Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Hórus

 

          Era nossa segunda vez no Egito.  Visitaríamos o que normalmente não é visitado.  Veríamos o que não é visto. 

          Caminhávamos por areias infinitas.  As pirâmides de Abusir reduzidas a três montes de pedras e terra, cercadas de ruínas de templos, inscrições e colunas papiriformes que teimavam permanecer em pé por mais de quatro mil anos.  Pareciam as páginas de enorme livro despedaçado, revelando aqui e ali um pouco da história destes faraós. 

Pirâmide de Sahurê. Foto T.Abritta, 1991.

          A entrada da pirâmide de Sahurê estava pouco abaixo do nível do solo, pequena abertura esmagada entre lajes de granito. Para facilitar a passagem, deixei de fora a mochila com todos os equipamentos, inclusive lanternas e pilhas extras – um esquecimento imperdoável.  

Entrada da Pirâmide de Sahurê. Foto T.Abritta, 1991.

 

          O guia ia à frente, seguido por mim e Cristina.  Descemos por inclinado corredor quase obstruído, pedras desabadas do teto, fendas por todos os lados.  Morcegos adornavam o caminho, soprando nossos rostos com os deslocamentos de ar dos precisos e invisíveis voos na escuridão.  O facho de luz do guia mal iluminava as fendas de passagem e os lugares seguros para nossos passos.  O negrume, o silêncio e as mãos ressequidas tateando a pedra, pareciam ampliar o cheiro insuportável. 

          O corredor ficou horizontal, diminuindo o medo de rolar no desconhecido.  Não me saia da cabeça o conto A Nova Catacumba, de Conan Doyle, onde um arqueólogo abandona seu colega na escuridão, fugindo com o único lampião disponível.  Cada metro avançado, a lembrança desta história:

 

          ...em algum lugar, um ruído roçagante.

 

Atravessamos um pórtico de granito, iniciando pequena subida.

 

          ...vago som de pé batendo em pedra.

 

          A câmara mortuária, em calcário de Turah, originalmente tinha o teto formado por três pares superpostos de gigantescos blocos de pedra, pesando, cada, umas oitenta toneladas.  Hoje o grandioso é assustador.  Mal ficávamos de pé, mesmo assim graças aos dois únicos blocos não fragmentados.  Quantos dias, anos ou séculos ainda resistiriam ao esmagamento do peso de quase cinquenta metros de rochas e areia?

          Nisto, a gravidade do momento foi conspurcada por uma voz feminina em tom desconhecido pelo Ba de Sahurê:

          – Eu me arrastando, quase esquecida na escuridão, e apenas os pés do Sahibi iluminados!

Era o preço do curto-circuito da cultura islâmica e latina. 

 

          ...o silêncio envolveu e engolfou o velho templo – um silêncio estagnado e pesado se fechou.

 

          Não resisti, tomei violentamente a lanterna do guia e iniciamos o retorno.

          Na saída da tumba, um falcão assustado alçou voo, dando a impressão de que estava pousado nos ombros da Cristina.  O guia, até então face cerrada, sorriu, apontou o pássaro cortando o céu.

Com alegria, disse: Hórus (*).

 

(*) Deus Solar, filho de Osíris e Ísis, representado por um falcão.




 




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