O Instituto
Fernand Braudel de Economia Mundial, associado à Fundação Armando Álvares
Penteado, em São Paulo, edita um periódico, o Braudel Papers. Não sei por
que o papers, em inglês, já que
Braudel era francês, mas vá lá. O fato é que a publicação merece ser lida. No
seu último número, apresenta uma aluna pobre, de uma escola da periferia de São
Paulo, em Capão Redondo, um desses lugares miseráveis e violentos, onde o poder
público chega apenas marginalmente, abandonando e oprimindo, e onde a maioria
dos jovens tem como causa mortis um assassinato. Sandra tem 17 anos e é desses diamantes
brutos que o Brasil insiste em produzir, contra todas as condições, e que em
sua maioria jamais serão lapidados e se perderão cedo na vida, devido à cruel
falta de oportunidade. Sandra teve
sorte, foi convidada a trabalhar no Instituto Braudel. Trabalha de dia e estuda à noite, como
centena de milhares de jovens em todo o Brasil.
A escola de Sandra é típica escola de periferia da cidade mais rica do
Brasil, São Paulo. Ela foi convidada
pelo Instituto a fazer um diário de seu ano escolar. O relato é devastador.
Realidade em prosa de algo que os governos enxergam apenas em números. Para as estatísticas, Sandra faz parte das
96% das crianças brasileiras que estão na escola. Para Sandra, a escola é um lugar que fica a
anos-luz do que se poderia esperar de uma instituição de ensino. Apesar de tudo, mesmo no inferno, há quem
tente melhorar, há quem busque o conhecimento, mesmo em meio a tanto abandono e
desfavorecimento. Seu diário mereceria
publicação em livro. É a visão pungente,
sem retoques, de como o Brasil trata a maioria de seus filhos. Mostrarei apenas o primeiro dia do diário,
que em si já é uma crônica escrita com estilo enxuto, objetivo, sem adjetivos,
que orgulharia a maioria dos jornalistas que conheço (e que não conheço também
“Quarta-feira,
14 de fevereiro.
As aulas começaram há seis dias, só que até agora
nenhuma
matéria foi
dada. Como o horário das aulas ainda não
foi definido, os alunos ficam nos corredores, até às 19h20, querendo saber para
que salas irão. Outros preferem ficar do
lado de fora da escola, escutando o som que vem de um carro estacionado. Na sala de português não há iluminação
suficiente e há goteiras nos corredores.
Quando as aulas começam, os alunos reclamam muito quando os professores
usam a lousa.
Por enquanto, ainda estão fazendo simplesmente
revisão. A professora de português,
Marina, passou um texto sobre narração que encheu a lousa. Depois da primeira aula resolvi sentar na
parte do fundo. Dois alunos sentados
atrás de mim conversavam sobre armas:
- Seu pai ainda
tá com aquele calibre 12?
- Tá sim, quer
comprar?
- Quanto ele
quer?
- R$ 1.500.
- Você tá louco!
E aquela arma da polícia, que atira bolinha de borracha, que eu não sei o nome,
quanto ele quer?
- R$ 350.
No início da conversa, pensei que fosse brincadeira.
Sendo eu nova na sala, talvez quisessem me impressionar. Não tenho
certeza. Quando a professora de química
disse que não ia deixar sair da sala para fumar, os meninos disseram: “Aqui
ninguém fuma, só cheira!”
Quando o sinal bateu para a última aula fui até o
orelhão que instalaram na escola. Alguém
já tinha quebrado. Às 22h fui
embora. Não tinha luz na rua.”
Fritz Utzeri,
Jornal do Brasil de 24/04/02)