Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Jequitinhonha, décimo capítulo: O Ateu e o Padre


          Ontem foi aniversário da minha esposa e como sempre uma reunião familiar.  Filhas, genros e netos reunidos.
          O leitor deve estar um tanto confuso com o meu vai e vem no espaço-tempo.  Mas esclareço: dei um pulo de alguns anos e estou em São Paulo, para onde fui depois que sai do Arraial, quando o Promotor foi ser Juiz no Rio.  Esta confusão acabou me lembrando daquele Manuscrito que recebi há alguns anos em uma visita a Belo Horizonte.
          Prometo que no próximo capítulo volto para o Arraial e suas histórias.  Mas tenham paciência com este escritor neófito e vamos continuar com o episódio abaixo, que tentei escrever na forma de uma história curta, ou seja, mais do que uma crônica, menos do que um conto.

O Manuscrito

– Vamos lá na Augusto de Lima, aqui pertinho, onde tem muitos bares e podemos comer alguma coisa. 
          – Vovô... Hoje é domingo.  Estamos no centro comercial de Belo Horizonte.  Deve estar tudo deserto, tudo fechado.  Lá no Savassi deve estar fervendo de gente. 
          – Lá onde?
          – Savassi, nunca ouviu falar?
          – É... que eu saiba era o Bairro dos Funcionários.  Savassi era a padaria de um italiano. 
          O tempo passa, as cidades mudam.  Hospedamos-nos no Hotel Amazonas, na Avenida Amazonas, como sempre fizéramos no passado.  Será que mudam para melhor, será uma evolução?  O evaporar das referências pessoais... Um aperto no coração. 
          No restaurante aquele Senhor não tirava os olhos de nós.  Parecia me conhecer.
          – Ora, ora, Vossa Pessoa não é o Médico do Arraial? – Disse finalmente, tomando coragem e acercando-se de nossa mesa.
          A noite toda acordado, voltava no tempo com aquelas letras trêmulas, mas riscadas cuidadosamente no papel almaço, seguindo com grande dificuldade as linhas azuis para se fazerem legíveis.

Minhas Memórias: Final

            E aqui termino estas memórias: falei no meu início no comércio, na vida como garimpeiro nas barrancas do Jequitinhonha, nos ganhos com diamantes, nas minhas terrinhas perto de Biribiri, nos filhos, netos e bisnetos, para chegar a esta confortável casa no bairro da Serra, em Belo Horizonte, onde, sentado no alpendre, traço as últimas palavras.  Deveria ter falado daquele dia.  Mas faltou coragem.  Algum leitor atento notará lacunas neste relato?  Sim.  Perguntará como um pacato comerciante urbano tem sucesso no garimpo, enfrentando pistoleiros, malária, lepra e doença de Chagas.  Quem sabe, escrevendo, não sepulta mais ainda aqueles dias? 
            Um desgraçado padre mudou a minha vida.  Salvo fui, pelo Vaqueiro Misterioso – fantasma errante – e pelo Promotor – valente Doutorzinho. 
            Pensar naquele domingo é doloroso.  A família já estava longe, bem abrigada e protegida.  Inda escuro, ao passo, fui pro arraial.  Matula pra fuga, muita munição, armas azeitadas.  Ruas vazias.  Todo mundo na missa.  Amarrei o animal nos fundos da Igreja.  Colado na parede perto da porta, suava, tremia, com o rolar lento do tempo. 
            Início do Sermão.  Daria tudo pra não escutar meu nome!  Mas o padre falou.  Entrei, quatro passos largos, arma levantada, posição de tiro, a cabeça voando com um certeiro balaço de 44 boca adentro. 
            Meses de fuga, fome, sofrimento, solidão.  Muito, muito arrependimento.  Mas o padre mereceu.  Arruinou minha vida, meu comércio.  Ninguém me cumprimentava mais.  “Um ateu, um ateu entre nós” – assim pregava todo domingo.  Todo Santo Domingo, como falava.  E eu só querendo paz e viver com minhas crenças!
            As vagâncias solitárias não tinham fim.  Como companheiro, sempre nas noites enluaradas, o Vaqueiro Misterioso tentava me dizer alguma coisa com suas aparições e tristes cantorias:

          É a cantilena do vaqueiro pela estrada...
          e o vaqueiro, nas noites brancas de luar,
          é um fantasma errante, com essa voz magoada,
          que vai cantando apenas para não chorar...

            Queria tanto voltar à família, esquecer aquela sangueira toda:

          Vai caminhando calmo pela estrada
          e a sua voz que se abaixa e que, às vezes se levanta
          é a voz de quem padece uma dor ignorada,
          voz que morreu estrangulada na garganta...



            Não queria ter o destino dele:

          Lá vai ele a dobrar a curva do caminho...
          Pois, quando eu for também assim pra nunca mais,
          irei como o vaqueiro, magoado e sozinho,
levando a minha sombra
e os mortos ideais

            Evitava a cidade, as pessoas.  A vida era apenas as pedras do garimpo e as terrinhas onde morava com a família. 
Aquela mancha na testa coçava e ardia o tempo todo.  É herpes, dizia o doutor: “esta pomada minora, mas não cura – doença dos nervos, agonias de coração.”  O médico sabia o que falava.  Aquele povo olhando, parecia comentar:  “a mancha de Caim, a marca de um assassino...”.  Enterrava o chapéu na cabeça e sofria.  Lembrança da sangueira.
Já ia para uns cinco anos da chegada do novo Promotor: “bom dia, boa tarde, boa noite, Doutor”.  O olhar cruzando os óculos inspirava confiança.  Tinha vontade de confessar tudo, falar com alguém.
            O Promotor estava conversando com o médico.  Rodeei, subi e desci a Rua do Amparo esperando o médico sair. 
            “Doutor, matei um padre...”.  Fui falando, falando, falando... tudo.
            “Foi muito bem matado...”.  Escutei.  E por um par de horas ele falou dos crimes de honra, das leis dos homens.  “Eu até abandono esta promotoria!  Não existe prisão para o Senhor!  Se fosse o caso, há muito não estaria livre.  Sempre vi que carregava mistérios e muito medo da lei.”
            “Vamos virar um copo, não esquecendo da dose do padre e enterrar esta alma para sempre no esquecimento.”
            O Doutor era mesmo como o povo falava.  Valente com armas e palavras.  Acabou com o gatilho assassino do Cabo Chico Diabo apenas com uma prosa: “com você a minha arma será apenas uma caneta!  Desta arma você não entende!”  Dizem que o Doutor ficou até com dó de Chico Diabo que, arregalando os olhos, disse: “Doutor, não faz isso comigo não, estas coisas é tudo falatório deste povo.  Sou gente de bem.”  Ao comandante do batalhão apenas falou, na saída da missa, com todo mundo escutando:  “Quem ameaça, pode também levar, Coronel, com toda sua soldadesca, basta uma bala de 32.”  Nunca mais mataram nem espancaram ninguém por aqui.  Ameaçar promotor?  Coisa do passado.

            Voltei nesta mesma noite pra minha terrinha.  Noite enluarada.  Assim que peguei o trilho na saída de Biribiri, cruzei com o Vaqueiro Misterioso: 

          Em que tu pensas? É assim mesmo a vida...
          Toda feita de espinhos, gumes e punhais...
          De vaqueiros que, pela estrada embranquecida,
          vão cantando e passando para nunca mais...

            Pareceu uma despedida final.  Dentro de sua tristeza, conseguiu finalmente dizer-me o que queria.  Não seria como ele.  A figura ia sumindo ao passo lento do cavalo e a triste música cada vez mais longe... até sumir.  Passei a mão na testa.  A mancha desapareceu. 

          E o vaqueiro dobrou a curva do caminho.
– Como deve ser triste ir assim tão sozinho!

            E aqui, nestas últimas linhas, termino de fato minhas memórias.  Retorno à varanda na Serra.  Antiga Serra do Rola Moça. 


          Olhos marejados, terminei a leitura.  A forte lembrança do Promotor, das nossas conversas, dos seus livros.  Não consigo lembrar completamente da dedicatória em uma primeira edição do romance Rola Moça, de João Alphonsus.  Era inédita, posto que assinada não só pelo autor, como por seu personagem principal, Bacharel Anfrísio da Conceição.  Havia qualquer coisa do tipo: “do seu colega de bacharelices...”.  Histórias que o tempo vai apagando.  


          Depois fui medicar em São Paulo e o Promotor foi ser Juiz na Capital Federal.  Sempre que vou ao Rio de Janeiro, tomamos um chope na Galeria Cruzeiro.  O tempo passa, os amigos se vão, as cidades mudam.  Ficam alegrias, tristezas.
E as riquezas da memória, que falam da beleza da vida. 

Nota:

Intertextos com versos da poesia O Vaqueiro, Oswaldo Abritta, 1928.



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