Fica a meio caminho entre Paraty e
Ubatuba. Pequena e sinuosa estradinha
abandona a Rio Santos e vai descendo a Serra do Mar. Em poucos minutos um frio no coração com o
cenário luminoso do Rio Picinguaba abraçando o azul oceânico. Das alturas, esticamos os olhos tentando
alcançar toda extensão da Praia da Fazenda do outro lado do rio.
Logo entramos na Vila. Apenas percorremos uns cem metros de carro ao
longo da praia. Depois só
caminhadas. Trilhas, cachoeiras, muitas
ilhas e areias sem fim. Assim é
Picinguaba, um dos núcleos do Parque Estadual da Serra do Mar – verdadeiro
paraíso preservado, com mais de quarenta mil hectares de matas, praias e o mar
com suas ilhas: das Couves, Comprida, Ilhote, da Pesca, Rapada, Selinha.
O nome Picinguaba vem do Tupi-Guarani,
significando refúgio de peixes. A vila é
habitada desde o século dezenove e tombada há quase trinta anos, de modo que
não chegou a ser destruída pela especulação imobiliária.
Anoitece. A paisagem iluminada por miríades de vagalumes. Delicio-me comendo vieiras cruas – apenas
gotas de limão – no Picimbar, simpático barzinho de um alemão que por aqui
ficou.
Até a década de trinta, a região foi um
importante ponto da pesca de sardinha.
Hoje elas sumiram, mas graças à Universidade Federal de Santa Catarina, agora
é um grande polo de fazendas de criação de vieiras e mariscos.
Por aqui todos se orgulham de sua origem
caiçara, mas pouco sabem de seu passado.
São jovens pescadores globalizados: bermudas e camisas coloridas,
sandálias havaianas, óculos escuros, bonés de rappers. Navegam em modernos
barcos de alumínio e possantes motores.
Entretanto demonstram grande carinho pelas dezenas de canoas coloridas
que repousam majestosas pelas praias.
“Esta vem dos tempos do meu avô”. “Meu pai pescava com ela, mas prefiro o barco
de alumínio – mais leve” (V. figuras 1 e 2).
Quando, pela última vez, grossos
troncos de guapurubu, ingá e ingá-siriúba foram arrastados para a praia e
escavados lentamente com enxó? Será que num
passado distante chegaram a ser escavadas com ferramentas de pedra, como
mostram os amoladores-polidores encontrados nas praias de Santa Catarina, Ilha
Grande e Arraial do Cabo no Rio? Há uns
três mil anos o Homem já fazia suas ferramentas graníticas, picotando rochas de
modo a formar reentrâncias para depois com areia e água doce polir em forma de
cuias ou frisos. Estas eram as oficinas
líticas onde machados, facas e gumes eram feitos: os amoladores-polidores que
procurava por aqui.
Quem poderia me informar? Onde estavam aqueles personagens
típicos? Onde estava aquela velha
parteira, a professora aposentada, o intelectual local sempre declamando
poemas? E o escritor que por aqui se
refugiava dos grandes centros urbanos?
Tempos de verão. Muitos visitantes e movimento. Os personagens típicos preferiram migrar,
desaparecendo ou dissolvendo-se naquele ir e vir de pessoas.
Figura 1 – Redes e apetrechos de pesca.
Picinguaba, Ubatuba-São Paulo. Foto T.Abritta, 2012.
Figura 2 – Praia de Picinguaba. Ubatuba, São Paulo. Foto T.Abritta, 2012.
Dia de partir. Última visão da praia, da vila, da Pedra do
Cabo – enorme bloco granítico, repousando nas areias, lambido por um curso de
água doce que descia das matas. Local
ideal para uma oficina lítica (V. figura 3).
Figura 3 – Praia de Picinguaba, Pedra do Cabo.
Ubatuba, São Paulo.
Foto T.Abritta, 2012.
Quem seria aquela figura sentada na
sombra, tomando cerveja enquanto olhava o mar?
Aproximei-me. Perguntei, mas
apenas respondeu:
“Marcas, não sei. Mas de noite é um tal de casais que se
esfregam nestas rochas...”
Diante do meu olhar, misto de decepção
e indignação, apenas declamou com sua voz rouca:
“Ai como sofre o corpo
que se esfrega
no corpo que se entrega e não se entrega
é como a convulsão da preamar
a querer atirar o mar no ar
a onda rija bate como espada
nos musgos da mulher ensolarada.”
Um olhar mais atento mostrou, no
refluxo das ondas, as marcas na pequena rocha à esquerda quase enterrada nas
areias: muitos frisos curtos e pouco profundos (V. figura 4).
Fechei os olhos e imaginei o nível das
águas mais baixo, grupos trabalhando na praia – uns polindo machados e enxós de
pedra, outros encavando troncos que tomavam forma de canoas.
Figura
4 – Praia de Picinguaba. Pedra do Cabo
(detalhe mostrando a oficina lítica).
Ubatuba, São Paulo. Foto
T.Abritta, 2012.
E o Personagem Típico voltou, deixando
suas marcas na nossa história.
Notas:
-Intertexto
de fragmento do poema Balada de Amor na
Praia, Paulo Mendes Campos.
Publicado
em Encontros com a Civilização Brasileira
4, de outubro de 1978.
-Conto
publicado em “Os Meus Papéis”, 2013. Livro premiado na categoria crônica, em
2014, pela UBE-RJ.
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