A história se passa entre 1939 e 1946, quando foi Promotor em Diamantina, cidade de nascimento de duas de minhas irmãs e de meu nascimento em 1946.
O
Herói Anônimo
Existe heroísmo se não for acompanhado
de reconhecimento público? Tem sentido
falar em heroísmo diante de uma disposição de bravura e determinação envolvendo
apenas estados emocionais provocados por situações imaginárias?
Médico de uma cidade perdida nestas bandas
do Jequitinhonha é assim: ou passa o tempo tomando sua cachacinha ou fica lendo
e meditando enquanto não aparecem partos nem doenças. Os casos mais graves, em geral, não dão muito
trabalho – vou logo adiantando o atestado de óbito. A turma por aqui não erra tiro de
tocaia. No fundo o Promotor tinha
razão. Muita gente ruim. Dizem que é o frio do inverno, a chuvinha
fina caindo dia após dia, velhos muros desabando com a umidade. Por outro lado, aqui não é vergonha ficar
caído num beco qualquer de tanto beber.
Nisto são atenciosos. Vão logo
falando: garoto, vai avisar dona fulana
que seu sicrano tá caído... Todos
têm uma história de parente que morreu de cirrose hepática.
Acabei interrompendo o assunto
“heroísmo”. Mas se tiverem um pouco de
paciência entenderão o rumo desta escrita.
O Juiz da cidade estava sempre nas
nuvens. Diziam que já foi grande jurista
e literato promissor em Belo Horizonte.
Seu sucesso foi sua desgraça.
Nomeado por mérito para esta Cidade no Vale do Jequitinhonha, acabou
esquecido, abandonado neste fim de mundo.
Pela manhã despachava no Fórum.
Assim que acabavam as audiências, livrava-se dos processos dando as
sentenças. Mãos trêmulas, passava na
venda de Seu Anízio. Depois de alguns
tragos, entre uma prosinha sobre política e o tempo, ia para casa. Sempre entrava pela porta da cozinha. Levantava a tampa das panelas com a ponta da
bengala e reclamava grosseiramente da comida – por isto era odiado por todas as
mulheres da cidade: como pode tratar Dona
Berenice assim? Verdadeira santa! Passava as tardes e noites na sua biblioteca,
único refúgio neste fim de mundo.
Eu gostava de visitá-lo e ficar
escutando verdadeiras aulas de Literatura.
Declamava poemas, recomendava livros e falava de algumas raridades
bibliográficas em suas estantes. Foi lá
que li, na Revista Brasileira, os
contos de Affonso Arinos. Sempre que uma
tropa chegava ao Mercado Municipal, pensava logo no conto Assombramento, onde o tropeiro Manuel lutava contra fantasmas de
sua imaginação, mas paradoxalmente tão concretos em suas evidências
observáveis. Complicado? Não, maravilhoso. Uma obra prima de histórias deste Sertão. No final da luta, entre exaustão total e
delírios, as palavras de bravura: “Eu mato!... mato!... ma...”. Verdadeiro herói diante dos demais
tropeiros.
Quando seu Anízio “convocou” aquela
reunião em sua venda, não imaginava tratar-se exatamente deste assunto.
Os leitores mais velhos me compreenderão. Aos mais novos, peço paciência. Depois de certa idade, nem sei por que esta
mania irritante de datas, nomes e detalhes completos. Quem sabe um aperfeiçoamento
intelectual?
A data não posso precisar. Mas o ano foi 1942. Estava fazendo o parto da primeira filha do
Promotor, recém chegado para esta comarca, enquanto o rádio do vizinho
noticiava a guerra, com as primeiras vitórias do Exército Vermelho contra os
nazistas em Stalingrado. Parece que foi
ontem. Eu pensava: aqui, a vida. Lá, a morte.
Fui o primeiro a chegar. Esperei um pouco, enquanto seu Anízio ajudava
a colocar na carroça as compras de um garimpeiro.
Logo chegou o Promotor, meio de lado,
mostrando que alguma coisa não ia bem.
Seu Rocha foi o último a aparecer e foi logo falando: chega de poetagem, seu Anízio, conta logo o
ocorrido.
Pensando bem, este não é um texto
literário. São anotações, onde vou
organizando minhas ideias. Futuramente
faço a revisão e acabo chegando a uma escrita mais fluida e agradável. Espero que tenha tempo para isto. Devo mudar nomes e transformar pessoas reais
em personagens. Assim tenho a liberdade
de ir escrevendo, em pequenas doses, as informações que chegam da memória tão
apagada.
Por exemplo, quanto ao ano 1942, fiz também
um cálculo objetivo. Carregava na
carteira aquela lista de endereços e telefones de pessoas a serem avisadas
quando eu morresse. Lá estavam os nomes
da filha mais velha do Promotor e de seu marido. Fui padrinho deste casamento. Tenho aqui o convite junto com o recorte de
jornal que publicou sua redação quando ela fez a prova para o Instituto de
Educação no Rio de Janeiro. Estive
também na sua formatura de Normalista. De
vez em quando saía de São Paulo e visitava amigos no Rio.
Bem, seu Rocha não pode mais esperar.
Deixemos Seu Anízio narrar o ocorrido.
Ontem à noite apareceu lá em casa, pedindo socorro, a
mulher do Promotor carregando a menina no colo.
Pedi a Rosa para cuidar das duas e corri para chamar seu Rocha. Doutor Carlos ficava para depois.
Pode falar que não me ofendo. Atestados de óbito não são urgentes.
Seu Rocha, vocês sabem como é...
Aí você está certo.
Ando com os dedos coçando para dar um corretivo naquela corja. Semana passada mesmo, o Coronel passou bem
devagarinho na frente da minha casa.
Quase que respondi à provocação.
Perdi uma grande oportunidade. Em
geral, quando ele passa, vão dois soldados na frente e dois atrás, carabinas na
mão, olhos atentos. Desta vez estava
apenas com o Cabo Chico Diabo. Dava pra
acabar com os dois. Só não cumpri a
missão em respeito ao Promotor.
Quando cheguei na esquina dei de cara com a procissão
noturna que acabava de descer pela Rua do Amparo. Corri e encontrei o Promotor fumando na
janela...
O susto foi grande.
Depois que saiu a charge no jornal – com um sujeito magricela, de
óculos, montado de costas num pangaré, seguido por uma mulher a pé com uma
criança no colo; todos sendo expulsos da cidade debaixo de uma chuva de ovos
podres – fiquei cismado. De manhã,
quando escovava os dentes no tanque, já ia com o revólver no bolso do
pijama. Minha mulher foi quem me acordou,
dizendo: “estão chegando”. Só tive tempo
de colocar um caixote nos fundos do terreno para ela subir, pular o muro dos
fundos e falar: “se esconda na casa do Seu Anízio que vou depois”.
Coloquei o sofá atravessado no corredor, entre as portas do
quarto e do escritório, me escondi atrás, a 44 com bala na agulha e o revólver
à mão. Munição espalhadas pelo chão para
facilitar as recargas. De lá podia vigiar
a janela do escritório à esquerda, a janela do quarto na direita e a porta de
entrada na frente. Em um dos três pontos
entrariam primeiro. Só atiraria em quem
colocasse um pé dentro de casa. O
vozerio foi aumentando, aumentando, e por milagre começou a diminuir, diminuir. Já escutava claramente as rezas, com todos os
améns Quando abri a janela, ainda
cumprimentei alguns conhecidos na procissão.
Acendi um cigarro e logo chegou Seu Anízio todo assustado.
Mas, Doutor Promotor, eu já disse que este era um problema
resolvido. O Senhor não confirma,
ninguém fala nada, ninguém viu. Mas
todos comentam que o grandalhão se molhou todo quando num beco escuro, com o
cano do revólver no nariz, foi obrigado a engolir a charge. O povo ri um bocado dizendo que deveria
obrigá-lo a engolir o jornal todo. Bem,
esta história é de difícil comprovação.
Mas gostei do seu sangue frio ao ir embora, dando as costas para um
homem daquela importância, todo molhado, com aquele trabuco na cintura. O risco foi grande. Como já disse, o estilo aqui é tocaia pelas
costas. Até o Coronel, na hora de matar,
e foram muitos, manda Chico Diabo armar tocaia.
Crime de honra não. Aí tem que
ser pela frente e à luz do dia. De
preferência na praça principal com todo povo saindo da missa para
assistir. É como se fosse uma cerimônia
pública. Mesma coisa que batizado ou
casamento.
De matar e morrer Seu Rocha é conhecedor. Eu, apenas pacífico comerciante. Doutor Carlos, então, está lá do outro lado,
tentando consertar, salvar, lutando pelo Socialismo e um mundo mais justo.
Bem, vamos tomar um gole e brindar, com todo respeito,
nosso herói anônimo!
As palavras finais de Seu Anízio foram
encantadoras. Homem simples do Sertão
usar expressão tão casta: Herói Anônimo. Nova categoria literária a enriquecer o
conhecimento, somando-se à Poética de
Aristóteles com o Herói Trágico condenado
por um único erro. Pequeno deslize
involuntário ou impensado – a Hamartia. Aqui não.
Nosso Herói é desconhecido, anônimo, não busca fama, nem
reconhecimento. Não é assim a vida do
povo nestes fundões brasileiros?
Histórias regionais não significam apenas
interesses e objetivos restritos. Podem
ter um caráter universal, discutindo grandes temas como a Violência, Opressão,
Solidão, Tristeza, Morte. O Homem é o
mesmo, apenas cenários mudam. Seja lá na
Grécia Clássica ou neste solo pedregoso, colorido pelo sangue dos que lutam por
Justiça.
Os tropeiros que cortam estas terras,
levando mercadorias e notícias, são como os marinheiros que navegam pelo mundo,
com suas ilusões de um amor em cada porto, mas, em geral, carregando passados
de perdas, solidão, frustrações.
Vagueiam à procura de lugares não existentes nos vastos oceanos ou neste
Sertão sem fim.
Fiquei contente com estas primeiras
linhas, escritas pacientemente em folhas de papel almaço. Jamais me acostumaria a uma Remington. Como poderia pensar com aquele martelar de
teclas? Afinal sempre escrevi à mão,
sejam lá receitas, anotações sobre pacientes, laudos médicos ou cartas
pessoais.
Até que não é tão difícil assim
escrever. Apenas deixo fluir os sons da
natureza, as vozes de alegrias e tristezas humanas.
Rua do Amparo, anos 40. Acervo Teócrito Abritta.
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