Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Jequitinhonha, nono capítulo: Na Venda de Seu Anízio


          ... as conversas não eram as mesmas.  Invariavelmente giravam sobre violência.  Depois do acontecido com o Pracinha José Lourenço, todos estavam traumatizados:
          “Vocês viram o que aconteceu lá pelas bandas da Bahia?  Mataram dois geólogos franceses confundidos com espiões alemães!”

          E a melancólica cantoria de Seu Zequinha da Viola dando um tom mais triste ao ambiente:

          Tá trepado no pau,
          De cabeça pra baixo,
          Com as asas caídas
          Gavião de penacho!
          Todo mundo tem seu bem,
          Só pobre de mim não tem!

          “Pior foi o caso daqueles dois rapazes lá de não sei onde.  Foram ganhar a vida na capital.  Um enricou, o outro voltava com uma mão na frente outra atrás.  No caminho o pobre matou o rico, vestiu suas roupas, chegando elegante e triunfante.  Como mentira tem perna curta, o desgraçado acabou na cadeia.”
          ...e o dedilhar na viola de Seu Zequinha:

          Buriti, minha palmeira,
          lá na venda de lá:
          casinha da banda esquerda,
          olhos de onda do mar.

          Mas tudo mudou com a chegada daquele moleque:
          Seu Anízio, está chegando uma grande tropa lá no Mercado!
          Logo a venda estaria lotada de tropeiros, o Beco do Mota fervilhando.
          Era uma grande algazarra a tropa chegando com mercadorias e notícias lá dos lados de Goiás.  O pátio ia se enchendo de animais.  Na frente, a madrinha com a cabeçada de prata, plumas e fitas, rebolando com nobreza, ampliando o som dos guizos do peitoral.  Ao seu lado, o madrinheiro sorria contente com o sucesso da jornada.  A rígida ordem na marcha de deslocamento da tropa evaporou-se, fundindo-se em uma alegria única.  Tudo misturado.  Animais e homens, cargueiros e tropeiros, a mula culatreira perdida entre o arreador e o tocador.  Os animais impacientes, esperando a descarga, famintos, tentando rasgar as sacas de milho(*).
          Tropeiros são os marinheiros que navegam por este Sertão sem fim, cruzando nossos mares internos, levando e trazendo mercadorias e notícias. 
          Solitários, deixam um amor em cada “porto”.


Sertão sem fim. Diamantina, MG.  Foto T.Abritta, 1965.

          Lá do Beco do Mota, a cantoria...
                   
          Eu amo as flores em manhãs serenas,
          Frescas, viçosas, perfumando o prado;
          Porém adoro muito mais ainda
          Um teu sorriso, ou um teu doce agrado!


          Noite de comemorações, trabalho para o médico.  Felizmente nada grave.  Apenas cabeças costuradas e uma facada mal dada.  Nada que uns pontinhos não resolvessem. 
          Enquanto caminho para casa, como sempre admiro as silhuetas desenhadas pela noite escura.  Céu pontilhado de estrelas.  No horizonte Sul, lá, nas celestes regiões distantes, no fundo melancólico da Esfera, Achernar brilha como nunca – fina flor de pérola e prata.  Na antiga astronomia árabe define a “foz do rio celeste”.  Quem sabe, pelos tempos esquecidos, se as estrelas não são os ais perdidos das primitivas legiões humanas? (**)


Notas:
- Madrinha: mula madrinha, animal que liderava a tropa.
- Madrinheiro: tropeiro líder.
- Culatreiro: animal que vai em último lugar em uma tropa, na culatra.
- Arreador: responsável pelos arreios, indo atrás da tropa com os animais de reserva.
- Tocador: tropeiros que auxiliavam na condução da tropa.
(*) Em jornadas por regiões áridas, onde as pastagens são pobres, as mulas são amiaradas, ou seja, sua alimentação é complementada por milho, de modo a não ficarem estropiadas.
(**) Intertextos de versos do poema As Estrelas, Cruz e Sousa.

Ler os primeiros capítulos neste blog, em janeiro deste ano.





Nenhum comentário:

Postar um comentário