cantar com ela.  Não sei de quem tenho mais medo.  Tanto os terroristas israelenses quanto os nazistas querem é o dinheiro.  Para isto matam qualquer um.  Tenho muita saudade do meu irmão menor e dos passeios em carros esportivos.  O jeito foi fugir ao escutar que iam me matar quando completasse dezoito anos.  Parece que eu ia receber uma herança.  Estou hospedada na casa de um advogado, velho amigo de minha mãe – assim me disseram – que prometeu ajudar.  Conhece a Rua Sambaíba, no Alto Leblon?  É lá que durmo.” 



         Saltou do carro, com os dedos nos lábios pediu silêncio, abriu o portãozinho enferrujado, sumiu por escura escadinha lateral.  No matagal, outrora jardim, estranho vulto parecia observar.  Não me preocupei – o zeloso advogado preocupado com a jovem a quem prometeu ajudar. 

         Na descida, pela Timóteo da Costa, da escuridão – não falei, mas era de noite – surgiu uma Kombi atravessada na rua.  Só me lembro do motorista: barbudo, óculos escuros.  Quando vi o grupo armado de porretes, dei ré e consegui passar pela calçada, espalhando latas de lixo por todo lado.  Depois soube que a casa estava fechada há muito e que a escadinha dava para a rua de baixo. 

Achei melhor esquecer o susto e não pensar mais nisto. 



         Meados de janeiro o telefone tocou: “consegui me operar do apendicite.  Passei mal na rua e acabei no hospital.  Levei material para curativos.  Ainda sinto dores.  Vou desligar.  Podem me localizar.  Escutou os estalos?  Estão na escuta.”



         Logo depois, duas ou três semanas, sei disto porque já era sábado de Carnaval: “em poucas horas parto para Lima.  Onde estou?  Venha rápido.  Já estão por perto.  Aqui na Rua do Lavradio...”  



         Última visão de Sanney, ou seja lá quem era: sumindo na multidão, mesma blusinha cerzida, rosto pálido, tímido aceno.  Expressão de dor.  Verdadeira nuvem de suor e odor de cachaça envolvendo-a, protegendo-a, cantando: “Agora é cinza / Tudo acabado / E nada mais...”

         Ao lado, numa pequena confusão, a folia continuava: “Eu fui à tourada de Madri / Parará tchim bum bum bum...”  Era o sinistro barbudo arrastado pelo povo: “Eu sou o pirata da perna de pau / Do olho de vidro, da cara de mau.”
Figura 1 – O cinema Miramar ficava na esquina da Rua General Artigas com a Avenida Delfim Moreira, Leblon, no Rio de Janeiro.  Inaugurado em 1951 e fechado em 1973. 

domingo, 3 de junho de 2012

A Memória Intrusa


         Sempre que escrevo vem a pergunta: seria ensaio, crônica, conto, história curta?  Quem sabe, história curta resvalando para conto ou crônica?  Poderia ser também uma crônica-ensaio ou conto-ensaio.  No fundo a verdade é que os “chamados gêneros literários” estão esfacelados hoje em dia. 

         Mas gosto mesmo é de minhas “memórias-ficcionais” inspiradas nas andanças pelos fundões deste mundo. 

         Mas se literatura é espécie de estranhamento que nos leva a um maior conhecimento, vou tentar escritas mais elaboradas. 

Este texto será diferente.  Inspirado em conceitos como Mimésis, Arquétipos; incursões pela Filosofia, Teoria Literária e até Psicanálise. 

Será construído palavra por palavra, linha a linha, parágrafo por parágrafo.  Evoluirá tal a construção de uma pirâmide, pedra a pedra. 

         Difícil resolução.  Escrever sobre o que vejo por aí é sempre mais fácil. 



         A pilha de livros, recortes de jornais, artigos e anotações avoluma-se sobre a mesa.  Já começa a “escorrer” e derramar-se sobre o chão como um rio de papéis.  Naquele canto, livros de Neruda – páginas e mais páginas marcadas com pedaços de papel.  Adiante, obras de Saramago, ensaios de Susan Sontag e várias edições do conto A Galinha Cega, de João Alphonsus.  No sofá, pastas com compilações do poema O Guesa e até mapas, bem como obras sobre Geografia e até fotografias de viagem. 

         Muita confusão.  Tal peregrino de verdades duvidosas, procurava um rumo entre tanto papelório.  Acabei, não sei se por facilidade ou encantamento, seguindo os passos do nosso herói errante, O Guesa, imortalizado pelo poeta maranhense, nascido em 1883, Joaquim de Souza Andrade, o nosso Sousândrade, como gostava de ser chamado. 

         Assim iniciei esta jornada pelo Amazonas, passei pelo Maranhão, Rio de Janeiro, Europa, África e América do Norte.  Depois os Andes, Chile, Patagônia e finalmente terminei em Alcântara no Maranhão, a Ítaca deste herói. 

         Quando O Guesa declamava:



            “Titã o celerado – Cotopaxi / Lá das nuvens s’eleva alevantado / Tal um que, desviando, s’encontrasse / Não pertencer à terra, ou dela odiado: / É anel desertor, elo estupendo / Rebelde da cadeia, negrejante...”



         Um frio lembrava minha visita à base deste cone montanhoso há mais de uma década.  Cotopaxi em quéchua significa “O Colo da Lua” – com quase seis mil metros de altura é o mais alto vulcão ativo do mundo. 

         E O Guesa continua sua jornada rumo ao Sul, passando pelo Chimborazo.  Com aqueles mais de seis mil metros de altura, é o ponto mais afastado do centro da Terra por estar na região equatorial.  Quando por lá passei, a sensação era de gigante pedra negra, saindo das nuvens, quase entrando pelas janelas do avião. 

Pedras convivendo com os céus:



“Quando as estrelas, cintilada a esfera, / Da luz radial rabiscam todo o oceano... / Eis-me nos horizontes luminosos! / Eu vejo, qual eu via, os mundos Andes, / Terríveis infinitos tempestuosos, / Nuvens flutuando – os espetác’los grandes – / Eia, imaginação divina! abrazo / Do pensamento eterno – ei-lo magnífico / Aos Andes, que ondam alto ao Chimborazo, / Aos raios d’Ínti, à voz do mar Pacífico!”



         Será que Pablo Neruda não conhecia a obra de Sousândrade?  Será que ali não bebeu inspiração para seu Canto General ou mesmo para o que nomeio como sua “Geografia Poética”?



“Mineral e marinha é minha pátria como uma figura de proa, / talhada pelas duras mãos de deuses terríveis, / na Araucânia a selva não tem outro idioma que os trovões verdes, / o Norte lunário te oferece sua fronte de areia sedenta, / o Sul a coroa da fumaça nascendo das cicatrizes vulcânicas, / e a Patagônia caminha agachada no vento / até que as estepes da Terra do Fogo elevaram a última estrela / e ascendem com mãos imóveis o Polo Sul no céu...”



         E Saramago?  Ensaio Sobre a Cegueira é uma parábola da sociedade atual, degradada, egoísta, injusta e violenta.  Esta não é exatamente a temática e as ideias básicas do conto A Galinha Cega, de João Alphonsus, escrito em 1931? 



E aqui entra Susan Sontag.  Folheio Questão de Ênfase, lendo atentamente o ensaio Vidas Póstumas: O Caso Machado de Assis:



            “Machado seria mais conhecido se não fosse brasileiro e se não tivesse passado toda sua vida no Rio de Janeiro – se, digamos, fosse italiano ou russo, ou mesmo português.” 

            “Mais notável do que sua ausência no palco da literatura mundial é ter sido ele muito pouco conhecido e lido no resto da América Latina – como se ainda fosse difícil digerir o fato de que o maior romancista produzido neste continente tenha escrito em português e não em espanhol...”

            “É muito mais provável que um escritor desses países conheça qualquer das literaturas europeias ou de língua inglesa do que a literatura do Brasil, embora os escritores brasileiros tenham uma consciência apurada da literatura hispano-americana.  Borges, outro escritor da mais alta grandeza produzido pelo continente, parece nunca ter lido Machado de Assis...  Memórias Póstumas de Brás Cubas só foi traduzido para o espanhol na década de 1960, oitenta anos depois de ter sido escrito e uma década depois de ter sido traduzido (duas vezes) para o inglês.” 

            “Com tempo bastante, vida póstuma bastante, um grande livro termina por encontrar seu lugar de justiça.” 



         Muitas interrogações, nenhuma resposta. 

Adormeço. 

Do passado, lá do ano 1877, a amargura de Sousândrade a respeito do seu poema O Guesa – escrito durante trinta anos enquanto viajava pelo mundo afora: “Ouvi dizer já por duas vezes ‘que o Guesa Errante será lido cinquenta anos depois’; entristeci – decepção de quem escreve cinquenta anos antes”.

         Se pudesse falar dormindo responderia: Grandeza de Ezra Pound, pungência de T. S. Eliot... Publicado em Londres, depois execrado e expulso da Inglaterra por críticas republicanas à rainha Vitória.  Mas as errâncias de seu herói foram seguidas por Orfeu, de Jorge de Lima; Macunaíma, Mitavaí. 



         Acordo pela madrugada com palavras tão reais que deveriam vir de um passado esquecido:

“parece um canhão da Marinha... eu era coroinha na Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores.”



         Pela manhã, rápida olhada no papelório, já invadindo o banheiro, escorrendo pela sala, chegando à porta da cozinha, tal monstruoso ser crescendo descontroladamente. 

         Parto rumo ao Centro do Rio. 



         O balaço de canhão atravessou o teto da Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, encravando-se na parede da sacristia, em pleno Centro do Rio.  O responsável foi o “24 de Maio”, ex-Aquidabã – esta mania de mudar nomes não só de ruas como de navios –, por ocasião da Revolta da Armada em 1893.  Mas foi punido severamente com um certeiro torpedo em seu casco, como atesta a foto de Juan Gutierrez da Coleção do Museu Histórico Nacional (V. Figura 1). 


Figura 1 – Efeito de um torpedo no encouraçado 24 de Maio durante a Revolta da Armada, Rio de Janeiro, 1893/1894.  Foto de Juan Gutierrez da Coleção do Museu Histórico Nacional.  Foto em Albúmem.


         Interessantes histórias, mas não chegaram a abrir minha memória profunda.  Em todo caso foi uma importante informação: o primeiro registro histórico de “bala perdida” nesta cidade, onde somente no ano passado (2011) oitenta e oito pessoas foram vítimas deste “fenômeno” que causa diariamente mortes e sofrimentos. 



         Entro em casa.  Dificuldades ao abrir a porta – pontas de papeluchos saindo por baixo.  Aquele desabamento geral de livros acabou revelando camadas internas já esquecidas.  Estico a mão e pego A Revolta da Chibata, de Edmar Morel.  Abro na dedicatória e fico pensando: cassado e preso por revelar a verdade de fatos ocorridos em 1910 (V. Figura 2). 


Figura 2 – A Revolta da Chibata, Edmar Morel.



         Vou lendo trechos aleatoriamente...



            “As guarnições dos navios revoltados intimou as fortalezas de Santa Cruz, Laje e São João a não atirarem, sob pena de serem arrasadas.”



            “Os couraçados Minas Gerais e São Paulo e o scout Bahia sondaram o ânimo das fortalezas de Villegaignon e da Ilha das Cobras, abrindo ligeiro fogo de artilharia.  As fortalezas não deram sinal, permanecendo mudas como peixes...”



            “Ao raiar do dia, o cruzador Barroso e o caça-torpedeiro Tymbira tentaram resistir tiroteando com o Minas Gerais.  Este, inquieto, como fera cutucada, vomitou ferro, emudecendo seus atacantes.”



            “Vitoriosos, o República, o Floriano, o Deodoro, o Primeiro de Março e o Benjamin Constant formavam uma linha de ferro desde a Praia de Santa Luzia até a Ilha Fiscal.  Mas o Minas Gerais e o São Paulo evoluíam como dois leões enjaulados.  Ora o primeiro vinha até junto do segundo, para depois retroceder, volteando sobre si mesmo, navegando de volta em direção ao fundo da Baía de Guanabara; ora era o São Paulo que fazia manobra inversa, navegando depois em direção à barra.”



         Ao reler a palavra tiroteando, estranha sensação percorreu o corpo.  Era como se pronunciasse Shazam! (*). 



         Os dois meninos acompanhados do pai desceram do lotação e se encaminhavam para O Fluminense Futebol Clube, em Laranjeiras.  Tinham entre sete e nove anos, calças curtas, sapatos pretos, meias soquete, camisas de Jersey (**), cabelos príncipe Danilo.  O pai vestia um terno de linho marrom claro, Quina Petróleo nos cabelos.  Debaixo do braço um comprido objeto embrulhado com papel pardo. 

         Ao chegarem são recebidos pelo homenageado, novo Campeão Sul Americano de Tiro – modalidades e categorias deste campeonato não interessam.  O importante é que vieram atiradores de vários países e estados brasileiros para festejarem no Estande de Tiro do Fluminense este feito.

         O pai foi logo desembrulhando a Winchester 44 e falou: “estou pronto para tirotear.”  Alguns olharam com ares de deboche.  Afinal eram uma elite, armas e equipamentos especiais, tudo acomodado em vistosos estojos de madeira forrados com veludo.  

         O pai deu o primeiro tiro, ajustou a altura da alça de mira – para corrigir a vertical – e o tiro final, com a horizontal também já ajustada: “podem abaixar o alvo.  Tá lá na mosca!”

         Línguas de fogo de dois palmos saíam da arma, estrondos ribombavam nas montanhas. 

         Todos pasmos, em meio à fumaceira, aproximaram-se assustados: “voltamos ao velho oeste americano!”, “explodiu o paiol do Exército?”, “parece um canhão da Marinha. Eu era coroinha na Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores em 1910...”

         Neste dia o Fluminense parou.  Todo mundo amontoado para a comemoração jamais vista, ou melhor, ouvida. 

         Ficaram ainda mais assustados quando os garotos atiraram: “encosta bem a arma no ombro e abre as pernas, uma para frente, outra para trás.  Se não firmar bem, pode quebrar um osso com o coice!  Atira que eu seguro para você não cair.  Abre a boca...”

         Pouco a pouco os atiradores foram tomando coragem, abandonaram suas armas especiais e se divertiram tiroteando livremente.  Só não conseguiam atingir o alvo, muito menos a mosca!

         Acabada a munição, o homenageado falou: “não disse que teriam uma surpresa!”  Alguém retrucou: “é impressionante que nem esquenta o cano! 



         A propósito, sempre que escutava um zumbido de serra elétrica, vindo de longe, sentia uma sensação agradável e reconfortante.  Hoje escutei e lembrei-me quando o amolador de facas entrava na rua de minha infância: todos corriam para ver sua demonstração musical, tirando melodias de uma lâmina de aço encurvada que atritava na roda de amolar.  Depois ia se afastando, o som sumindo, sumindo, até desaparecer. 

         Memória Intrusa!



Notas:

(*) Palavra mágica pronunciada pelo Capitão Marvel – super-herói dos anos 50 – para adquirir seus super-poderes. 

(**) Tecido macio originalmente formado por composições de algodão, seda ou lã.









A Desenhista


Na prancheta

ou computador

grafite no papel

quem sabe, risco de pixel.



Suave a noite

chuva fria

risca a reta

tece linhas.



No fim do branco

dobra o plano

vira a épura

torce o ângulo.



Do X e Y sai o Z

na perspectiva

do imaginário e

[não real

tridimensional



polígonos perfeitos

superfícies de Möbius

pontos de fuga

paixão de criação

                   [esta sua função



um dia sai do plano

[rasga o pano

na quarta dimensão

pinta o tempo

nas cores

[de sua missão.