Diamantina, MG. Foto T.Abritta, !965.
O Delegado coçou a cabeça, cofiou o
bigode e achou que o caso de Seu Gonzaguinha não era assunto para polícia;
aconselhou que procurasse o Padre. Este,
depois de pedir conselho à Virgem Maria, resolveu socorrer-se com o
Médico. Afinal, poderia até entender do
sobrenatural. Já alma penada matada,
isto era outra coisa.
E assim fomos, eu e o Padre Chico,
investigar o ocorrido.
No caminho, Seu Gonzaguinha ia
narrando os fatos:
Moro perto de Biribiri.
Uma meia légua antes é só sair da estradinha e pegar um trilho à
esquerda. Passa um brejo, passa a serra
e mais um pouco já dá pra avistar minhas terrinhas. De noite, Deus me livre passar por aqui! Vindo dos lados da serra, escutamos as
cantorias dos escravos mortos nas minerações...
“Me desculpe, mas até aí morreu
Neves. Até hoje o povo ainda canta estes
Vissungos do tempo da escravidão. Das
minhas andanças, tratando e vacinando este povo em minerações, até conheço
alguns.”
Aiô!...
T’Angananzambê, aiô!...
Aiô!...
T’Angananzambê, aiô!...
Ê
calunga qui tom’ossemá,
Ê
calunga qui tom’Anzambi, aiô!...
Eu
memo é capicovite
eu
memo é cariocanga
eu
memo é candandumba serena.
“Não dá pra entender nada, já que
misturam palavras de línguas africanas com o português. Ainda por cima, tudo falado pela metade. Apenas a entonação e ritmo é que dão o
sentido: se é música de tristeza, saudação, revolta ou homenagem a defunto.”
“Há uns dez anos esteve por aqui um
estudioso registrando estas cantorias.
Seu nome, segundo o Doutor Ataíde, é Aires da Mata Machado Filho.”
“Bem, vamos voltar às assombrações.”
... quer dizer que, como eu ia contando, assombrações ficam
bem longe, lá pros lados da serra. Mas
esta noite foi diferente.
Um vento zumbindo, parecia que ia levar o telhado. Portas e janelas rangendo. Lá fora, gritos pavorosos, cachorros latindo.
Pior quando começaram as batidas na janela do quarto. Uns quatro toques misturados com rugidos,
depois silêncio. Falei com a mulher: “é
o demônio que está lá fora!”
Nos reunimos na cozinha, que fica nos fundos, e ficamos ajoelhados
rezando, as crianças chorando.
Alguma coisa tinha que ser feita! Carreguei a espingarda três vezes, três
descargas na janela. E a “coisa” silenciou.
Saímos pelos fundos, deixei a família em um sítio próximo,
e aqui estou diante dos senhores.
Com a primeira visão das terrinhas,
Seu Gonzaguinha parou, eu e Padre Chico nos adiantamos mortos de curiosidade.
Rodeamos a casa, mas nada assombroso
foi encontrado. Apenas a janela
despedaçada pelo chumbo grosso, galhos cortados de uma roseira e o cheiro
inebriante de botões de rosas espalhados pelo chão.
Com a ventania, provavelmente a
roseira balançava, os botões batiam na janela, e a imaginação criava vozes e
todo o cenário aterrorizador.
Pelo sim pelo não, Padre Chico
enterrou os botões de rosa – quem sabe não personificavam almas penadas?
No final do “funeral”, tudo foi bento
conforme a tradição.
Restabelecido o reinado da paz divina,
a família voltou para o lar, uma galinha foi morta e servido um irresistível guisado
com farinha e muita cachaça.
Retornamos pela noitinha.
O céu prateado por um manto de
estrelas. O Carreiro-de-São-Tiago, como
o povo chama a Via Láctea, brilhava como nunca.
O Cruzeiro do Sul, que a linda
Sofia não quis fitar, como lhe pediu Rubião, eternamente orientando os
viajantes. Invisíveis ao olhar, estrelas
duplas completavam o cenário.
Nem sempre o real é o que vemos. Seriam as assombrações de Seu Gonzaguinha
menos reais do que estes astros misteriosos?
Quando Machado de Assis escreveu o conto Minueto – usando uma das mais belas metáforas “astronômicas”, ao
comparar a alma da pobre Maria Regina, dividida entre dois amores, a uma
estrela dupla, de cuja existência o autor tomara conhecimento através de
publicações científicas da época –, não poderia ser acusado de estar vendo
assombrações celestes?
Noite propícia para reflexões. O que seria a verdade? O que seria o real? Certamente não podemos confiar plenamente em
nossa experiência subjetiva, ou mesmo objetiva.
A maior parte do mundo físico é imperceptível. Muitas vezes vemos e sentimos coisas que não
existem.
Portanto deixemos as assombrações de
Seu Gonzaguinha vagarem nos rugidos dos ventos ou repousarem em singelos botões
de rosa.
E uma estrela cadente riscou a abóbada
celeste.
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