Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Testemunho 2014: Um dia ensolarado no Rio

Teócrito Abritta
            Teócrito Abritta, 68 anos, é Físico e Escritor. Foi Professor do Instituto de Física da UFRJ, colunista do jornal Montbläat, publicando quase duzentos artigos, crônicas e contos. Tem também colaborado em diversas publicações na Internet, em boletins de empresas, partidos políticos e blogs, bem como em revistas literárias. Publicou os livros “Memória, História e Imaginação” (2010), “Cidades de Memórias” (2011) – primeiro lugar em Crônica UBE/RJ (2012) e “Os Meus Papéis” (2013) – terceiro lugar em Crônica UBE/RJ (2014), pela Oficina do Livro Editora. Participou de diversas antologias. Escreveu prefácios para livros e apresentações de exposições artísticas.


Um dia ensolarado no Rio

...é assim:
          Podemos iniciar com uma visita à Natureza, admirando o colorido tapete vermelho-púrpura da floração de um Jambeiro que sobrevive nos jardins do Instituto Moreira Salles (V. Figura 1).
          Volta aos tempos da infância, da molecada empanturrando-se de jambos pelas ruas da cidade.
          Memória apagada pela pobre consciência ambiental.  Árvores impiedosamente abatidas com a alegação de que seus frutos e flores destruíam os carros, corroendo-lhes as pinturas.
          O culto do automóvel celebrando a ascensão social.

          Que tal refugiar-nos em pedaços do Rio Antigo?
          Visitar a Rua do Lavradio e adjacências?
          Admirar belos casarões emoldurados pelo céu azul.  Participar de uma Roda de Samba no Armazém do Senado.
          Comer pipoca – salgada ou doce.
          Um chope no Bar Brasil, ou até mesmo comer orelha de porco com caipirinha no meio da rua, admirando a imagem do recorte arquitetônico contra o glorioso azul celeste, refletida em uma poça de esgoto!
          Andar sobre velhos pisos de granito ou nos arabescos de ladrilhos hidráulicos.  Cortar cabelo em uma barbearia popular ou de “elite”, com cadeiras forradas com roto veludo vermelho e espelhos com molduras douradas descascadas.
          Explorar sinistros ambientes, atravessando a servidão de passagem sob as ruínas de um casarão incendiado, para, no final, descobrir pequena vila dos tempos antigos, com pessoas conversando sentadas em cadeiras defronte suas casas.
          Visitar velhos antiquários, escutar o pregão de leiloeiros:
Estamos mudando de ramo.  As peças estão baratíssimas.  Arrematei quase tudo de um luxuoso, e antigo, navio europeu que foi desmontado num estaleiro de Niterói.  Amanhã faremos um leilão.”

Quanto dão?  Quanto dão? 
Quem dá mais?  Quem dá mais? 
Esta bengala de castão de ouro!
Esta arca colonial!
Este faqueiro de prata!
Esta louça azul de Macau! (1)

“Com sorte podem ver a fumaça da última sopa na terrina ou os vestígios dos lábios da duquesa na borda daquela xícara com asa quebrada!”

          Por fim, almoçar sardinhas fritas e um pulpo a la galega na casa Momus, herdeira dos velhos balcões e estantes do Lidador, liquidado pela especulação imobiliária.
          ...beber café, admirar o gigantesco mural da artista Panmela Castro gritando em letras garrafais: Onde Há Respeito Há Paz!

          Ah, mas aquela rua está tão pertinho...
          Parei o carro na pracinha, olhando ao longo da Rua Salvador de Sá os casarões que se desfazem, ruínas de singular exemplo das moradias coletivas construídas pela antiga Prefeitura Municipal do Distrito Federal.  Escadarias de madeira, passadiços em balanço – acesso das habitações – tudo apodrecendo abandonado (V. Figura 2).  Escuto vozes das irmãs e primas por afinidade: “vamos visitar a vovó e a bisa”.  E lá iam todos para o casarão na Rua Presidente Barroso.  Vejo os meninos com suas camisas de jersey, meninas com enormes laçarotes brancos nos cabelos.  Escuto a voz grave de Seu Álvaro, histórias de Dona Annita, Dona Elvira, Dona Geni.  Vejo, do avarandado de madeira, as bandinhas carnavalescas no coreto da Pracinha.  De noite, no enorme Buick, retornávamos com seu Álvaro dirigindo.  Charuto na boca, sempre de terno marrom.  Ao passarmos pela Praça Paris, éramos sempre acordados e após o espetáculo das coloridas fontes luminosas, todos caíam novamente no sono.
          E o Buick rodava macio e vagaroso.

          Assim que contornei a Pracinha Coronel Castelo Branco, mal embiquei na Rua Presidente Barroso, a ordem de comando: “vai vasando senão vai sê pió!  Vai Manso, de ré mesmo...”.
          Não sei se tive medo ou pena.  Jovens com menos de vinte anos de idade portando armas de guerra.

          Há uns vinte anos todo aquele quarteirão havia sido desapropriado visando sua restauração para salvar um pouco de nossa História, registrando o sofrimento das primeiras levas de imigrantes italianos e do espírito dos anarquistas que não se curvavam diante das autoridades e se refugiavam da escravidão “branca” das antigas fazendas cafeeiras do Vale do Paraíba.
          Entra Secretário, sai Secretário de Cultura, tudo continua abandonado e invadido pelos novos deserdados, por Deus e pela sorte (V. Figura 3).
          Hoje preferem as “revitalizações” onde toneladas de vigas com mais de quarenta metros de comprimento se desvanecem no ar.  Preferem construir avenidas sem drenagem para águas pluviais, o “bota tudo abaixo”, as construções descartáveis.
          Empreiteiras felizes, ganho fácil, voto barato.

          Há dez anos, quando ali estive, foi diferente.  Na rua meninas brincando de amarelinha.  Nos terrenos baldios, onde casarões já desabaram, meninos brincando com bolas de gude ou cerca-terreno.  Pessoas conversando nas calçadas. 
          Assim que parei em frente ao número 87 (V. Figuras 4 e 5), todos se assustaram.  “Não sou polícia nem fiscal da prefeitura, apenas quero tirar uma fotografia deste casarão onde morou a família de meu bisavô”, declarei.
          Tudo voltou ao normal.

          Na década de oitenta do século dezenove, partiu de uma pequenina aldeia, próxima da cidade de Fagnano Castello, província de Cosenza, sul da Itália, um grupo de moradores.  Alguns aportaram nos Estados Unidos, outros no Rio de Janeiro, Santos e Buenos Aires.
          No Porto do Rio desembarcaram os irmãos Benjamin e José Abritta, com suas famílias e a irmã solteira Rosa.
          Já instruídos, ainda na Itália, deram nomes falsos aos funcionários da imigração, escapando do envio compulsório ao Vale do Paraíba.
          Com suas profissões de alfaiate e sapateiro, Benjamin e José sobreviviam às dificuldades do Rio de Janeiro.
          Com o surto de febre amarela e outras insalubridades, rumaram para Minas Gerais. 
          Provavelmente fizeram o trajeto pela estrada de ferro Rio-Três Rios-Porto Novo da Cunha (atual Além Paraíba)-Cataguases, e, pela antiga estrada de terra da Areia Branca, em carros de bois ou lombo de mulas, chegaram ao povoado de Espírito Santo do Empoçado, atual Cataguarino.(2)
          Benjamin passou a dedicar-se ao comércio de café e mais tarde retornou ao Rio, comprando a casa na Rua Presidente Barroso, onde três gerações de sua família moraram.
          No Rio, Benjamin chegou a enriquecer, tendo casa de comércio na Rua da Carioca.  Acabou falido.  Todo o dinheiro que ganhava era para ajudar seus compatriotas que aqui aportavam.
          Até hoje guardo na memória aquela cena do meu pai fazendo uma reverência e beijando a mão de Dona Angelina, viúva de Benjamin.  Toda a criançada ficava na soleira da porta, admirando a Mamma na penumbra, em meio à santaria, iluminada apenas pela chama de uma vela.  Pausadamente ia falando uma língua que ninguém entendia – esquecera o italiano e nunca aprendera o português.  Naquele centenário rosto enrugado, sobrevivia o dialeto de sua infância, de sua pequena aldeia.  Verdadeiro fóssil vivo de uma língua morta.


          A história poderia terminar aqui.  Mas meu cerne ordena que continue.  Que suba a Ladeira da Misericórdia e escute do Oficial de Dia no Instituto Geográfico do Exército, que funciona na outrora Fortaleza da Misericórdia: “Visitas estão suspensas até ordem superior.  Afinal o Morro da Providência não é longe e temos armas e bens a zelar.  Bom, neste caso, Professor, permitirei, por minha conta e risco, breves minutos de permanência junto à guarita com vista para a região portuária” (V. Figura 6).
          E assim, aquela fortaleza, que já teve “36 bocas de fogo e 1.000 balas de diferentes calibres”, é abatida pela segunda vez.  A primeira por perturbar a paz episcopal com suas salvas de canhões.  Hoje, pela tolerância dos nossos governantes com o crime organizado.

          A visão esplendorosa da Baía da Guanabara, as palavras do Biólogo Mário Moscatelli:

            Depois de gastos mais de um bilhão de dólares no Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, que não gerou expressivas melhorias ambientais, e agora está recebendo mais quinhentos milhões de dólares na esperança que esse dinheiro seja mais bem gerido, o que se constata é que o Rio de Janeiro, assim como o resto do país, naufraga nas próprias fezes.  Longe de ser um problema de falta de recursos, o que salta aos olhos é a falta de interesse, de vontade política e a mais completa falta de gerenciamento primário dos recursos financeiros.  As manchete dos jornais dizem tudo: 7% de 114 obras estão prontas e 60% atrasadas, paralisadas ou não iniciadas.  Enquanto a “burocracia” domina, os superfaturamentos abundam e a degradação ambiental dos corpos d’água e na Saúde Pública dominam o cenário nacional, a certeza da impunidade de irresponsáveis administradores públicos só faz crescer a certeza de que a sexta economia do mundo vai naufragar em pleno século XXI.

          Quando minha alma crítica perscrutava a dita revitalização da Zona Portuária, enorme prédio – o anexo da Biblioteca Nacional – tal um emissário do mal, surge à minha frente.  Ali, a Cultura não é preservada.  É condenada à morte em quilômetros de prateleiras empoeiradas: documentos, livros, mapas, fotografias, pergaminhos, mofados pelas infiltrações de água, comidos por traças, cupins e até mesmo ratos.  Um cheiro insuportável envolve o ambiente que deveria ser de conservação, pesquisa e conhecimento (3).
          E não me canso de enumerar a lista de nossas perdas já reconhecidas oficialmente:
            “A desídia de nossos governantes é responsável pela destruição de nosso patrimônio cultural, encontrando-se desaparecidas no presente momento mais de 8.000 fotos históricas, mapas e gravuras; cerca de 2.000 livros raros e insubstituíveis; para não falarmos das mais de 1.000 obras sacras que ninguém sabe ninguém viu.  No tocante à fotografia, somente da Biblioteca Nacional foram roubadas 750 fotos, incluindo parte da coleção Thereza Christina Maria, doada por Pedro II e tombada em 2003 pela Unesco comomemória do mundo”.  Para a Delegacia de Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da Polícia Federal, uma estimativa de mil obras furtadas nesta biblioteca é ainda muito conservadora.  Outra perda irreparável foi o roubo de 1.500 fotos – 19 de um total de 27 álbuns de fotografias – de Augusto Malta do acervo do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.  O ataque aos nossos museus e centros culturais intensificou-se nestes tempos de total desvalorização cultural, da perda de valores éticos por nossa intelectualidade, bem como do vergonhoso silêncio em nossos meios acadêmicos, que a tudo tolera por interesses inconfessáveis.  Podemos falar também dos saques no Palácio do Itamaraty, no Museu da Chácara do Céu, na Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFRJ, na Biblioteca da Fundação Oswaldo Cruz, para não falarmos de museus estaduais ou municipais, por exemplo, o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco e a Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo.  Não esquecendo do corte dos recursos de diversos centros culturais, como a Casa de Jorge Amado, abandonando à própria sorte, milhares de documentos sobre a História do Brasil, da Bahia e da grande literatura deste escritor”.


          O dia já caía, tempo apenas para uma visita ao Cais do Valongo, onde, entre 1811 e 1843, desembarcaram mais de quinhentos mil negros escravizados, vindos, em sua maioria, do Congo e de Angola.
          O Valongo foi declarado patrimônio nacional em novembro passado.  Na ocasião, a Unesco considerou o local parte da chamada Rota do Escravo, projeto que foi lançado por esta instituição em 2006 para destacar o patrimônio material e imaterial relacionado ao tráfico de escravos no mundo.  Este cais foi construído para ser ponto de desembarque e comércio de escravos.  Em 1843 foi transformado no Cais da Imperatriz para receber Theresa Christina, que se casaria com D. Pedro II.  Em 1911 esta área foi aterrada, o passado soterrado, dando lugar à Praça do Commercio

          Já anoitecendo, chego em casa.  Passo os olhos nos jornais.  Duas notas escondidas em páginas secundárias:
          “Toma posse no Palácio Gustavo Capanema, blá-blá-blá, o Comitê Consultivo da Candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade, composto por membros de associações sociais e comunitárias, representantes das três esferas governamentais; fulano, sicrano e beltrano”.
          “O Ministério da Cultura autorizou a captação de R$ 3.526.900,00 para a turnê que irá celebrar os cinquenta anos de carreira da cantora fulana de tal.  Em 2011 essa cantora foi alvo de uma polêmica por seu projeto para um blog de poesia autorizado a captar R$ 1,3 milhão pela Lei Rouanet”.
          O dinheiro público, que falta na Cultura, indo para o ralo. 


          A título de epílogo:
          “Essa menina já está parecendo uma intelectual. Quanto mais souber, mais infeliz será.”
Do conto O Espartilho, de Lygia Fagundes Telles, onde a patroa passa a trancar uma estante onde ficavam os dicionários e livros – preocupada com a mania da empregada de consultar o pai-dos-burros.


          Desesperanças?
          Não.
          A minha Escrita de Resistência
          é a minha Esperança.




Figura 1 – Jambeiro, Instituto Moreira Salles.  Foto T.Abritta.


Figura 2 – Casarão em ruínas na Rua Salvador de Sá.  Foto T.Abritta.


Figura 3 – Área que já deveria ter sido restaurada
no centro do Rio de Janeiro. Google Maps.


Figura 4 – Rua Presidente Barroso 87. Foto T.Abritta.


Foto 5 – Rua Presidente Barroso 87 (detalhe da fachada). Foto T.Abritta.


Figura 6 – Fortaleza da Conceição. Foto T.Abritta.
Notas:
(1) Intertexto com fragmentos da poesia Leilão de Mauro Mota.
(2) Exma. Família Abritta, Maria Joana Neto Capella, Edição do Autor, 2004.
(3) No conto A Morte e a Morte de Erivaldo (publicado em Os Meus Papéis, Teócrito Abritta, Oficina do Livro Editora, 2013) abordamos também o abandono de um dos maiores patrimônios ferroviários do mundo que está sendo vendido como sucata, na região da Leopoldina, Rio de Janeiro.

Fotografias da Rua do Lavradio e imediações, bem como do mural da artista Panmela Castro podem ser vistas nos ensaios fotográficos Um dia Ensolarado no Rio e Onde Há Respeito Há Paz.  Procurar em “Álbuns” no link abaixo:











2 comentários:

  1. Teócrito, suas matérias são de relevante importância, porque informa de maneira precisa e correta sobre os assuntos. Lamentável ver o Rio de Janeiro assim sendo saqueado na sua memória cultural. Vi no Museu do Mar sobre os Valongos e a sua importância cultural.O Rio contém a história de um Brasil.O que percebo é que a era das "coisas", da materialidade vem substituindo a cultura a informação, como se o passado fosse hoje e o ontem nunca tivesse existido. Lamentável e triste. Povo sem passado é povo sem memória, sem história, sem referência sem romantistmo. Parabéns e obrigado pelas suas matérias. Abraços

    ResponderExcluir
  2. Obrigado, Iara. Que o colorido do Jambeiro inspire uma retomada de consciência e salve nosso Patrimônio tão esquecido. Abraços.

    ResponderExcluir