Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Érice


          Esta noite caminho pela última vez nos becos medievais da pequenina Érice.  Equilibrada em rochedos, a uns setecentos metros de altura, resistiu a muitos ataques.  Resistirá às mudanças do dito progresso?

          Lá embaixo o mar brilha com as luzes de Trapani.  Para onde rumaremos bem cedo e depois voaremos rumo a Roma, e daí cada um segue seu destino nos quatro cantos do mundo.

          Foram duas semanas participando de uma reunião sobre Espectroscopia Atômica e Molecular, patrocinada pelo Centro Internacional para a Cultura Científica Ettore Majorana. 

          A par dos conhecimentos específicos, muito aprendemos e levamos sobre nosso mundo.  Di Bartolo, o organizador do encontro, levou-nos a uma profunda reflexão sobre a riqueza da diversidade humana e a sobrevivência de culturas locais, mesmo convivendo com o mundo em constante mutação.  Assim, visitamos nos fins de semana: Segesta, Selinute (V. figura 1), Palermo, Monreale.  Assistimos às apresentações de música e cultura, bem como participamos dos inesquecíveis festivais da Culinária Siciliana.

          No jantar de despedida, Di Bartolo citou Roosevelt, Lincoln, Martin Luther King e até Don Helder Câmara.  Falou das ameaças à paz mundial e do jovem cientista desaparecido aos trinta e um anos de idade e que dava o nome ao Centro de Cultura Científica:

          Ettore Majorana, intuindo o poder de destruição e a magnitude de suas descobertas em Física Nuclear, teria escolhido o silêncio e desaparecimento, diante da angústia intelectual entre as belezas da Ciência e a Ética, naqueles trágicos anos que precederam a Segunda Guerra Mundial, com a ascensão do Nazismo.  A genialidade de Majorana foi comparada a de Galileu e Newton.  Uns dizem que se refugiou em um monastério.  Outros que se suicidou na cratera do Vulcão Etna.  Alguns dizem ainda que foi para a Rússia, na esperança de que o compartilhamento de segredos nucleares poderia levar a um equilíbrio entre as nações.  O fato é que nunca mais foi encontrado...”

          E assim, vagarosamente e solitário, vou caminhando nesta despedida noturna.  Não apresso os passos.  Apreço cada passo.  Vou lembrando pequenas coisas, como o carrinho de mão cheio de tomates para fazer o molho do almoço, da música em um antigo piano, das partituras – todas originais.  Verdadeira emoção ter nas mãos uma pauta musical dos tempos de Vivaldi. 

E as enormes barricas de Marsala ou o Vino da Tavola Siciliana?

          Alguns personagens são inesquecíveis, como o jovem israelense, que, como major comandante de um esquadrão de tanques, preferiu ver quase todos os seus companheiros morrerem, mas não atiraram contra ninguém: atirávamos na areia.  Mas eles não se assustaram e queimaram tudo com gasolina.  Escapei por milagre.  Agora minha vida é a Ciência, e sofrimento por todos os colegas que morreram.  Acho que foi o Marsala.  Nunca havia falado disto!”

          E o Dr. Kaminski?  Era o diretor de um dos maiores institutos científicos de pesquisa em cristais para lasers da União Soviética.  Não conversava com ninguém fora de suas palestras, e dava exemplo do espírito de pureza de um Comunista: veio de Moscou para a Sicília de trem.  Aproveitava os dias de viagem para discutir ciência com seu pessoal.

          Entretanto tinha uma fraqueza – que não chegava a ameaçar os segredos científicos que guardava.  Sempre que me via, abria seu caderno de cálculos, tentando entender como um mutuário do BNH, no final do pagamento de suas prestações, podia dever um valor maior ainda do que o valor inicial de compra do imóvel.  Difícil para ele entender a inflação galopante.

          Já retornando da despedida, passei na única portinha aberta durante a noite.  Uma espécie de birosca, onde no passado as guarnições das fortalezas de Érice vinham tomar alguma coisa nos momentos de descanso.  Hoje é frequentada pela equipe que operava um radar da OTAN instalado na parte mais alta da vila: estamos tomando o tal de rabo-de-galo (cachaça misturada com Fernet Branca).  Muito melhor do que misturar com café.  Guarde nosso segredo.  Ninguém pode descobrir que nestes momentos o radar fica abandonado...  Bem, quando acabar a cachaça que dei de presente tudo deve voltar ao normal.  Afinal, são hábitos de mais de cem anos: Fernet Branca com café. 

          Andando, escutando meus passos nas pedras medievais, uma janela abriu repentinamente.  A jovem que surgiu assustou-se com a presença inesperada:

Buona notte signorina.

Buona notte signore.

          E esvaziou um penico no meio do beco.

          Tempos de constante mutação...  costumes que permanecem.
 
Figura 1 – Di Bartolo em Selinute.  Captura digital da imagem de uma
projeção de slide.  Foto original: cromo colorido, T.Abritta, 1979.

 

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