Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quinta-feira, 21 de maio de 2015

O Cronista Solitário



          Neste início de ano resolvi não tirar férias, como zerar minhas informações, deixando de ler jornais por mais de um mês, de modo a melhorar a percepção da situação nacional e internacional. Aproveitei para reler Lima Barreto, escritor que muito admiro. Os livros escolhidos foram Recordações do Escrivão Isaias Caminha e Triste Fim de Policarpo Quaresma. Essas obras, respectivamente publicadas em 1909 e 1911, são povoadas de personagens abjetos, servis, sem caráter, corruptos, jornalistas de aluguel e carreiristas desavergonhados, não escapando nem o Marechal Floriano que usa o seu poder de vida e morte para sonegar impostos municipais da fazendola de sua propriedade. Na época, uma das críticas recebidas por Lima Barreto era que seus personagens estavam simplesmente sendo transferidos da realidade como uma chapa fotográfica que imprime diretamente no papel a imagem captada, sem nenhuma criação literária que trouxesse universalidade e perenidade.  Portanto, no futuro, as novas gerações não encontrariam nenhum sabor em sua obra, pois o interesse épico desapareceria juntamente com a geração fotografada.
          Ledo engano! Ao voltar a ler jornais, estavam os personagens de Lima Barreto como se o tempo fluísse tal qual uma espiral. Se olharmos a projeção desta espiral no plano horizontal, veremos as tristes figuras no mesmo ponto. Se subirmos no eixo vertical do tempo, elas se destacam e se ampliam com a complexidade da sociedade e suas infinitas dobras e frestas por onde se esgueiram os agressores.

          Saindo destas reflexões, reclinei-me na cadeira, tirei os olhos da tela do computador e deixei-os vagar por fotografias, mapas, estudos e gravuras na parede. 
Em um canto, Carte Générale de l`Empiré du Brésil.  Noutro mais escuro, fotografia daquela igrejinha há muito inexistente na pequena Cataguarino – a superfície quebradiça do papel albuminado revelava ter sido feito artesanalmente com clara de ovo.  Abaixo, nas fotos familiares, aquelas grandes áreas espelhadas, limites superficiais da prata que tenta abandonar as imagens, acompanhando os fotografados que partiram desta vida.  Na mesinha ao lado, a coleção de pesos de papel de vidro colorido com seus millifiore que não impressionam mais.  As estantes abarrotadas: modernos livros de matemática, ciências e assuntos diversos, convivendo com as velhas lombadas da Brasiliana.  Mais adiante, caneta Parker 61, uma Compactor e mata-borrão, para não falar nos lápis HB-2.  E aquele telefone preto de baquelita, perto do tinteiro com tampas de galalite? 
Levantei-me, saí andando pela casa.  Na sala, máscaras africanas Massai e Macondo, lembrando a arte de Picasso ou Modigliani.  Bonecos de barro do Alto do Moura – terra de Vitalino.  Rótulos, gravados a fogo nos vidros de remédios, anunciavam que a farmácia era mais simples e curativa: arnica, agoniada, garra do diabo.  Os 78 já se foram.  Os de 33 rotações ainda cantavam na Garrard Zero - 100, maravilha tecnológica dos anos 70. 

          Peguei um LP, coloquei na vitrola.  Prostrei-me na poltrona.
          Apenas música: Noturnos de Chopin. 


3 comentários:

  1. Nasci um pouco depois de vc, mas meu avô paterno, engenheiro e historiador sempre nos contava os causos de sua época e de um pouco mais para trás, meu pai puxou por ele. E agora, meu filho que hoje completa 24 anos, ama história, tem uma memória de dar inveja, segue os passos do avô e do bisavô, sempre me contando histórias da humanidade, seja ela da época que lhe dê na telha. É ótimo ter pessoas assim por perto. Sou uma mulher de sorte!

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    1. Obrigado, ficando muito contente que "O Cronista Solitário" tenha trazido tão boas lembranças. Parabéns para seu filho e para você. E que se sinta sempre Feliz!

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