Se na semana passada foram as
assombrações rurais, hoje foi dia das assombrações urbanas. E que dia!
Não envolveu apenas a pequena família de Seu Gonzaguinha. Centenas de pessoas correndo por ruas e
becos, sempre perseguidas pelo morto-vivo.
Um verdadeiro deus-nos-acuda.
Ainda escreverei um tratado sobre o sobrenatural.
Muitos tentam desacreditar os fatos,
afirmando serem frutos do medo, ignorância, ou mesmo turvação da mente pelo
álcool.
Mas nestes becos e ladeiras escuras,
sempre escutamos histórias de arrepiar os cabelos. Afinal a antiguidade sempre guarda um passado
de morte, sofrimento e injustiças, que o tempo não consegue apagar.
Em Minas é comum encontrarmos majestosas
igrejas em meio a pequenos povoados. Uns
dizem que o fausto e a riqueza dos templos seriam para apequenar o homem diante
do poder divino. Para outros, estas
igrejas protegem a população, afugentando os espíritos malignos das
montanhas. E não vamos dizer que são apenas
histórias de gente boba. No Rio de
Janeiro, antiga cidade colonial, imperial e capital nacional, ainda podemos ver
um velho oratório do século dezoito nos fundos da Igreja do Carmo. Estes oratórios ficavam permanentemente
iluminados, não só mostrando a devoção dos fiéis, como espantando seres diabólicos
que vagavam pelas noites das ruas escuras.
O jeito é aprendermos a conviver com as
crenças e histórias que fazem parte de nossa cultura.
Por exemplo, aqui próximo tem um lugarejo
que nunca conseguiu progredir. O povo
sempre pobre e amarelado, crianças barrigudas, cheias de vermes. A explicação vem de uma praga rogada
justamente por aquele que deveria cuidar de vidas e almas. Contam os idosos que Seu Neco, avô de Seu Antão, bisavô do Prefeito,
bateu em um padre por motivos ignorados. Seu Neco foi à igreja com um relho e avisou ao
padre que veio para dar-lhe uma coça. O religioso
pediu para tirar a batina, mas escutou: Não. Padre sem batina não é padre. Dizem que o sacerdote rogou uma praga e Seu
Neco morreu assassinado a tiros, tantos balaços quanto as lambadas que deu. A praga foi tão forte, que daí para a frente
os moradores do local só conheceram a pobreza.
E o que dizem nossos valentes tropeiros
que cortam estes sertões como oceanos sem fim?
Assombração?
Não adianta correr nem dar tiros.
Pra enfrentar tem que ter manha.
Falar as palavras de esconjuro, atravessar
uma faca de aço na boca e morder a lâmina firme com os dentes. Isto dá coragem, dá força na luta.
Já vendo o fundo da garrafa, vou me
recolher mais cedo. Enquanto durmo,
escutem a história contada por aí, nas vendas e rodinhas reunidas pelas
esquinas. Mas por favor, não acreditem
que dei o braço ao morto-vivo acompanhando-o de volta ao caixão!
Foi
uma bela despedida. Reunia a pompa de um
velório de rico com a alegria, digo, tristeza, dos pobres. O chefe da estação do trem de ferro fez um
emocionado discurso, acompanhado de todos os ferroviários que trajavam seus
uniformes de gala.
O
velório foi no saguão da estação que ficou lotada. Pudera, quase quarenta anos naquele guichê.
O
Prefeito já falava há exatamente uma hora, quinze minutos e dez segundos e
ainda nem tinha entrado na biografia do falecido.
Todos
perceberam que havia algo errado quando um funcionário cochichou nos ouvidos do
Prefeito, que ficou mudo e sem cor.
Alguns
afirmam terem visto o bilheteiro contraindo o rosto em sinal de
descontentamento.
Ah...
por aqui este não se elege mais. Onde se
viu contrariar um cidadão tão querido, justamente no dia de seu velório?
As
autoridades e representantes da sociedade ficavam próximos do caixão. A raia miúda pelos cantos e, um pouco
afastadas, quase lá fora, Dona Mariazinha do Cajá com suas meninas do Beco do
Mota. Respeito era bom.
Dona
Berenice puxou um terço. Dona Wanda
mandou servir uma limonada. Dona Maria
Amélia regeu o coro das crianças.
Todos
choraram. Vozes infantis cantando têm um
quê de tristeza. Seriam as contradições
entre a pureza e as incertezas do futuro?
Pode ser...
Lá
pelas onze horas da noite, quando as autoridades e nobres representantes da
sociedade já haviam se retirado, foi servida uma boa pinga. Isto que é solidariedade humana! Um simples bilheteiro sendo homenageado pelos
fazendeiros da região com suas melhores cachaças, saídas dos alambiques para
esta ocasião.
Tirando
um soluço ou lágrima retardatária, o velório virou verdadeira festança, como
reza a tradição popular.
Seu
Zéquinha da Viola dedilhou umas notas e começou animada cantoria.
E
o forra-bucho? Linguiça frita, torresmo
crocante e até costeletas, pés e orelhas de porco.
Todos
bêbados, basta um começar a chorar e lágrimas são derramadas por todos, até
dormirem pelo cansaço, ou talvez pelo álcool.
No
meio daquela roncaria toda, chegaram uns garimpeiros para a última homenagem ao
nosso bilheteiro. Sucesso no garimpo,
lucro para as meninas do Beco. Os “negócios”
acabaram sendo feitos ali mesmo, atrás dos vagões do noturno que havia chegado no
início da noite.
A
culpa foi dessa pouca vergonha. Logo que
o dia raiou, o bilheteiro, indignado com a quebra protocolar, levantou do
caixão, resolvendo ir por conta própria para o cemitério.
Se
não fosse o Doutor Carlos, nem sei como acabava esta história toda.
Será
que ia adiantar a água benta do Padre Chico?
Pela manhã tudo já havia voltada ao
normal. Meninos jogando pião, meninas
pulando amarelinha.
Passei pela estação e lá estava o
bilheteiro em seu guichê como se nada tivesse acontecido.
Gaguejei um “bom dia” e saí cambaleante.
Belisquei o braço pra ter certeza não
ser eu a tal assombração...
Nenhum comentário:
Postar um comentário