Botswana, Foto T.Abritta, 2008

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Recriação Fotográfica


          Foi fascinante percorrer os salões daquela velha fazenda de café (Fazenda Boa Esperança, Belmiro Braga, MG).  O piso rangia com o andar, cada passo anunciado pelo ranger de madeiras roídas nas rodas do tempo.  Mais emocionante ainda, foi abrir velhos armários, tocar em documentos e objetos há tanto adormecidos.  A descoberta de imagens fotográficas, aprisionadas em mais de uma centena de negativos de vidro, foi como ressuscitar o passado, rostos, crianças, casamentos e toda a vida daquela família. 
          Emocionante volta no tempo.  Como seriam as cópias positivas daquelas imagens em negativo, onde o preto virava branco?

          Separei duas cópias digitalizadas, onde aparentemente duas das meninas apareciam separadas por aproximadamente uma década – final do século dezenove e início do século vinte (V. Figuras 1 e 2).


Figura 1 (negativo digitalizado)


Figura 2 (negativo digitalizado).

          A primeira imagem apresenta uma qualidade técnica mais pobre, e a segunda mostra a evolução do fotógrafo, com o crescimento das meninas acompanhando a qualidade das imagens, agora bem focalizadas e nítidas.
          Bastaria uma pequena operação digital, com a inversão da escala de cinzas, para saltar aos olhos as imagens reveladas. 
          Um olhar mais atento chama a atenção para o primeiro negativo, onde sua baixa qualidade era compensada com uma composição mais artística no posicionamento e gestos das pequenas modelos.  Não teria o fotógrafo dado, durante a revelação, uma tonalidade mais marcante, um sépia, por exemplo, facilmente obtido com os recursos químicos da época?
          Saindo daquele passado de imagens, reclinei-me na cadeira, tirei os olhos da tela do computador e deixei-os vagar por fotografias, mapas, estudos e gravuras na parede.  Com aquele Goeldi bem em frente (V. Figura 3), consegui avançar no tempo.  Uma reimpressão de chapa xilográfica original deste artista feita em 1970 por um de seus alunos.  Reimpressão muito criticada na época (*).  Hoje talvez não comprasse esta gravura.  Mas, por outro lado, as chapas originais foram doadas ao antigo museu do Banerj; com sua extinção, acabaram abandonadas num porão úmido no Museu Antônio Parreiras em Niterói. 
          Assim, quem sabe não teria nas minhas paredes um “artefato arqueológico” atestando o descaso com nossa Cultura?

Figura 3 – Gravura de Goeldi (reimpressão de 1970 usando uma chapa original).  Acervo Teócrito Abritta.

          Girei a cadeira e fiquei lendo lombadas de livros nas estantes ao meu redor.  Separei dois livros: Esse Ofício do Verso, de Jorge Luis Borges e A ReOperação do Texto de Haroldo de Campos. 
Não seria a revelação de um negativo semelhante a uma reimpressão xilográfica?  Ou será que a gravura pertence a um universo artístico, onde autorias devem ser respeitadas e a fotografia apenas uma técnica?  Muitas dúvidas, nenhuma resposta.
Relendo nestas obras alguns trechos sobre a recriação em traduções de poemas, anotei algumas palavras de Haroldo de Campos:

recriação
transcriação
reimaginação
transtextualização
transficcionalização
transluciferação

          Uma sonoridade que apontava caminhos para uma “transposição” e “recriação” na arte fotográfica.  Por que não?
          O resultado desse processo foi a lembrança dos Fotógrafos Pré-Rafaelistas, como Dante Gabriel Rossetti e Julia Margaret Cameron inspirando a primeira imagem, que de fato “pedia” o tom sépia usado por estes artistas (V. Figura 4). 


Figura 4 – Recriação Fotográfica na revelação do
negativo apresentado na Figura 1.

          O segundo negativo, apesar de sua qualidade técnica superior, foi revelado de uma maneira tradicional, sendo mais um documento visual das “sinhazinhas” de nossas antigas fazendas cafeeiras.  


Figura 5 – Revelação digital do negativo apresentado na Figura 2.

Nota:
(*) “Uma ocasião, Goeldi me pediu uma gravura que ele havia feito, pois queria tirar uma cópia e não estava conseguindo, depois de várias tentativas.  A gravura – O Tubarão – ele mesmo confessou que não conseguiu tirar uma cópia igual à original.  Agora, veja só, se o próprio artista tinha dificuldades para tirar várias cópias devido à maneira como trabalhava, tão especial, tão dele próprio, como é que podem ter validade cópias tiradas por aí depois da morte do autor?”
          Fragmento da entrevista com Marcelo Grassmann, concedida em 27 de julho de 1981, para os organizadores da exposição Oswaldo Goeldi no Solar Grandjean de Montigny – PUC/RJ.

Artigo publicado no livro digital: "Fotografia & Imagem: uma jornada poética" , de minha autoria. 








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