Diamantina,
MG. Foto T.Abritta, 1965.
Entramos no Arraial quase a
galope. Mas as notícias, como se
trazidas pelo vento, já nos aguardavam.
Janelas entreabertas mostravam olhares apreensivos. Garruchas e carabinas enferrujadas prontas
para o combate. Não parava de chegar
gente com foices, porretes e facões. Eu
tinha que ser rápido. Martelei o meu
laudo na máquina de escrever: a vítima
estava caída de bruços, provavelmente devido a uma pancada na omoplata direita
com objeto contundente que a fraturou, como mostra a fotografia em anexo... O
tiro, calibre 38, entrou pela nuca, fragmentando a coluna cervical, saindo pelo
frontal, conforme mostrado nas fotos tais e tais... Substituí as fotografias por desenhos, já que
Seu Alcir ainda levaria uns dois dias para revelar e secar os negativos e ampliações. Corri para a casa do Promotor e em poucos
minutos o Juiz assinava o mandado de prisão preventiva.
Ainda escuro, começamos os trabalhos
naquela colina ventosa onde ficava o cemitério.
Apenas o ruído das pás e picaretas no solo pedregoso. Seu Alcir, ao meu lado, tremia, não sei se de
frio ou pavor. Pudera, também nomear um
fotógrafo de casamentos, festas infantis, bodas e batizados como perito ad hoc para fotografar defunto.
Como eu previa, pela composição
química do solo, o cadáver ainda não estava decomposto totalmente. Partes mumificadas, outras em lenta
decomposição espalhando o cheiro da morte.
Providenciaram um estrado de tábuas para servir de mesa pericial. Todos, com os rostos cobertos por panos
molhados, trabalhávamos escavando, peneirando a terra para recolher fragmentos
da bala e ossos. Eu e Seu Alcir,
curvados sobre os restos mortais.
Esta era minha primeira exumação. Por aqui, normalmente, quem morreu,
morreu. Enterrado, ficava para sempre.
Mesmo acostumado com o sofrimento e
sempre pensando na beleza da vida, sentia vontade de chorar com a evidência das
maldades perpetradas contra Seu Onofre.
A me animar, apenas a lembrança das cantorias de Dona Cassandra clamando
por Justiça.
Com os primeiros raios de sol, o triste
piado de um pássaro: u, u, u, uuuu...Seria a pomba-mineira?
Agora entendo o que considerava um desvio
patológico, aquela mania do Promotor em perder tanto tempo escutando as
histórias de João França e do Comandante Santos Lima:
Eram tempos bons demais.
Saía com duzentas cabeças de gado e chegava ao mercado com
quinhentas. E quem ia reclamar? Tinha um lugarejo onde o padre vivia pondo
coisas na cabeça do povo. Claro, era
sempre contra mim. Aí eu avisava: “vou
passar em meio ao casario com quinhentas cabeças de gado xucro. Se alguém abrir a janela, um cachorro latir
ou mesmo uma criança chorar, o gado estoura e acaba com tudo”.
E João França, ladrão aposentado,
castigado com uma cegueira, dava gargalhadas, revirando as órbitas mortas pela
maldade.
Pior ainda eram as conversas com o
Comandante Santos Lima – era assim que gostava de ser chamado. Dizem que foi tenente da Marinha Mercante,
expulso pela morte de um grumete numa situação obscura, vamos dizer assim:
Quando eu era delegado... Onde? Era lá, quase chegando na divisa com o
Espírito Santo... Não tinha esta de valente comigo não. Uma vez arrancamos as unhas de um desafeto do
prefeito e rachamos sua cabeça com pauladas.
Tudo dentro da lei: na ocorrência foi registrado que o preso desesperado
com a privação de sua liberdade subia pelas paredes cravando as unhas na
alvenaria e depois pulava de cabeça contra o chão.
O promotor escutando sério, eu e Seu
Anízio horrorizados, encolhidos num canto da venda.
...de
outro acontecido, avisaram que os presos estavam cavando um túnel para
fugir. Peguei um facão e fiquei
esperando na escuridão. Assim que a
primeira cabeça saiu do buraco, puxei pelos cabelos e decapitei o
desgraçado. Depois ainda avisei: “pode
vir o próximo”. Ficou uma pilha de
cabeças de um lado e corpos decapitados do outro. No relatório ficou registrado que após a fuga
os condenados entraram em contenda, matando uns aos outros.
Teve um infeliz que executei com um tiro na nuca. Era um passante, que não sei por que, me deu
implicância. Como eu ia saber que era
filho de gente graúda lá da capital? O
jeito foi fazer um relatório dizendo que foi morto numa briga por mulher ao
atacar seu desafeto que, em legítima defesa, meteu-lhe um balaço na testa. Afinal, bala que entra sai, e a que sai pode entrar. É como aquela lição da escola: “no mundo nada
se perde, tudo se transforma...”
O rosto do Promotor contraiu-se todo –
pensei até que ia ter um ataque de coração – e balbuciou: Seu Onofre... Saiu sem despedir de ninguém.
Diante de nosso olhar, misto de nojo e
desprezo, o Comandante Santos Lima foi embora meio ressabiado, sem entender o
que estava acontecendo.
Gostaria de ficar dormindo e sonhando
eternamente. Às cinco horas da manhã o
moleque trouxe o cavalo selado e fomos todos, ao passo, pela estradinha do
cemitério. A determinação do grupo não
afastava a tristeza.
Eu mantinha minhas forças pensando nos
sonhos daquela noite. Sonhei com o jovem
Sherlock Holmes do livro Um Estudo em
Vermelho – o aprendiz de detetive cursava diferentes Faculdades e não
terminava nenhuma. Da Medicina estudava
Anatomia, da Química as substâncias venenosas, do Direito a legislação criminal
e Medicina Legal, assim por diante. Foi
até expulso de um curso de Medicina por chicotear cadáveres em seus
experimentos para estudos de lesões. Lembrava
até o Promotor e sua “mania” de ficar escutando as barbaridades daqueles
monstros.
A prisão foi rápida e eficiente. Valtinho dormia, como sempre fazia após suas
noitadas, no Beco do Mota, lá na casa de Dona Mariazinha do Cajá. O Delegado, ar contrariado, meteu-lhe as
algemas e foi levando o traste todo borrado e molhado. No caminho, populares cuspiam no preso e no
desmoralizado delegado. Uns debochavam
do Coronel e do Prefeito, que sumiram alegando estarar constipados.
Da fazenda chegavam as notícias de que
Seu Valter morreu de ataque cardíaco, dando tiros a esmo, tentando matar os
empregados que sumiram após os acontecimentos.
Com tanta alegria e cachaça nas
comemorações, dia de trabalho para o Médico.
Hoje apenas um ferido a bala, duas facadas e uma cabeça para
costurar. Felizmente tudo sem
gravidade. Fatos tão rotineiros que não
mereceram registro policial. Pela manhã,
passada a bebedeira, agressores e agredidos perdoando uns aos outros.
E a Vida continua. De noite, o parto de Dona Clarinha. Uma linda menina chamada Cassandra.
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