Botswana, Foto T.Abritta, 2008

terça-feira, 5 de junho de 2012

Aporia


         Em três dias diferentes, três episódios de verão.  O começo foi no final de ano ensolarado, novembro ou dezembro.  Creio que foi por aí.  Depois breve encontro em janeiro – na verdade nem encontro foi.  Por fim o Carnaval.  Acho que foi assim, pelo menos é o que lembro.  Sempre quis escrever sobre isto.  Mas escrever o quê?  O fascínio da história e seu mistério, ou seja, o que nunca soube, ou apenas imaginei, salvaria a minha intenção.  O resto?  O resto apenas cenários mal iluminados, simples arcabouços.  No fundo parece ser assim que funciona a ficção.  De concreto mesmo, sobraram apenas as palavras de minha avó:  “fuja desta moça!  Não deve ser boa bisca.”

         Quando a conheci?  Foi em frente daquele cinema que ficava na esquina da Rua General Artigas com a Avenida Delfim Moreira, Leblon no Rio de Janeiro.  No final das sessões portas se abriam de frente para a praia.  Havia também o Rian, na Avenida atlântica.  O Alvorada, na Raul Pompéia, era um espaço mínimo, poucas poltronas.  Para chegar ao azul do mar podíamos caminhar para Copacabana ou em direção a Ipanema.  Foi lá que assisti o Acossado.  Mas nosso cinema, ou seja, o do encontro, não é nenhum destes dois.  Para quem conhece ou não conhece o Rio, cinema Miramar – já situa o ocorrido nos fundões do tempo.  O relato, portanto, se desenrola na década de setenta, pelo menos.  Ou melhor, daí para trás, posto que este cinema foi demolido em mil novecentos e setenta e três e inaugurado em mil novecentos e cinquenta e um, como atesta a cópia do programa inaugural encontrado enfiado num livro (V. Figura 1). 



         Tempos de ditadura.  Seria uma informante?  Afinal, tinha várias carteiras de identidade com diferentes nomes.  Para não falar nos passaportes do Perú, Brasil e até um escrito em alemão.  Lembro-me da tal de Maçã Dourada, que dedurava lá em São Paulo.  Tudo era possível.  Na minha Faculdade, nos corredores atuava Dona Severina.  Na portaria, o Mãozinha sempre de olho, sempre esticando o dedo.  Quando não conseguiam nada, o que era comum, inventavam.  Mas não acho isto não.  Cheguei a suspeitar que fosse uma fugitiva de alguma clínica para doentes mentais.  Neste caso a família deveria estar preocupada. 

Por fim, concluí que qualquer jovem perseguida, com problemas de apendicite, fugindo o tempo todo entre Lima, no Perú, Rio e São Paulo, teria necessidade extrema de compartilhar seus dramas com alguém de sua idade.  Prefiro esta versão, real ou não.  De qualquer maneira, o que importa?  Escrevo sobre o que não sei.  Se não gostar, basta mudar o rumo. 

         Pele muito branca, cabelos curtos, pretos contrastantes.  Parece que mancava um pouco, mas disfarçava bem.  Vestia-se formalmente, parecendo até uma normalista: blusa engomada – mal se percebia os cerzidos na gola –, saia na altura dos joelhos.  Deveria ter uns dezesseis ou dezessete anos.  Disse chamar-se Sanney.  Com dois enes.  Isto tenho certeza. 



         “Nem sei o nome do meu pai.  Não sei se está vivo ou morto.  Nunca me disseram nada.  Criança sempre escuta conversas e vai compondo sua verdade.  Para mim, um criminoso de guerra, oficial da SS.  Daqueles com fardas negras e que enriqueceram com morte e pilhagem.  Quando eu tinha uns sete anos sofremos sério atentado em Lima.  Fiquei uns três anos sem poder andar.  Acabei adotada por uma família de São Paulo que enriqueceu do dia para a noite: mansão nos Jardins, carros de luxo na garagem.  Sempre falavam que minha mãe viria me buscar.  Mas sempre soube que ela morreu no atentado.  Era uma grande bailarina espanhola, do balé clássico às danças folclóricas.  Não me lembro, mas acho que aprendi a cantar com ela.  Não sei de quem tenho mais medo.  Tanto os terroristas israelenses quanto os nazistas querem é o dinheiro.  Para isto matam qualquer um.  Tenho muita saudade do meu irmão menor e dos passeios em carros esportivos.  O jeito foi fugir ao escutar que iam me matar quando completasse dezoito anos.  Parece que eu ia receber uma herança.  Estou hospedada na casa de um advogado, velho amigo de minha mãe – assim me disseram – que prometeu ajudar.  Conhece a Rua Sambaíba, no Alto Leblon?  É lá que durmo.” 



         Saltou do carro, com os dedos nos lábios pediu silêncio, abriu o portãozinho enferrujado, sumiu por escura escadinha lateral.  No matagal, outrora jardim, estranho vulto parecia observar.  Não me preocupei – o zeloso advogado preocupado com a jovem a quem prometeu ajudar. 

         Na descida, pela Timóteo da Costa, da escuridão – não falei, mas era de noite – surgiu uma Kombi atravessada na rua.  Só me lembro do motorista: barbudo, óculos escuros.  Quando vi o grupo armado de porretes, dei ré e consegui passar pela calçada, espalhando latas de lixo por todo lado.  Depois soube que a casa estava fechada há muito e que a escadinha dava para a rua de baixo. 

Achei melhor esquecer o susto e não pensar mais nisto. 



         Meados de janeiro o telefone tocou: “consegui me operar do apendicite.  Passei mal na rua e acabei no hospital.  Levei material para curativos.  Ainda sinto dores.  Vou desligar.  Podem me localizar.  Escutou os estalos?  Estão na escuta.”



         Logo depois, duas ou três semanas, sei disto porque já era sábado de Carnaval: “em poucas horas parto para Lima.  Onde estou?  Venha rápido.  Já estão por perto.  Aqui na Rua do Lavradio...”  



         Última visão de Sanney, ou seja lá quem era: sumindo na multidão, mesma blusinha cerzida, rosto pálido, tímido aceno.  Expressão de dor.  Verdadeira nuvem de suor e odor de cachaça envolvendo-a, protegendo-a, cantando: “Agora é cinza / Tudo acabado / E nada mais...”

         Ao lado, numa pequena confusão, a folia continuava: “Eu fui à tourada de Madri / Parará tchim bum bum bum...”  Era o sinistro barbudo arrastado pelo povo: “Eu sou o pirata da perna de pau / Do olho de vidro, da cara de mau.”
Figura 1 – O cinema Miramar ficava na esquina da Rua General Artigas com a Avenida Delfim Moreira, Leblon, no Rio de Janeiro.  Inaugurado em 1951 e fechado em 1973. 

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