Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Noturno para Paris

          Hoje o dia foi para despedidas.  No almoço um tinto do Monte Nebo para acompanhar a costela de carneiro.  No jantar, o vinho branco valorizava o peixe do Mar Vermelho, chegado há pouco do porto de Aqaba.
          Se Moisés bebeu deste vinho, os conquistadores de Roma estocavam-no em tonéis guardados em grutas escavadas nas rochas, esta seria a nossa bebida eleita.  O vinho do Monte Nebo.
          O Mar Morto, o Rio Jordão e Betânia já ficavam para trás, nas profundezas daquela gigantesca fossa geológica.
          Subíamos as montanhas e já cruzávamos as escuras e desertas ruas de Mádaba.  Em menos de uma hora chegaríamos ao aeroporto de Amam para o voo desta madrugada.
          No caminho, lembranças dos mapas medievais em mosaicos que, na antiga Mádaba, orientavam os viajantes pela Terra Santa.  Lembrança também das multidões que, em cada parada, num entra e sai dos ônibus, viajava pela estrada do deserto em direção à Arábia Saudita rumo a Meca.
          Crianças, jovens, velhos, homens e mulheres, numa alegria que lembrava nossas romarias religiosas para Aparecida ou Juazeiro de Padre Cícero.
          A maioria dos peregrinos vinha da própria Jordânia ou do Iraque.  Da Síria e outros países, a guerra dificultava, mas mesmo assim chegavam por rotas alternativas passando pelo Líbano e entrando pela Palestina.




Carro de combate.  Amam, Jordânia.  Foto T.Abritta, 2014.

          Mas a imagem que vimos quando chegamos a Amam não me saía da cabeça.  Um carro de combate estava camuflado nos jardins do hotel, mostrando que a guerra nos circundava naquela ilha de paz.

          Os acontecimentos no Natal de 1991 em Belém acabaram invadindo-me os pensamentos:

          A tropa de ocupação proibiu a saída da procissão.  Um grupo de fanáticos religiosos se reuniu no Túmulo de Raquel para hostilizar os cristãos – terrível ironia em nome de um símbolo religioso do amor maternal.
          Carros de combate, tropas de soldados armados por todos os lados.  Os Palestinos, acuados, queriam apenas entrar na Igreja da Natividade nesta noite de Natal, para rezar e libertar a procissão que sairia pelas ruas de Belém, numa tradição já milenar.
          Grades e barreiras bloqueavam a passagem do povo.
          A multidão batia com os sapatos nas grades.  Até a Cristina, revoltada, correu, tirou um dos sapatos, aderindo ao protesto, sempre gritando o refrão: ‘This is a church, not a prison!’
          Mas milagres acontecem.  As portas foram abertas, e todos entraram cantando junto com a procissão, que circulou, não sei como, no pequeno pátio interno da igreja.
          Os Palestinos, agora felizes, se reuniram depois na praça da Natividade, cantaram músicas populares e, em menos de uma hora, se foram.
          As luzes da praça apagadas, tudo deserto.
          A escuridão do medo.

          Mas não foi o Natal mais triste da minha vida graças ao jovem que na manhã seguinte nos esperava na porta do hotel:

          “Sou apenas um ‘peluqueiro’(*).  Gostaria de não ter sido um dos soldados que estavam na porta da igreja.  Entendo um pouco de Português, meus pais são argentinos, mas nasci aqui.  Estou muito envergonhado com esta ocupação.  
          Peço desculpas.  
          Quem sabe um dia isto tudo não acaba bem?"

Chegamos ao aeroporto: voo noturno para Paris.

Notas:
(*) Cabeleireiro.
   - Esta é a terceira crônica sobre a Jordânia, escrita no final de maio de 2014, poucos dias antes de explodir a extrema violência no Iraque e pouco depois na Palestina.

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