Botswana, Foto T.Abritta, 2008

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Toque das Alagoas

Vamos lá no toque da tia. Na prainha deserta, batidas de tambores. O silêncio da escuridão estremecido. Batuque – toque mágico do Candomblé. Tudo passado. Hoje, apenas o nome: Praia do Toque de São Miguel dos Milagres.
No caminho rodamos por estradas esburacadas, margeadas por casinhas coloridas, tal paredes infinitas a espantar tristezas. Pequenas fachadas. Mínimos retângulos acomodando apenas janela e porta. Ar poético à urbanização crescente.
No banco da praça, ar sério, a menina risca trabalhos escolares no caderno. Ao lado, o casal, olhos esbugalhados, sempre pregados na televisão comunitária – Oferta do Prefeito Fulano. Tudo para o Povo! Na sombra da árvore, a molecada descansa com as línguas roxas de tanto comer brinco-de-viúva (1). Adiante, mulheres lavam roupas nas bicas da lavanderia pública – Oferta do Deputado Sicrano. Tudo para o Povo!
Na praia, outros correm atrás da bola.

Atrás da bola. Foto T. Abritta, Alagoas – março de 2010

Gostaríamos de esquecer a pobreza. Nem pensando em Graciliano Ramos, encontramos saídas. No Passo de Camaragibe tentamos com Aurélio Buarque de Holanda. Quem sabe, janelas e portas dos velhos casarões não se abrem, soprando alguma mudança? Que destino para este povo? Sempre maltratado, explorado, abandonado. Eternamente eleitores sem voz?
Vidas sem esperança? Não. Ela está sempre presente. Seja nos infinitos coqueirais que seguem areias e águas azuis esverdeadas ou nas mãos que tecem beleza em cortinas e panos de filé.
A esperança está também na teimosia do carpina (2) que não deixa morrer as tradições das técnicas navais ao construir uma jangada de sete toras: acabaram com a mata todinha pra plantar cana. Seu Acácio acabou arrumando uma árvore de Pau-de-Jangada (3). Ele gosta é de mar calmo, bom de pescar batata (4).
Mas a grande esperança é a sabedoria popular: noite de trovão, chuvarada, muito sapo. E manhã de sol, dia de pegar tanajura (5) pra fazer farofa!

Cortina de filé. Foto T. Abritta, Alagoas – março de 2010

Imagine o Sinhô! O Prefeito cortou licença de pescador que não votô nele. O Dotô Promotor foi logo dizendo: “não tem mais isto aqui não!” Botou tudinho no papel.
Lento, muito lento, ventos de mudança.

E as gentes sempre a comemorar. Da areia molhada cata o maçunim (6). Do mangue, uçá, aratu, guaiamu (7). Do mar, o siri. Final de dia: sorriso moreno, lata na cabeça – tesouro pra Semana Santa. Do Rio Tatuamunha, a alegria do peixe-boi. Das margens do Riachinho, uma revoada de trinta-réis.


Maçunim para a Semana Santa. Foto T. Abritta, Alagoas – março de 2010

Noite escura, sem Lua? Hora de fachear (8). O facho está bom! Grita o povo todo, acendendo as margaridas (9). O mar vira dia com centenas de tochas. Na pretura do céu, o pontilhar de estrelas tão perto. Marte brilha mais vermelho. Luminoso corisco risca de luz o horizonte.

Digo que tentei. Com palavras, mostrar um pouco do que vi, escutei, senti e me emocionei por estas terras. Difícil. Onde ficou o pungente texto? Roubado pelos opressores? Não sei. No máximo restou uma croniqueta-ensaio.
Como encontrar palavras diante da emoção em ver a multidão – homens e mulheres, crianças e velhos – mar adentro, sumindo na noite, virando pequenas luzes nos arrecifes? Como dizer a sonoridade da criança: vou eu mais painho, na busca do alimento pra Semana Santa?
Acabei esbarrando no molambo da língua paralítica (10).
Tento acudir-me com fotografias. Talvez belas, mas simples reduções planas de fatias dos cenários espaciais. Lavadas de emoções reais.
Quem sabe, um esforço coletivo falaria mais, começando por expulsar a politicagem?
Portanto, poetas, prosadores e sonhadores: salvemos este povo e sua cultura; visitem, escrevam, falem, cantem, gritem Alagoas.
Notas:
1. Fruto do jamelão.
2. Carpinteiro.
3. Originalmente as jangadas eram construídas de troncos de Apeíba, o Pau-de-Jangada. Hoje são construídas de compensado naval e recheadas de isopor.
4. Bodião-batata, peixe da família Scaridae, gênero Cryptotomus.
5. Iça, nomes de origem indígena para as fêmeas da saúva. Os abdomens roliços das iças são disputados como verdadeiros pitéus por pássaros e os homens do campo que usam para fazer paçoca (farofa). Assim, evitam a poluição com inseticidas no combate a esta formiga.
6. Nome, provavelmente de origem indígena, para pequeno molusco encontrado enterrado na areia das praias entre as zonas de marés. Assemelhado ao vôngole.
7. Uçá, aratu e guaiamu são crustáceos de mangues. Gabriel Soares, no Tratado Descritivo do Brasil, em 1587, já descrevia o uçá e o cuidado dos índios na preservação deste caranguejo: largavam as fêmeas para que não acabassem e fizessem criação.
8,9. Nas noites escuras, sem Lua, e maré baixa, os peixes dormem em águas rasas, favorecendo o tipo de pesca chamada de “facho”. Os pescadores trabalham em duplas. O primeiro segura uma tocha na mão esquerda e um facão na direita. Os peixes, surpreendidos, são espetados e colocados no cesto do segundo pescador, que carrega também um saco com pedaços de pneu para alimentar a tocha, constituída por uma lata com cortes verticais, abrindo-se como uma margarida, e presa a um pedaço de pau. As cinzas caem pelas fendas da lata – a margarida – de modo a não apagarem a chama.
10. Fragmento (intertextual) da poesia A Ideia, de Augusto dos Anjos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário