Aqui temos o último capítulo já escrito de Jequitinhonha. Aguardem os próximos!
Pomenade. Av. Rio Branco, Rio de Janeiro, anos 50.
Depois que vim morar em São Paulo
descobri muitas vantagens. No Arraial,
jamais poderia ficar sentado em um bar, lendo jornal e tomando café. Bastava entrar na vendinha e logo vinha
alguém prosear.
Mas aqui, quando chega aquele General,
tudo muda. Assim que aparece um incauto,
começa a contar suas mentirosas histórias de guerra e heroísmo.
Todos sabem que suas inexistentes
batalhas ocorreram no cenário do cais do porto no Rio, embarcando jovens, às
vezes sob mira de pistolas, para morrer nas distantes terras italianas durante
a Segunda Guerra Mundial.
E lá prosseguia o bestalhão contando
vantagens:
É tudo uma questão de relação entre a flecha e o
alcance. No canhão, por exemplo, temos a
menor flecha e o maior alcance. Com o
morteiro é ao contrário, já que atingimos o inimigo logo na frente da
tropa. Com o obus, atiramos por cima de
nossas linhas. A artilharia está atrás e
o inimigo na frente. O artilheiro
moderno tem que conhecer muita trigonometria...
Mas hoje foi diferente. Entrou um rapaz meio estabanado, esbarrou na
mesa do herói de araque, derramou sua cerveja e falou:
Pô,
General, isto hoje não serve pra nada.
Agora é tudo míssil. Basta
apertar um botão e explode tudo.
Não pude conter uma sonora e vingativa
gargalhada, não resistindo também perguntar sobre a Interbrás e aquela história
de dez por cento (1).
Como são as coisas. O incidente trouxe à tona da memória aquele
dia em que comentávamos as notícias de jornal sobre a guerra e os depoimentos
de nossos heróis. Seu Anízio ia lendo, e
cada feito comemorado com generosos goles de cachaça:
A artilharia antiaérea, normalmente, fica em lugares mais
altos como torres de igrejas e castelos.
Assim o jeito era voar bem baixo, aparando grama, como chamávamos.
Nos
ataques, quando a gente via o clarão, já identificávamos o tipo de boca de
fogo, contando os segundos para o projétil chegar. Um, dois, três... e aí cada avião dava uma
guinada para o lado. Depois
mergulhávamos despejando as bombas e cada piloto recuperava para a esquerda ou
direita. Dava um nó na garganta quando
uma aeronave não retornava...
Antes de Seu Anízio ler o próximo
depoimento, todos entornavam mais uma talagada de cachaça em homenagem ao
piloto Moreira Lima (2) por sua luta contra os fascistas.
E as notícias continuavam, agora com
as operações terrestres:
Minha patrulha foi toda morta e eu seguia, com fome e sem
munição, tentando regressar para nossas linhas.
Do nada surgiu aquele abestalhado, tentando me matar com um sabre. Tentei falar, mas não adiantou. Briga de faca com paraibano? Com muito dó, espetei o alemão na barriga, sentindo
o sangue quente correndo pela mão.
Cortei uma de suas orelhas, salguei e guardei nesta caixa de fósforos. Não foi por maldade não. Foi pra lembrar que guerra é isto. Onde já se viu matar um rapaz que eu nem
conhecia?
Mas a notícia mais importante estava num
cantinho do jornal:
“Após
dois meses de buscas, já considerado desaparecido em combate, foi localizado em
um hospital de campanha americano o pracinha José Lourenço. O brasileiro foi condecorado por bravura ao
destruir o tanque inimigo que atacava seu pelotão. Na luta teve o crânio praticamente
esmagado. Parte do osso parietal foi
substituída por uma placa de platina...”
Foi um corre-corre preparando a festa
de recepção para nosso herói. Afinal,
depois de ter o pai, o irmão mais velho e um tio assassinados, isto provava que
o destino pode ser mudado pela força da vida.
Enquanto isto, pensava em Pedro
Severino, na sua vida de brigas e confusões.
Teve o topo da cabeça esfacelado por foiçadas. Pacientemente lavei os ferimentos com soro
fisiológico, tirei pedaços de ossos, pele e cabelos com uma pinça. Se tivesse, colocaria uma placa de platina. Mas apenas suturei os fiapos do couro
cabeludo e o rapaz está vivo, sempre usando um chapéu protetor.
Duas cabeças, dois destinos: um heroico,
outro inútil.
A estação lotada. Escolares perfilados, banda de música, o
coral infantil, autoridades, populares, todos ansiosos.
Uma dor cortou nossos corações. O apito do trem soava rouco tal lamento. Nosso herói não desembarcou.
Mas as notícias chegaram. Não pelos jornais. Vieram pelo martelar do telégrafo:
ENCONTRADO COM O CRÂNIO
ESFACELADO JUNTO A UMA PILHA DE DORMENTES NOS FUNDOS DA ESTAÇÃO DE TREM DE
FERRO DESTA CAPITAL O CORPO DO PRACINHA JOSÉ LOURENÇO PT
A POLÍCIA CONCLUIU TER SIDO ASSASSSINADO
POR MOTIVO TORPE PARA RETIRADA DE UMA PLACA DE PLATINA QUE PROTEGIA SUA ÁREA
CEREBRAL PT
Um silêncio profundo e triste
abateu-se sobre o Arraial.
No canto da estação, o olhar apalermado
de Pedro Severino.
Notas:
1. Em 1976 foi criada a
estatal Petrobrás Comércio Internacional (Interbrás), a pretexto de incentivar exportações. Na verdade era um cabide de empregos para
amigos do poder, que lucravam com extorsões para liberação de guias de
exportação.
2. Referência ao Major-Brigadeiro
Rui Moreira Lima, herói da Segunda Guerra Mundial. Este militar foi posteriormente preso pelos
golpistas de 1964 por defender mais uma vez a Democracia.
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