Diamantina,
MG. Foto T.Abritta, 1965
Hoje foi um dia cheio. Não aqui em São Paulo, onde pacientemente
tento retomar o rumo desta narrativa.
Cheio foi lá na Cidade, onde três ocorridos provocaram tantas emoções e
falatórios, mas, por outro lado, envolvendo supostos fatos de difícil
comprovação. Infelizmente não podemos
fiar muito na boca deste povo. Afinal,
quem conta um conto acrescenta um ponto – transformam o que imaginam ter
acontecido em realidade.
Pensando bem, não é assim que funciona
a Literatura? Logo, juntando um disse aqui com outro ali; deixando
alguns de lado ou pelo menos cortando pela metade, vamos à nossa história:
Hoje amanheceu um pouco frio. A garoinha caindo, ninguém pelas ruas.
Entretanto, olhos invisíveis tudo
viam, ouvidos mágicos escutavam através das paredes.
Chico Diabo subia vagarosamente a Rua
do Amparo. Dava uns passos, parava desconfiado,
olhava para os lados e para trás. Tirava
o quepe e enxugava a testa com o antebraço, ensebando cada vez mais a túnica
mal cheirosa. Parou na frente da porta
do Promotor, que abriu como se já o esperassem.
Entrou naquele escritório onde jamais pensaria estar. Era como se uma ave de rapina, acostumada a
grandes alturas, onde saboreava o sangue de suas vítimas, fosse obrigada a
conviver ao rés do chão, vulnerável entre seres humanos. Situação inusitada e humilhante para quem faz
da morte seu meio de vida.
De um lado da mesa o Promotor. No outro, sentado em um tamborete de tiras de
couro, o Cabo. Suava frio, arrependido
de não ter vindo armado. Nem a
garruchinha presa na perna. Era como se
estivesse nú:
Dizem
que eu sou o Chico Diabo. Mas, e este
Promotor? Mandar que me sentasse de
costas para a janela é uma grande judiação que pode ser fatal para um
matador. Mas como pedir para mudar de
lugar sem fazer desfeita?
A cada instante o Cabo coçava a nuca,
como se esperasse um tiro de tocaia.
Seu Macrínio, assim que viu Chico
Diabo sumir na porta do Promotor, apressou o passo, o que não mudava muito o
seu vagaroso andar:
Todo mundo me conhece, né?
Desde que quebrei a perna com o coice daquele cavalo xucro que estava
ferrando, é uma penação andar nesta cidade ladeirosa. Dou uns passinhos, paro aqui, depois ali e também
acolá. E assim vou por aí. Juro que estava do outro lado da rua e
escutei vozes:
“...com
você a minha arma será apenas uma caneta!
Desta arma você não entende!”
Dona
Orsina, que vinha descendo, pode confirmar tudinho:
Escutei bem. Estou
meio esquecida, mas não sou surda:
“Doutor,
não faz isso comigo não, estas coisas é tudo falatório deste povo. Sou gente de bem.”
E o Cabo Chico Diabo saiu de olhos
arregalados, subiu pros lados da Estação de Trem de Ferro, entrou numa vendinha,
ficou bebendo, bebendo e falando sozinho:
O
Promotor disse que nem um balaço bem dado pode acabar com a caneta. Foi covardia pura. Só estive seis meses na escola. Assinar o nome aprendi. Mas este negócio de quatro operações e
soletrar era para maricas. Com dezesseis
anos despachei o primeiro. Segurar uma
arma é mais fácil do que rabiscar com cotocos de lápis. Bem que o Coronel avisou pra não dar
conversa. Era só esperar a ordem da
tocaia.
Foi visto pela última vez lá pros
lados do Vau. Uns dizem que caiu no
rio. Outros escutaram medonhos gritos e
uivos; um fedor de enxofre e viram um fogo saindo do chão. O fato é que sumiu para sempre, deixando
apenas assunto para comentar:
O Doutor é mesmo como o povo fala: valente com armas e
palavras. Acabou com o gatilho assassino
do Cabo Chico Diabo apenas com uma prosa.
E davam boas gargalhadas...
Enfim um pouco de tranquilidade – hora
de almoço. Ruas vazias, uns descansavam,
outros estudavam com as crianças. Mas os
gritos do moleque dando o recado quebraram a paz:
Seu
Rocha avisou que vai matar o Coronel!
O Promotor só teve tempo de vestir o paletó
e pegar o chapéu. O revólver, claro,
nunca saía da cintura.
Agora, felizmente, temos Seu Rocha
para relatar o ocorrido:
Eram uns dez soldados e o desgraçado fumando, cara de
deboche, esperando a minha reação. Todos
parados em frente da minha casa. Em respeito
pedi para avisarem ao Doutor. Dava pra
acabar com o Coronel e uns dois ou três meganhas.
Ninguém havia falado comigo assim. Cheguei a levar a mão na arma. Só não fui adiante porque ele nem ligou e
continuou a falar. Assim combinamos de
sair bem devagar, paletós abertos, armas à mostra – pessoas decentes não exibem
revólveres em vão. Pela ética, se
mostrou, é para ir até o fim.
O Promotor ficava encarando o Coronel. Qualquer piscada tacava fogo. Eu cuidaria da soldadesca. Disto sei bem. Nos primeiros tiros mandava dois ou três para
o Inferno. Se o resto não corresse,
rolava pelo chão acabando com mais alguns.
Depois só Deus sabe.
Foi igual à história da caneta:
O
Coronel, pra não sair de fininho, fazia um sinal, e um soldado ia embora. E assim outro e outro. No final acendeu um cigarro e saiu
devagarinho. Ainda chegou a escutar as
risadas do povo.
Mas o dia ainda não terminara. Novas Surpresas:
Seu Rocha, Seu Rocha, Desatino partiu, a todo galope, lá
pros lados da Praia da Sentinela!
Não é lá que o Coronel gosta de ficar treinando tiro?
Isto é questão de honra.
Vamos
ter sangue frio e aguardar o desenlace!
Depois de tantos sustos, um pouco de
chacota, deboches e gargalhadas.
Não é que os dois chegaram juntos e ao
passo? Um, desmoralizado, o outro, cara
séria, mas escondendo sorrisos!
Eta caneta danada! Falou
Seu Abílio. Eu estava procurando meu cabritinho fujão
quando escutei o tiroteio. Escondi-me
numa touceira, abracei o bichinho e fiquei observando. O Coronel descarregou diversas vezes num toco
em cima daquela pedra perto do rio. O
Promotor chegou por trás dando apenas um único tiro. O toco voou longe. Depois falou:
“Assustado? Vamos ver quem acertou? O meu é trinta e dois, o seu trinta e oito.”
“Neste
caso é melhor irmos embora juntos. Tem
uma onça rondando por aí. Na verdade é
uma jaguatirica – animal inofensivo. Mas,
com sua pontaria, é capaz de dar um tiro no pé.”
Tive
que fazer força para prender o riso!
Tanto tempo, eu já velho, só agora me
encantando com a magia da Literatura.
Sempre fui grande leitor. Meus
livros, todos sublinhados, cheios de observações nas margens e papeizinhos
amarelados marcando as páginas consideradas importantes. Isto muito me facilita.
O difícil é me afastar desta
objetividade da escrita técnica, onde tudo tem que ser fundamentado. Deveria confiar mais no Relator Onisciente,
não ficando tão preocupado com veracidade e verossimilhança dos depoimentos, ou
melhor, das falas dos personagens. Mas,
por outro lado, não é tão mais fácil contar com as palavras destes amigos?
Tais reflexões acabaram levando-me ao
passado, às aulas de História da Medicina.
O curso tinha um extenso programa:
Medicina Egípcia, Esculápio, Hipócrates, Galeno, William Harvey, Pasteur e
muitos outros. Mas o professor gostava
mesmo é da História Clássica. Assim que
abria a História de Heródoto,
começavam suas divagações e comparações com Tucídides, Píndaro, Políbios e
outros Historiadores Clássicos.
Heródoto fazia distinção entre o que ele
viu e o que ele ouviu dizer. Ou seja, informações
não confirmadas. Tucídides buscava o que
seria a verdade histórica incontestável.
No fundo a Ciência Histórica nunca
afirma clarear plenamente o mundo de sombras dos acontecimentos. Felizmente existe a Literatura que chega à
sua verdade, sem, entretanto, mentir e anular a busca dos Historiadores nos
escuros labirintos do tempo. Mas
concordamos que tanto os Ficcionistas, como os Historiadores ou Cientistas – aí
incluo Médicos como eu –, perseguem as palavras lapidares de Tucídides,
deixadas em sua História da Guerra do
Peloponeso:
“... nunca tantas cidades foram capturadas e
devastadas... nunca tanta gente foi exilada ou massacrada, nunca tantas cidades
sofreram uma mudança total de habitantes... Quem quer que deseje ter uma ideia
clara, tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que um dia voltarão a
ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes..., julgará útil a minha
História.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário