Ontem
foi aniversário da minha esposa e como sempre uma reunião familiar. Filhas, genros e netos reunidos.
O
leitor deve estar um tanto confuso com o meu vai e vem no espaço-tempo. Mas esclareço: dei um pulo de alguns anos e
estou em São Paulo, para onde fui depois que sai do Arraial, quando o Promotor
foi ser Juiz no Rio. Esta confusão acabou
me lembrando daquele Manuscrito que recebi há alguns anos em uma visita a Belo
Horizonte.
Prometo
que no próximo capítulo volto para o Arraial e suas histórias. Mas tenham paciência com este escritor
neófito e vamos continuar com o episódio abaixo, que tentei escrever na forma
de uma história curta, ou seja, mais do que uma crônica, menos do que um conto.
O Manuscrito
– Vamos lá na Augusto
de Lima, aqui pertinho, onde tem muitos bares e podemos comer alguma
coisa.
–
Vovô... Hoje é domingo. Estamos no
centro comercial de Belo Horizonte. Deve
estar tudo deserto, tudo fechado. Lá no
Savassi deve estar fervendo de gente.
–
Lá onde?
–
Savassi, nunca ouviu falar?
–
É... que eu saiba era o Bairro dos Funcionários. Savassi era a padaria de um italiano.
O
tempo passa, as cidades mudam.
Hospedamos-nos no Hotel Amazonas,
na Avenida Amazonas, como sempre fizéramos
no passado. Será que mudam para melhor,
será uma evolução? O evaporar das
referências pessoais... Um aperto no coração.
No
restaurante aquele Senhor não tirava os olhos de nós. Parecia me conhecer.
–
Ora, ora, Vossa Pessoa não é o Médico do Arraial? – Disse finalmente, tomando
coragem e acercando-se de nossa mesa.
A
noite toda acordado, voltava no tempo com aquelas letras trêmulas, mas riscadas
cuidadosamente no papel almaço, seguindo com grande dificuldade as linhas azuis
para se fazerem legíveis.
Minhas Memórias: Final
E
aqui termino estas memórias: falei no meu início no comércio, na vida como
garimpeiro nas barrancas do Jequitinhonha, nos ganhos com diamantes, nas minhas
terrinhas perto de Biribiri, nos filhos, netos e bisnetos, para chegar a esta
confortável casa no bairro da Serra, em Belo Horizonte, onde, sentado no
alpendre, traço as últimas palavras.
Deveria ter falado daquele dia.
Mas faltou coragem. Algum leitor
atento notará lacunas neste relato?
Sim. Perguntará como um pacato
comerciante urbano tem sucesso no garimpo, enfrentando pistoleiros, malária,
lepra e doença de Chagas. Quem sabe,
escrevendo, não sepulta mais ainda aqueles dias?
Um
desgraçado padre mudou a minha vida.
Salvo fui, pelo Vaqueiro Misterioso – fantasma errante – e pelo Promotor
– valente Doutorzinho.
Pensar
naquele domingo é doloroso. A família já
estava longe, bem abrigada e protegida. Inda
escuro, ao passo, fui pro arraial. Matula
pra fuga, muita munição, armas azeitadas.
Ruas vazias. Todo mundo na
missa. Amarrei o animal nos fundos da
Igreja. Colado na parede perto da porta,
suava, tremia, com o rolar lento do tempo.
Início
do Sermão. Daria tudo pra não escutar
meu nome! Mas o padre falou. Entrei, quatro passos largos, arma levantada,
posição de tiro, a cabeça voando com um certeiro balaço de 44 boca adentro.
Meses
de fuga, fome, sofrimento, solidão.
Muito, muito arrependimento. Mas
o padre mereceu. Arruinou minha vida,
meu comércio. Ninguém me cumprimentava
mais. “Um ateu, um ateu entre nós” –
assim pregava todo domingo. Todo Santo
Domingo, como falava. E eu só querendo
paz e viver com minhas crenças!
As
vagâncias solitárias não tinham fim.
Como companheiro, sempre nas noites enluaradas, o Vaqueiro Misterioso
tentava me dizer alguma coisa com suas aparições e tristes cantorias:
É a cantilena do vaqueiro pela
estrada...
e o vaqueiro, nas noites brancas de
luar,
é um fantasma errante, com essa voz
magoada,
que vai cantando apenas para não
chorar...
Queria
tanto voltar à família, esquecer aquela sangueira toda:
Vai caminhando calmo pela estrada
e a sua voz que se abaixa e que, às
vezes se levanta
é a voz de quem padece uma dor
ignorada,
voz que morreu estrangulada na
garganta...
Não
queria ter o destino dele:
Lá vai ele a dobrar a curva do caminho...
Pois, quando eu for também assim pra
nunca mais,
irei como o vaqueiro, magoado e
sozinho,
levando
a minha sombra
e
os mortos ideais
Evitava
a cidade, as pessoas. A vida era apenas
as pedras do garimpo e as terrinhas onde morava com a família.
Aquela mancha na testa coçava
e ardia o tempo todo. É herpes, dizia o
doutor: “esta pomada minora, mas não cura – doença dos nervos, agonias de
coração.” O médico sabia o que falava. Aquele povo olhando, parecia comentar: “a mancha de Caim, a marca de um
assassino...”. Enterrava o chapéu na
cabeça e sofria. Lembrança da sangueira.
Já ia para uns cinco anos da
chegada do novo Promotor: “bom dia, boa tarde, boa noite, Doutor”. O olhar cruzando os óculos inspirava
confiança. Tinha vontade de confessar
tudo, falar com alguém.
O
Promotor estava conversando com o médico.
Rodeei, subi e desci a Rua do Amparo esperando o médico sair.
“Doutor,
matei um padre...”. Fui falando,
falando, falando... tudo.
“Foi
muito bem matado...”. Escutei. E por um par de horas ele falou dos crimes de
honra, das leis dos homens. “Eu até
abandono esta promotoria! Não existe
prisão para o Senhor! Se fosse o caso,
há muito não estaria livre. Sempre vi
que carregava mistérios e muito medo da lei.”
“Vamos
virar um copo, não esquecendo da dose do padre e enterrar esta alma para sempre
no esquecimento.”
O
Doutor era mesmo como o povo falava.
Valente com armas e palavras.
Acabou com o gatilho assassino do Cabo Chico Diabo apenas com uma prosa:
“com você a minha arma será apenas uma caneta!
Desta arma você não entende!” Dizem
que o Doutor ficou até com dó de Chico Diabo que, arregalando os olhos, disse:
“Doutor, não faz isso comigo não, estas coisas é tudo falatório deste
povo. Sou gente de bem.” Ao comandante do batalhão apenas falou, na
saída da missa, com todo mundo escutando:
“Quem ameaça, pode também levar, Coronel, com toda sua soldadesca, basta
uma bala de 32.” Nunca mais mataram nem espancaram ninguém por
aqui. Ameaçar promotor? Coisa do passado.
Voltei
nesta mesma noite pra minha terrinha. Noite
enluarada. Assim que peguei o trilho na
saída de Biribiri, cruzei com o Vaqueiro Misterioso:
Em que tu pensas? É assim mesmo a
vida...
Toda feita de espinhos, gumes e
punhais...
De vaqueiros que, pela estrada
embranquecida,
vão cantando e passando para nunca
mais...
Pareceu
uma despedida final. Dentro de sua
tristeza, conseguiu finalmente dizer-me o que queria. Não seria como ele. A figura ia sumindo ao passo lento do cavalo
e a triste música cada vez mais longe... até sumir. Passei a mão na testa. A mancha desapareceu.
E o vaqueiro dobrou a curva do
caminho.
–
Como deve ser triste ir assim tão sozinho!
E
aqui, nestas últimas linhas, termino de fato minhas memórias. Retorno à varanda na Serra. Antiga Serra do Rola Moça.
Olhos
marejados, terminei a leitura. A forte
lembrança do Promotor, das nossas conversas, dos seus livros. Não consigo lembrar completamente da
dedicatória em uma primeira edição do romance Rola Moça, de João Alphonsus.
Era inédita, posto que assinada não só pelo autor, como por seu
personagem principal, Bacharel Anfrísio da Conceição. Havia qualquer coisa do tipo: “do seu colega
de bacharelices...”. Histórias que o
tempo vai apagando.
Depois
fui medicar em São Paulo e o Promotor foi ser Juiz na Capital Federal. Sempre que vou ao Rio de Janeiro, tomamos um
chope na Galeria Cruzeiro. O tempo passa, os amigos se vão, as cidades
mudam. Ficam alegrias, tristezas.
E as riquezas da
memória, que falam da beleza da vida.
Nota:
Intertextos
com versos da poesia O Vaqueiro, Oswaldo Abritta, 1928.
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