Publicado no Montbläat, outubro de 2007.
Na
Grécia Clássica os mortos
eram sepultados de uma forma ritual ,
criando-se uma réplica do falecido na forma de um corpo insubstancial chamado Êidolon. Para aqueles que
morriam longe da pátria ,
dos parentes ou
quando o corpo
não era
encontrado, construía-se um túmulo vazio com uma estátua
ao lado , o Kolossós. Este Colosso, como
o próprio morto ,
é um duplo do
vivo , atraindo a Psiquwe vagante
transformando o morto em Êidolon.
Foto T.Abritta,
1996.
Em certo sentido a fotografia
funciona como um
duplo do fotografado, um
singelo Kolossós em papel . Por outro lado , a sua deterioração física lembra-nos não
só da transitoriedade da vida como da fragilidade e constante
transformação do mundo material . Uma foto antiga , mesmo deteriorada e de baixa
qualidade em
sua concepção ,
sempre será considerada uma preciosidade
ou obra
de arte , pois é vista como um registro arqueológico, uma ruína
que sobreviveu a uma deterioração
temporal . Esta ponte
entre História ,
Arqueologia e Fotografia
fica mais clara
comparando-se a visão mais técnica de
um arqueólogo
com o olhar
poético de uma escritora.
Foto
T.Abritta, 2005.
Desídia e destruição
Infelizmente o nosso
patrimônio fotográfico
encontra-se prestes a desaparecer ,
com os constantes
roubos em
centros culturais e museus
que lutam com
a falta de verbas
e abandono , pois
no Brasil, nos últimos
anos a cultura
não é levada
a sério , sendo considerada uma atividade incômoda ,
por favorecer consciência e espírito crítico . A desídia
de nossos governantes
é responsável pela
destruição de nosso
patrimônio cultural, encontrando-se
desaparecidas no presente momento
mais de 8.000 fotos
históricas, mapas e gravuras ;
cerca de 2.000 livros
raros e insubstituíveis; para não
falarmos das mais de 1.000 obras sacras que
ninguém sabe ninguém
viu. No tocante
à fotografia , somente
da Biblioteca Nacional
foram roubadas 750 fotos , incluindo parte da coleção
Thereza Christina Maria, doada por Pedro
II e tombada em 2003 pela Unesco como
“memória do mundo ”. Mas , para a Delegacia de Meio Ambiente e
Patrimônio Histórico
da Polícia Federal ,
uma estimativa de mil
obras furtadas nesta biblioteca é ainda
muito conservadora (ver
O Cerco se Fecha, Revista de História
da Biblioteca Nacional
23, agosto de 2007). Outra perda irreparável
foi o roubo de 1.500 fotos
– 19 de um total
de 27 álbuns de fotografias
– de Augusto Malta
do acervo do Arquivo
Geral da Cidade
do Rio de Janeiro . O ataque aos nossos museus e
centros culturais intensificou-se nestes
tempos de mensalões, apagão ético de
nossa intelectualidade
e o vergonhoso silêncio
em nossos
meios acadêmicos ,
que a tudo
tolera por interesses
inconfessáveis . Somente na administração do Ministro
da Cultura Gilberto Gil foram saqueadas:
a Biblioteca Nacional ,
o Palácio do Itamaraty, o Museu
da Chácara do Céu ,
a Biblioteca da Escola
de Belas Artes da UFRJ, a Biblioteca da Fundação
Oswaldo Cruz , para
não falarmos também
de museus estaduais ou
municipais como , por
exemplo , o Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco e a Biblioteca
Mário de Andrade em São
Paulo. Diante
deste cenário trágico ,
o governador da Bahia, Jaques Wagner, do
PT, resolveu e declarou que “vai introduzir o que o Ministro Gilberto Gil fez na federação ,
cortando privilégios e democratizando a cultura ”. Como resultado cortou
os recursos de diversos
centros culturais, como
a Casa de Jorge Amado ,
abandonando a própria sorte milhares
de documentos sobre
a História do Brasil, da Bahia e da grande literatura deste escritor .
Com toda esta política cultural de terra
arrasada, não vamos esmorecer
nas nossas denúncias e continuaremos
“dando nome aos bois ”
daqueles que confundem cultura com marketing de
política populista em busca do voto
fácil e irresponsável. Neste quadro
trágico, chegou recentemente do nosso vizinho
Uruguai a bela notícia
da sobrevivência de um acervo fotográfico que
sobreviveu à truculência do poder ditatorial .
Figura 1 - Estátuas
representando Amenófis III (1417-1379 AC) - Tebas ,
Egito. Os gregos
da antiguidade clássica
diziam ser um
Kolossós do mítico rei Menon,
desaparecido na Guerra de Troia e até hoje estes gigantes são conhecidas como
Colossos de Menon.
“Os resultados mais correntes
da conduta humana ,
os dados arqueológicos mais vulgares , podem
chamar-se artefatos , coisas feitas ou desfeitas por uma deliberada ação humana ”, Gordon Childe.
“As fotos são ,
é claro , artefatos .
Mas seu
apelo reside em
também parecerem, em
um mundo
atulhado de relíquias fotográficas, ter o status de objetos encontrados – lascas
fortuitas do mundo ”, Susan Sontag.
A História
da fotografia no Brasil
A
História da Fotografia
no Brasil confunde-se com a História da Fotografia
Universal . Poucos meses depois
de Daguerre anunciar sua
invenção , na cidade
de Paris, em 19 de agosto
de 1839, o abade francês
Louis Compte, que era
capelão da fragata
L’Orientale, desembarcou em território brasileiro , produzindo aqui
os primeiros daguerreótipos em 17 de janeiro
de 1840. Entusiasmado pela nova técnica , um menino de apenas
quatorze anos – que
viria a ser o patrono
da fotografia no Brasil – adquiriu em março deste mesmo ano um equipamento
de Daguerreotipia. Este
menino era
nada mais
nada menos
que o Imperador
D. Pedro II, que formou posteriormente uma
grande coleção
de fotografias , doada à Biblioteca Nacional
por ocasião
de seu banimento do Brasil. Daí em
diante a história
não parou mais ,
fotógrafos viajantes
registraram cidades , pessoas , paisagens
e cenas do cotidiano
em todo
o Brasil, legando-nos um inestimável patrimônio
iconográfico. Em
1905 a Casa Marc Ferrez, na Rua São José,
no Rio de Janeiro ,
já vendia cartões
postais , equipamentos
e apetrechos fotográficos
e em 1912 passou a representar
e vender as chapas
fabricadas pelos irmãos
Lumière, os precursores do cinema . Outro fato importante
é que em
1921 Conrado Wessel criou em São Paulo a primeira
fábrica brasileira
de papel fotográfico.
Figura 2 – Placas
fotográficas vendidas no Rio de Janeiro
no início
do século vinte.
Voltando
ao início de nosso
artigo , é como
se perdêssemos o Colossos ,
os artefatos e as ruínas
arqueológicas ou , indo mais além , como os nazistas
que apagaram todos
os vestígios da existência
da cidade de Lídice, na antiga Tchecoslováquia. No Brasil estamos perdendo não só o nosso patrimônio
cultural, como também
os registros de sua
existência pretérita . É como
se demolissem o Coliseu em Roma para construir uma quadra
para ensaios
de escolas de samba ,
a pretexto de “cortar
privilégios ” e “valorizar
a cultura popular ”.
O tesouro
da lata
No
6º Festival Internacional
de Cinema de Arquivo ,
em setembro
último , no Rio de Janeiro , fomos brindados pela
incrível história
do fotógrafo uruguaio
Aurélio Gonzáles, sob a forma
de exposição de suas
fotos , conversas ,
palestras , entrevistas
e apresentação de um
documentário . Este fotógrafo trabalhava em
Montevidéu, para o jornal
comunista El Popular , na Avenida 18 de julho ,
quando em
1973 o prédio foi invadido pelas forças da ditadura
militar .
Gonzáles guardou os milhares de negativos de seus
anos de trabalho ,
em uma tubulação
no 12º andar do edifício
e se escondeu no parapeito , salvando a sua vida e as fotos da brutalidade da repressão . Mas o fato
interessante é que ao retornar
ao Uruguai, trinta e três anos depois,
as latas com
os negativos tinham desaparecido do esconderijo original.
Entretanto foram encontradas graças
a um menino
com treze anos
de idade na época ,
que transferiu o “tesouro ”
para uma parede
na garagem do prédio . Assim, milhares
de negativos acondicionados em latas foram salvos , documentando mais
de vinte anos de História ,
em uma verdadeira arqueologia
fotográfica, conhecida na época
como “o tesouro
da lata ”. Acontecimentos
como estes
nos enchem de esperanças ,
pois têm a magia de um conto
encantado em que
o bem e a cultura
vencem o mal e a ignorância .
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