Serro,
Diamantina, Itamarandiba.
Couto
Magalhães, Capelinha, Turmalina.
Berilo,
Minas Novas, Chapada do Norte, Grão Mongol.
Virgem
da Lapa, Novo Cruzeiro, Araçuaí, Padre Paraíso, Itinga.
Itaobim,
Rubim, Salinas, Joaíma, Medina, Pedra Azul.
Jacinto,
Almenara, Jordânia, Mendanha.
Sopa,
Milho Verde, Biribiri.
Tantas cidades, tantas vilas, tantos arraiais,
povoados, lugares e lugarejos. Parece
até um poeminha piramidal. E olha que
faltaram muitos. Não vejo, por exemplo,
o Vau – onde os viajantes atravessavam o Jequitinhonha. O nome do povoado acabou confundindo-se com a
poesia geográfica. Mas onde trocar o
cravo de uma ferradura?
Imenso Vale do Jequitinhonha. E lá, justamente lá, acontece isto. Naquela Cidade, sede de Bispado e de quartel
da Polícia Militar. Paisagem de minério,
riqueza, sonhos de garimpeiros, solidão de tropeiros.
Imutável ordem de pedra e muitos
ais. O povo até diz: cidade do p – pedra, padre, polícia.
No mercado, vendas, vendinhas e
biroscas; no barbeiro, ferreiro, sapateiro.
Nas esquinas da Praça – onde fervia o comércio de pedras –, no clube e
até na cadeia. Fosse na saída da igreja
ou no Beco do Mota. O falatório era o
mesmo:
Um Promotor de fora?
Como pode?
Não é filho da Terra!
Não devemos tolerar!
Alguns tentavam a desqualificação
social bisbilhotando os trens do Promotor:
É um João ninguém!
Vocês viram? Apenas
móveis velhos: cama de casal bem pobrinha, guarda roupas de pinho, bercinho já
usado para o filho que vai nascer, mesa de escritório e cadeira já descascadas;
um sofá velho, mesa de tábuas e quatro cadeiras para a cozinha. Ah, a bateria cheia de panelas amassadas,
duas estantes feitas de caixote e montes de livros velhos. Um pobretão!
Tem apenas uma mão na frente e outra atrás!
E riam debochadamente.
Outros, mais agressivos, pressentiam
seus reinados ameaçados:
O Coronel tem que tomar providências! Senão entro na cidade com meus homens!
Mal sabia Seu Valter o que iria
acontecer com o filho – assassino e braço direito – Valtinho.
Até aos sentimentos familiares e
cínicas tradições, apelavam:
Não sei como Seu Ari pode alugar casa para um promotor
casado. Afinal tem três filhas
solteiras. A mais velha, professora
formada, já vai pros seus dezenove anos.
Neste caso discordo, basta Seu Ari não ser tão exigente que
não faltarão pretendentes. Reza a
tradição que marido de professora não precisa trabalhar.
E brindavam à beleza da jovem,
entornando mais um trago.
As notícias se agravavam:
Imaginem... mesmo de dia o promotor tranca à chave a porta
da sala de sua casa. Intolerável ofensa para
todos nós!
Ontem ele chegou à janela, cara de nenhum amigo e ficou
examinando, contra a claridade, as raias da carabina.
Boa coisa não planeja.
Apenas
arma de qualidade não garante tiro certeiro.
A
bala que vai, também vem.
Ainda contarei esta história de trancar
portas, bem como a saga daquela carabina.
Hoje pela manhã foi pior:
O Promotor mandou fechar a porta da cadeia. Já pensou, se você dá azar de atirar num
desafeto qualquer e acaba na jaula como animal?
Agora é assim: se der uns tiros para defender sua família fica
desonrado.
O Tenente-Delegado falou serem ordens assinadas pelo Juiz: “recolha
os presos, mande chamar até em casa, se for necessário – sempre
seria – e passe o cadeado”.
Não
adianta agora o Delegado ficar se lamuriando por aí: “estou muito envergonhado
e blá-blá-blá”. O fato é que acabou aderindo
ao intruso. Até o Prefeito declarou ter
sido apunhalado pelas costas pelo ingrato.
É interessante ressaltar que, mesmo os
mais humildes, sempre explorados e ofendidos, também compartilhavam das
opiniões de seus opressores, acabando por defendê-los. Não vejo nisso uma traição de classe. Tenho muita compaixão por este povo que de
tão oprimido acaba cultuando Belial,
o Deus do Mal, na esperança de
aliviar a severidade dos castigos. São
anos, quase eras geológicas, a cristalizar camadas da desigualdade social. Só trabalhando muito, dando todas as
oportunidades para esta gente se educar, um dia a sociedade será transformada.
Um bom exemplo desta distorção foi a
passagem da Coluna Prestes pelo
Nordeste. Quanto mais pobre a região,
maior resistência enfrentava. Solitários,
sertanejos ajoelhavam-se nas estradas, peito aberto, e atiravam matando meia
dúzia de soldados, até serem impiedosamente abatidos. Inúteis mortes, verdadeiras imolações. Nem sequer arranhavam o poderio dos coronéis.
Aqui tive que parar a escrita, enxugando
as lágrimas nos olhos vermelhos. Lembrei-me
de Che Guevara e sua aceitação
fatalista de um povo
simples , que
não o compreendia e não
o aceitava, delatando-o, traindo-o, vendendo vidas
de jovens e idealistas
guerrilheiros ao exército
boliviano – a mesma força
de repressão que
massacrava esses índios
a serviço de companhias
multinacionais . Mas
Guevara estoicamente aceitava essa realidade.
Se desconfiassem, eu seria um homem
morto. Já fiz quase uma dúzia de exames
de corpo de delito e em breve faremos a exumação do cadáver de Seu Onofre,
marido da Dona Cassandra – que já anda sorridente pelas ruas, cantando uma
antiga cantiga de roda de Araçuaí:
Palmatória quebra dedo
Chicote
deixa vergão
Cassetete
quebra costela
Mas
não quebra opinião
Na antiga Grécia o personagem
mitológico Cassandra encarnava o sofrimento feminino através dos tempos.
Porta dos Leões.
Micenas, Grécia. Foto T.Abritta,
1990.
...as
muralhas ciclópicas, que hoje, assim como antigamente, orientam o caminho para
o portão sob o qual nenhum sangue brota.
Para as trevas. Para o matadouro.
E sozinha...
(Cassandra,
Christa Wolf)
Cassandra, por não corresponder ao
amor de Apolo, foi punida, perdendo a credibilidade de seu dom profético. Era capaz de prever o futuro, alertar os
homens das tragédias iminentes, mas nunca levada a sério. Previu a Guerra de Troia, massacres e
tiranias, mas sempre diante de ouvidos surdos aos seus vaticínios da destruição
desta cidade. Terminou levada como despojo
de guerra para Micenas, onde foi assassinada.
Aqui será diferente. Nossa Dona Cassandra sertaneja será levada a
sério e muitos pagarão por seus crimes.
Na prisão, ou com a própria morte.
Vou logo alertando.
Inexplicáveis coincidências e ironias
desta vida.
Um pouco da injustiça ancestral
resgatada neste fim de mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário