Saímos cedo para mais uma expedição. A uns oitenta quilômetros da Cidade do Cairo,
abandonamos a estrada que margeava a linha férrea, cruzamos a Vila de Meidum,
mergulhando no deserto.
Em meio à secura entendíamos, agora, o
que era um oásis. Mancha verde, úmida,
pastores e animais. Uma modesta fresta
de frescor na aridez da natureza.
Sorriso condescendente para a vida.
Do outro lado da vegetação, mais
montes, mais areia e ao longe se levantava Ahram El-Kaddah – a Falsa
Pirâmide. Gigantesco degrau de pedra
encimado por dois outros menores, cercados de entulhos. O barulho do desabamento e a poeira pareciam
permanecer no ar, como o sonho de Snofru, pai do Faraó Quéops, de construir a
forma piramidal perfeita, ascendendo aos céus em rampa de pedra com ângulo
inimaginável nesta época. Uma utopia
geométrica, só materializada mais tarde por seu filho na Grande Pirâmide.
Foto T.Abritta, 1991.
Foto
T.Abritta, 1991.
...possa o céu chover a
fresca mirra,
possa ele gotejar incenso sobre o teto do
templo do Faraó Snofru.
Estes reis não subiram ao firmamento,
mas deram um senso de eternidade à escala humana de tempo, quando lemos, mais
de três mil anos depois, esta mensagem deixada por visitantes que aqui estiveram
quase mil anos após esta pirâmide elevar-se no deserto de Meidum (*).
A
inscrição nos levava através este mundo, largos corredores e galerias, ora
descendo ou subindo até chegarmos à portentosa câmara mortuária.
Em
desafio ao tempo, no teto, enfiadas entre blocos de pedra, toras de madeira. Esquecidas da época da construção? Há quanto tempo? Mistério. Convite à reflexão (**).
Madeira no teto da câmara mortuária. Foto T.Abritta, 1991
Quando
saímos da pirâmide, momento único e especial: o sol raspava o solo atravessando
as palmeiras do oásis. De longe, muito
longe, como trazido pelo vento, o cântico Alaaaá,
propagava-se na planura.
Ao
nos dirigirmos para o carro, um tropel, cavaleiro com cara de nenhum
amigo. Falava em árabe, aos arrancos,
como sua montaria que rodopiava e bufava irrequieta. Empinou o cavalo que, num relincho como se
gabasse ser um puro sangue, sumiu em nuvem de poeira. O motorista tremia – jamais havia recebido
tão importante emissário – e gaguejou explicando que fomos convidados para um chá
por importante líder tribal.
A
casa era de tijolos de barro secados ao sol, coberta de esteiras feitas com fibras
de palmeiras, mostrando que praticamente não chovia por aqui. Tiramos os sapatos e sentimos a maciez e a
beleza dos tapetes que contrastava com a aridez exterior. Suas tramas irregulares diziam terem sido
tecidos por diferentes mãos a cada parada de uma caravana. Os chefes locais nos esperavam em torno de
reluzente narguilé de cobre. Em uma
trempe, fogo aquecendo chá. Por aqui,
brasileiros eram considerados irmãos. Não
traziam a arrogância dos conquistadores.
Entre
outros assuntos falei do Saara (Sociedade dos Amigos das Adjacências da Rua da
Alfândega), centro comercial no Rio de Janeiro, onde todos os brasileiros
convivem pacificamente, independente de religião ou origem de seus país.
O
assunto foi um sucesso, a cada pausa eram enviados emissários que traziam novos
ouvintes para a história. E lá ia eu
repetindo tudo de novo, e o pobre motorista – que falava todas as línguas e nenhuma
– nervosamente traduzindo. Só Alá
poderia conhecer a versão que saía em árabe.
Infeliz
ideia. Resolvi mudar a história.
Falei
de um árabe em Paris, vizinho de minha cunhada, proprietário de pequena loja
que só fazia trabalhar de segunda a domingo.
Para tal, tinha sócio judeu e outro cristão. Seu comércio não tinha dia santo. Enquanto isto, os franceses tiravam férias e
descansavam nos fins de semana. O árabe
acabou rico e dono de um supermercado.
Todos
os antigos ouvintes foram chamados de novo.
A cada tropel, nova repetição, e o motorista sempre assustado com as
reprimendas que recebia cada vez que tentava abreviar o relato daquela história,
que já sabia de cor e salteado.
Foi
um chá inesquecível, todos felizes com a paz no nosso Saara e as notícias do
esperto árabe parisiense que já consideravam como irmão.
Os
primeiros raios de sol da alvorada já iluminavam a grande pirâmide de Quéops,
enquanto sacolejávamos no carro retornando para o Cairo.
Notas:
(*)
Nos corredores e na câmara funerária desta pirâmide foram encontradas diversas
inscrições. Uma delas foi traduzida
como: “No 12o dia, do 4o mês do verão, no
41o ano do reinado de Tutmósis III, o escriba Aakheperkara-Seneb,
filho de Amenmesu, veio ver o magnífico templo do Faraó Snofru. O seu sentimento foi como se o céu estivesse
presente e aqui o sol se erguesse. Então
ele disse: Possa o céu chover a fresca
mirra, possa ele gotejar incenso sobre o teto do templo do Faraó Snofru”. Ver em As
Pirâmides do Egito, I.E. S. Edwards, Editora Record, Rio de Janeiro, 1985.
(**) oito anos depois, esta madeira e outros
resíduos orgânicos encontrados em outras pirâmides, foram datados por técnica
de rádio carbono, dando resultados, em média, quatrocentos anos mais antigos do
que as datas históricas associadas aos faraós e suas pirâmides, como constavam na
Cambridge Ancient History. Ver em Dating
the Pyramids, David H. Koch Pyramids
Radiocarbon Project – Archaeology,
volume 52, número 5, 1999.