Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Dia de Assombração: sexto capítulo de Jequitinhonha.

Diamantina, MG. Foto T.Abritta, !965.

O Delegado coçou a cabeça, cofiou o bigode e achou que o caso de Seu Gonzaguinha não era assunto para polícia; aconselhou que procurasse o Padre.  Este, depois de pedir conselho à Virgem Maria, resolveu socorrer-se com o Médico.  Afinal, poderia até entender do sobrenatural.  Já alma penada matada, isto era outra coisa.
E assim fomos, eu e o Padre Chico, investigar o ocorrido.

          No caminho, Seu Gonzaguinha ia narrando os fatos:

          Moro perto de Biribiri.  Uma meia légua antes é só sair da estradinha e pegar um trilho à esquerda.  Passa um brejo, passa a serra e mais um pouco já dá pra avistar minhas terrinhas.  De noite, Deus me livre passar por aqui!  Vindo dos lados da serra, escutamos as cantorias dos escravos mortos nas minerações...

“Me desculpe, mas até aí morreu Neves.  Até hoje o povo ainda canta estes Vissungos do tempo da escravidão.  Das minhas andanças, tratando e vacinando este povo em minerações, até conheço alguns.”

Aiô!... T’Angananzambê, aiô!...
Aiô!... T’Angananzambê, aiô!...
Ê calunga qui tom’ossemá,
Ê calunga qui tom’Anzambi, aiô!...

Eu memo é capicovite
eu memo é cariocanga
eu memo é candandumba serena.

          “Não dá pra entender nada, já que misturam palavras de línguas africanas com o português.  Ainda por cima, tudo falado pela metade.  Apenas a entonação e ritmo é que dão o sentido: se é música de tristeza, saudação, revolta ou homenagem a defunto.”
          “Há uns dez anos esteve por aqui um estudioso registrando estas cantorias.  Seu nome, segundo o Doutor Ataíde, é Aires da Mata Machado Filho.”
“Bem, vamos voltar às assombrações.”

          ... quer dizer que, como eu ia contando, assombrações ficam bem longe, lá pros lados da serra.  Mas esta noite foi diferente.
          Um vento zumbindo, parecia que ia levar o telhado.  Portas e janelas rangendo.  Lá fora, gritos pavorosos, cachorros latindo.
          Pior quando começaram as batidas na janela do quarto.  Uns quatro toques misturados com rugidos, depois silêncio.  Falei com a mulher: “é o demônio que está lá fora!”
          Nos reunimos na cozinha, que fica nos fundos, e ficamos ajoelhados rezando, as crianças chorando.
          Alguma coisa tinha que ser feita!  Carreguei a espingarda três vezes, três descargas na janela.  E a “coisa” silenciou.
          Saímos pelos fundos, deixei a família em um sítio próximo, e aqui estou diante dos senhores.

          Com a primeira visão das terrinhas, Seu Gonzaguinha parou, eu e Padre Chico nos adiantamos mortos de curiosidade.
          Rodeamos a casa, mas nada assombroso foi encontrado.  Apenas a janela despedaçada pelo chumbo grosso, galhos cortados de uma roseira e o cheiro inebriante de botões de rosas espalhados pelo chão. 
          Com a ventania, provavelmente a roseira balançava, os botões batiam na janela, e a imaginação criava vozes e todo o cenário aterrorizador.
          Pelo sim pelo não, Padre Chico enterrou os botões de rosa – quem sabe não personificavam almas penadas? 
No final do “funeral”, tudo foi bento conforme a tradição.
          Restabelecido o reinado da paz divina, a família voltou para o lar, uma galinha foi morta e servido um irresistível guisado com farinha e muita cachaça.

          Retornamos pela noitinha. 
O céu prateado por um manto de estrelas.  O Carreiro-de-São-Tiago, como o povo chama a Via Láctea, brilhava como nunca.  O Cruzeiro do Sul, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pediu Rubião, eternamente orientando os viajantes.  Invisíveis ao olhar, estrelas duplas completavam o cenário. 
Nem sempre o real é o que vemos.  Seriam as assombrações de Seu Gonzaguinha menos reais do que estes astros misteriosos? 
          Quando Machado de Assis escreveu o conto Minueto – usando uma das mais belas metáforas “astronômicas”, ao comparar a alma da pobre Maria Regina, dividida entre dois amores, a uma estrela dupla, de cuja existência o autor tomara conhecimento através de publicações científicas da época –, não poderia ser acusado de estar vendo assombrações celestes?
          Noite propícia para reflexões.  O que seria a verdade?  O que seria o real?  Certamente não podemos confiar plenamente em nossa experiência subjetiva, ou mesmo objetiva.  A maior parte do mundo físico é imperceptível.  Muitas vezes vemos e sentimos coisas que não existem. 
          Portanto deixemos as assombrações de Seu Gonzaguinha vagarem nos rugidos dos ventos ou repousarem em singelos botões de rosa.


          E uma estrela cadente riscou a abóbada celeste.  

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