Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Ladrões e Assassinos: quinto capítulo de Jequitinhonha


Diamantina, MG.  Foto T.Abritta, 1965.

          Entramos no Arraial quase a galope.  Mas as notícias, como se trazidas pelo vento, já nos aguardavam.  Janelas entreabertas mostravam olhares apreensivos.  Garruchas e carabinas enferrujadas prontas para o combate.  Não parava de chegar gente com foices, porretes e facões.  Eu tinha que ser rápido.  Martelei o meu laudo na máquina de escrever: a vítima estava caída de bruços, provavelmente devido a uma pancada na omoplata direita com objeto contundente que a fraturou, como mostra a fotografia em anexo... O tiro, calibre 38, entrou pela nuca, fragmentando a coluna cervical, saindo pelo frontal, conforme mostrado nas fotos tais e tais...  Substituí as fotografias por desenhos, já que Seu Alcir ainda levaria uns dois dias para revelar e secar os negativos e ampliações.  Corri para a casa do Promotor e em poucos minutos o Juiz assinava o mandado de prisão preventiva.

          Ainda escuro, começamos os trabalhos naquela colina ventosa onde ficava o cemitério.  Apenas o ruído das pás e picaretas no solo pedregoso.  Seu Alcir, ao meu lado, tremia, não sei se de frio ou pavor.  Pudera, também nomear um fotógrafo de casamentos, festas infantis, bodas e batizados como perito ad hoc para fotografar defunto. 
          Como eu previa, pela composição química do solo, o cadáver ainda não estava decomposto totalmente.  Partes mumificadas, outras em lenta decomposição espalhando o cheiro da morte.  Providenciaram um estrado de tábuas para servir de mesa pericial.  Todos, com os rostos cobertos por panos molhados, trabalhávamos escavando, peneirando a terra para recolher fragmentos da bala e ossos.  Eu e Seu Alcir, curvados sobre os restos mortais.
          Esta era minha primeira exumação.  Por aqui, normalmente, quem morreu, morreu.  Enterrado, ficava para sempre.
          Mesmo acostumado com o sofrimento e sempre pensando na beleza da vida, sentia vontade de chorar com a evidência das maldades perpetradas contra Seu Onofre.  A me animar, apenas a lembrança das cantorias de Dona Cassandra clamando por Justiça.
          Com os primeiros raios de sol, o triste piado de um pássaro: u, u, u, uuuu...Seria a pomba-mineira? 

          Agora entendo o que considerava um desvio patológico, aquela mania do Promotor em perder tanto tempo escutando as histórias de João França e do Comandante Santos Lima:

          Eram tempos bons demais.  Saía com duzentas cabeças de gado e chegava ao mercado com quinhentas.  E quem ia reclamar?  Tinha um lugarejo onde o padre vivia pondo coisas na cabeça do povo.  Claro, era sempre contra mim.  Aí eu avisava: “vou passar em meio ao casario com quinhentas cabeças de gado xucro.  Se alguém abrir a janela, um cachorro latir ou mesmo uma criança chorar, o gado estoura e acaba com tudo”.

          E João França, ladrão aposentado, castigado com uma cegueira, dava gargalhadas, revirando as órbitas mortas pela maldade.

          Pior ainda eram as conversas com o Comandante Santos Lima – era assim que gostava de ser chamado.  Dizem que foi tenente da Marinha Mercante, expulso pela morte de um grumete numa situação obscura, vamos dizer assim:

          Quando eu era delegado... Onde?  Era lá, quase chegando na divisa com o Espírito Santo... Não tinha esta de valente comigo não.  Uma vez arrancamos as unhas de um desafeto do prefeito e rachamos sua cabeça com pauladas.  Tudo dentro da lei: na ocorrência foi registrado que o preso desesperado com a privação de sua liberdade subia pelas paredes cravando as unhas na alvenaria e depois pulava de cabeça contra o chão. 

          O promotor escutando sério, eu e Seu Anízio horrorizados, encolhidos num canto da venda.

          ...de outro acontecido, avisaram que os presos estavam cavando um túnel para fugir.  Peguei um facão e fiquei esperando na escuridão.  Assim que a primeira cabeça saiu do buraco, puxei pelos cabelos e decapitei o desgraçado.  Depois ainda avisei: “pode vir o próximo”.  Ficou uma pilha de cabeças de um lado e corpos decapitados do outro.  No relatório ficou registrado que após a fuga os condenados entraram em contenda, matando uns aos outros.
          Teve um infeliz que executei com um tiro na nuca.  Era um passante, que não sei por que, me deu implicância.  Como eu ia saber que era filho de gente graúda lá da capital?  O jeito foi fazer um relatório dizendo que foi morto numa briga por mulher ao atacar seu desafeto que, em legítima defesa, meteu-lhe um balaço na testa.  Afinal, bala que entra sai, e a que sai pode entrar.  É como aquela lição da escola: “no mundo nada se perde, tudo se transforma...”

          O rosto do Promotor contraiu-se todo – pensei até que ia ter um ataque de coração – e balbuciou: Seu Onofre... Saiu sem despedir de ninguém.
          Diante de nosso olhar, misto de nojo e desprezo, o Comandante Santos Lima foi embora meio ressabiado, sem entender o que estava acontecendo.

          Gostaria de ficar dormindo e sonhando eternamente.  Às cinco horas da manhã o moleque trouxe o cavalo selado e fomos todos, ao passo, pela estradinha do cemitério.  A determinação do grupo não afastava a tristeza. 
          Eu mantinha minhas forças pensando nos sonhos daquela noite.  Sonhei com o jovem Sherlock Holmes do livro Um Estudo em Vermelho – o aprendiz de detetive cursava diferentes Faculdades e não terminava nenhuma.  Da Medicina estudava Anatomia, da Química as substâncias venenosas, do Direito a legislação criminal e Medicina Legal, assim por diante.  Foi até expulso de um curso de Medicina por chicotear cadáveres em seus experimentos para estudos de lesões.  Lembrava até o Promotor e sua “mania” de ficar escutando as barbaridades daqueles monstros.

          A prisão foi rápida e eficiente.  Valtinho dormia, como sempre fazia após suas noitadas, no Beco do Mota, lá na casa de Dona Mariazinha do Cajá.  O Delegado, ar contrariado, meteu-lhe as algemas e foi levando o traste todo borrado e molhado.  No caminho, populares cuspiam no preso e no desmoralizado delegado.  Uns debochavam do Coronel e do Prefeito, que sumiram alegando estarar constipados.
          Da fazenda chegavam as notícias de que Seu Valter morreu de ataque cardíaco, dando tiros a esmo, tentando matar os empregados que sumiram após os acontecimentos.
          Com tanta alegria e cachaça nas comemorações, dia de trabalho para o Médico.  Hoje apenas um ferido a bala, duas facadas e uma cabeça para costurar.  Felizmente tudo sem gravidade.  Fatos tão rotineiros que não mereceram registro policial.  Pela manhã, passada a bebedeira, agressores e agredidos perdoando uns aos outros. 
          E a Vida continua.  De noite, o parto de Dona Clarinha.  Uma linda menina chamada Cassandra.




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