Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Notícia de Jornal: oitavo capítulo de Jequitinhonha.

Aqui temos o último capítulo já escrito de Jequitinhonha. Aguardem os próximos!


Pomenade. Av. Rio Branco, Rio de Janeiro, anos 50.

          Depois que vim morar em São Paulo descobri muitas vantagens.  No Arraial, jamais poderia ficar sentado em um bar, lendo jornal e tomando café.  Bastava entrar na vendinha e logo vinha alguém prosear. 
          Mas aqui, quando chega aquele General, tudo muda.  Assim que aparece um incauto, começa a contar suas mentirosas histórias de guerra e heroísmo. 
          Todos sabem que suas inexistentes batalhas ocorreram no cenário do cais do porto no Rio, embarcando jovens, às vezes sob mira de pistolas, para morrer nas distantes terras italianas durante a Segunda Guerra Mundial. 
          E lá prosseguia o bestalhão contando vantagens:

          É tudo uma questão de relação entre a flecha e o alcance.  No canhão, por exemplo, temos a menor flecha e o maior alcance.  Com o morteiro é ao contrário, já que atingimos o inimigo logo na frente da tropa.  Com o obus, atiramos por cima de nossas linhas.  A artilharia está atrás e o inimigo na frente.  O artilheiro moderno tem que conhecer muita trigonometria...

          Mas hoje foi diferente.  Entrou um rapaz meio estabanado, esbarrou na mesa do herói de araque, derramou sua cerveja e falou:

Pô, General, isto hoje não serve pra nada.  Agora é tudo míssil.  Basta apertar um botão e explode tudo.

          Não pude conter uma sonora e vingativa gargalhada, não resistindo também perguntar sobre a Interbrás e aquela história de dez por cento (1).

          Como são as coisas.  O incidente trouxe à tona da memória aquele dia em que comentávamos as notícias de jornal sobre a guerra e os depoimentos de nossos heróis.  Seu Anízio ia lendo, e cada feito comemorado com generosos goles de cachaça:

          A artilharia antiaérea, normalmente, fica em lugares mais altos como torres de igrejas e castelos.  Assim o jeito era voar bem baixo, aparando grama, como chamávamos. 
Nos ataques, quando a gente via o clarão, já identificávamos o tipo de boca de fogo, contando os segundos para o projétil chegar.  Um, dois, três... e aí cada avião dava uma guinada para o lado.  Depois mergulhávamos despejando as bombas e cada piloto recuperava para a esquerda ou direita.  Dava um nó na garganta quando uma aeronave não retornava...

          Antes de Seu Anízio ler o próximo depoimento, todos entornavam mais uma talagada de cachaça em homenagem ao piloto Moreira Lima (2) por sua luta contra os fascistas.
          E as notícias continuavam, agora com as operações terrestres:

          Minha patrulha foi toda morta e eu seguia, com fome e sem munição, tentando regressar para nossas linhas.  Do nada surgiu aquele abestalhado, tentando me matar com um sabre.  Tentei falar, mas não adiantou.  Briga de faca com paraibano?  Com muito dó, espetei o alemão na barriga, sentindo o sangue quente correndo pela mão.  Cortei uma de suas orelhas, salguei e guardei nesta caixa de fósforos.  Não foi por maldade não.  Foi pra lembrar que guerra é isto.  Onde já se viu matar um rapaz que eu nem conhecia?

          Mas a notícia mais importante estava num cantinho do jornal:

“Após dois meses de buscas, já considerado desaparecido em combate, foi localizado em um hospital de campanha americano o pracinha José Lourenço.  O brasileiro foi condecorado por bravura ao destruir o tanque inimigo que atacava seu pelotão.  Na luta teve o crânio praticamente esmagado.  Parte do osso parietal foi substituída por uma placa de platina...”

          Foi um corre-corre preparando a festa de recepção para nosso herói.  Afinal, depois de ter o pai, o irmão mais velho e um tio assassinados, isto provava que o destino pode ser mudado pela força da vida. 
          Enquanto isto, pensava em Pedro Severino, na sua vida de brigas e confusões.  Teve o topo da cabeça esfacelado por foiçadas.  Pacientemente lavei os ferimentos com soro fisiológico, tirei pedaços de ossos, pele e cabelos com uma pinça.  Se tivesse, colocaria uma placa de platina.  Mas apenas suturei os fiapos do couro cabeludo e o rapaz está vivo, sempre usando um chapéu protetor. 
Duas cabeças, dois destinos: um heroico, outro inútil. 

          A estação lotada.  Escolares perfilados, banda de música, o coral infantil, autoridades, populares, todos ansiosos. 
          Uma dor cortou nossos corações.  O apito do trem soava rouco tal lamento.  Nosso herói não desembarcou. 
          Mas as notícias chegaram.  Não pelos jornais.  Vieram pelo martelar do telégrafo:

ENCONTRADO COM O CRÂNIO ESFACELADO JUNTO A UMA PILHA DE DORMENTES NOS FUNDOS DA ESTAÇÃO DE TREM DE FERRO DESTA CAPITAL O CORPO DO PRACINHA JOSÉ LOURENÇO PT
A POLÍCIA CONCLUIU TER SIDO ASSASSSINADO POR MOTIVO TORPE PARA RETIRADA DE UMA PLACA DE PLATINA QUE PROTEGIA SUA ÁREA CEREBRAL PT

          Um silêncio profundo e triste abateu-se sobre o Arraial. 
No canto da estação, o olhar apalermado de Pedro Severino.

Notas:
1. Em 1976 foi criada a estatal Petrobrás Comércio Internacional (Interbrás), a  pretexto de incentivar exportações.  Na verdade era um cabide de empregos para amigos do poder, que lucravam com extorsões para liberação de guias de exportação. 

2. Referência ao Major-Brigadeiro Rui Moreira Lima, herói da Segunda Guerra Mundial.  Este militar foi posteriormente preso pelos golpistas de 1964 por defender mais uma vez a Democracia.

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