Teócrito
Abritta
Teócrito
Abritta, 68 anos, é Físico e Escritor. Foi Professor do Instituto de Física da
UFRJ, colunista do jornal Montbläat, publicando
quase duzentos artigos, crônicas e contos. Tem também colaborado em diversas
publicações na Internet, em boletins de empresas, partidos políticos e blogs, bem como em revistas literárias.
Publicou os livros “Memória, História e
Imaginação” (2010), “Cidades de
Memórias” (2011) – primeiro lugar em Crônica UBE/RJ (2012) e “Os Meus Papéis” (2013) – terceiro lugar
em Crônica UBE/RJ (2014), pela Oficina do Livro Editora. Participou de diversas
antologias. Escreveu prefácios para livros e apresentações de exposições
artísticas.
Um
dia ensolarado no Rio
...é
assim:
Podemos iniciar com uma visita à
Natureza, admirando o colorido tapete vermelho-púrpura da floração de um
Jambeiro que sobrevive nos jardins do Instituto Moreira Salles (V. Figura 1).
Volta aos tempos da infância, da molecada
empanturrando-se de jambos pelas ruas da cidade.
Memória apagada pela pobre consciência
ambiental. Árvores impiedosamente
abatidas com a alegação de que seus frutos e flores destruíam os carros,
corroendo-lhes as pinturas.
O culto do automóvel celebrando a
ascensão social.
Que tal refugiar-nos em pedaços do Rio
Antigo?
Visitar a Rua do Lavradio e
adjacências?
Admirar belos casarões emoldurados pelo
céu azul. Participar de uma Roda de Samba
no Armazém do Senado.
Comer pipoca – salgada ou doce.
Um chope no Bar Brasil, ou até mesmo comer orelha de porco com caipirinha no
meio da rua, admirando a imagem do recorte arquitetônico contra o glorioso azul
celeste, refletida em uma poça de esgoto!
Andar sobre velhos pisos de granito ou
nos arabescos de ladrilhos hidráulicos.
Cortar cabelo em uma barbearia popular ou de “elite”, com cadeiras
forradas com roto veludo vermelho e espelhos com molduras douradas descascadas.
Explorar sinistros ambientes,
atravessando a servidão de passagem sob as ruínas de um casarão incendiado,
para, no final, descobrir pequena vila dos tempos antigos, com pessoas
conversando sentadas em cadeiras defronte suas casas.
Visitar velhos antiquários, escutar o
pregão de leiloeiros:
“Estamos mudando de ramo. As
peças estão baratíssimas. Arrematei
quase tudo de um luxuoso, e antigo, navio europeu que foi desmontado num
estaleiro de Niterói. Amanhã faremos um
leilão.”
Quanto dão?
Quanto dão?
Quem dá mais?
Quem dá mais?
Esta bengala de castão de ouro!
Esta arca colonial!
Este faqueiro de prata!
Esta louça azul de Macau! (1)
“Com
sorte podem ver a fumaça da última sopa na terrina ou os vestígios dos lábios
da duquesa na borda daquela xícara com asa quebrada!”
Por fim, almoçar sardinhas fritas e um
pulpo a la galega na casa Momus, herdeira dos velhos balcões e estantes
do Lidador, liquidado pela
especulação imobiliária.
...beber café, admirar o gigantesco
mural da artista Panmela Castro gritando em letras garrafais: Onde Há Respeito Há Paz!
Ah, mas aquela rua está tão
pertinho...
Parei o carro na pracinha, olhando ao
longo da Rua Salvador de Sá os casarões que se desfazem, ruínas de singular
exemplo das moradias coletivas construídas pela antiga Prefeitura Municipal do Distrito Federal. Escadarias de madeira, passadiços em balanço
– acesso das habitações – tudo apodrecendo abandonado (V. Figura 2). Escuto vozes das irmãs e primas por
afinidade: “vamos visitar a vovó e a bisa”.
E lá iam todos para o casarão na Rua Presidente Barroso. Vejo os meninos com suas camisas de jersey, meninas com enormes laçarotes
brancos nos cabelos. Escuto a voz grave
de Seu Álvaro, histórias de Dona Annita, Dona Elvira, Dona Geni. Vejo, do avarandado de madeira, as bandinhas
carnavalescas no coreto da Pracinha. De
noite, no enorme Buick, retornávamos
com seu Álvaro dirigindo. Charuto na
boca, sempre de terno marrom. Ao
passarmos pela Praça Paris, éramos sempre acordados e após o espetáculo das coloridas
fontes luminosas, todos caíam novamente no sono.
E o Buick rodava macio e vagaroso.
Assim que contornei a Pracinha Coronel
Castelo Branco, mal embiquei na Rua Presidente Barroso, a ordem de comando: “vai vasando senão vai sê pió! Vai Manso, de ré mesmo...”.
Não sei se tive medo ou pena. Jovens com menos de vinte anos de idade
portando armas de guerra.
Há uns vinte anos todo aquele
quarteirão havia sido desapropriado visando sua restauração para salvar um
pouco de nossa História, registrando o sofrimento das primeiras levas de
imigrantes italianos e do espírito dos anarquistas que não se curvavam diante
das autoridades e se refugiavam da escravidão “branca” das antigas fazendas
cafeeiras do Vale do Paraíba.
Entra Secretário, sai Secretário de
Cultura, tudo continua abandonado e invadido pelos novos deserdados, por Deus e
pela sorte (V. Figura 3).
Hoje preferem as “revitalizações” onde
toneladas de vigas com mais de quarenta metros de comprimento se desvanecem no
ar. Preferem construir avenidas sem
drenagem para águas pluviais, o “bota tudo abaixo”, as construções
descartáveis.
Empreiteiras felizes, ganho fácil,
voto barato.
Há dez anos, quando ali estive, foi
diferente. Na rua meninas brincando de
amarelinha. Nos terrenos baldios, onde
casarões já desabaram, meninos brincando com bolas de gude ou cerca-terreno. Pessoas conversando nas calçadas.
Assim que parei em frente ao número 87
(V. Figuras 4 e 5), todos se assustaram.
“Não sou polícia nem fiscal da prefeitura, apenas quero tirar uma
fotografia deste casarão onde morou a família de meu bisavô”, declarei.
Tudo voltou ao normal.
Na década de oitenta do século
dezenove, partiu de uma pequenina aldeia, próxima da cidade de Fagnano
Castello, província de Cosenza, sul da Itália, um grupo de moradores. Alguns aportaram nos Estados Unidos, outros
no Rio de Janeiro, Santos e Buenos Aires.
No Porto do Rio desembarcaram os
irmãos Benjamin e José Abritta, com suas famílias e a irmã solteira Rosa.
Já instruídos, ainda na Itália, deram
nomes falsos aos funcionários da imigração, escapando do envio compulsório ao
Vale do Paraíba.
Com suas profissões de alfaiate e
sapateiro, Benjamin e José sobreviviam às dificuldades do Rio de Janeiro.
Com o surto de febre amarela e outras
insalubridades, rumaram para Minas Gerais.
Provavelmente
fizeram o trajeto pela estrada de ferro Rio-Três Rios-Porto Novo da Cunha
(atual Além Paraíba)-Cataguases, e, pela antiga estrada de terra da Areia
Branca, em carros de bois ou lombo de mulas, chegaram ao povoado de Espírito
Santo do Empoçado, atual Cataguarino.(2)
Benjamin passou a dedicar-se ao
comércio de café e mais tarde retornou ao Rio, comprando a casa na Rua
Presidente Barroso, onde três gerações de sua família moraram.
No Rio, Benjamin chegou a enriquecer,
tendo casa de comércio na Rua da Carioca.
Acabou falido. Todo o dinheiro
que ganhava era para ajudar seus compatriotas que aqui aportavam.
Até hoje guardo na memória aquela cena
do meu pai fazendo uma reverência e beijando a mão de Dona Angelina, viúva de
Benjamin. Toda a criançada ficava na
soleira da porta, admirando a Mamma
na penumbra, em meio à santaria, iluminada apenas pela chama de uma vela. Pausadamente ia falando uma língua que
ninguém entendia – esquecera o italiano e nunca aprendera o português. Naquele centenário rosto enrugado, sobrevivia
o dialeto de sua infância, de sua pequena aldeia. Verdadeiro fóssil vivo de uma língua morta.
A história poderia terminar aqui. Mas meu cerne ordena que continue. Que suba a Ladeira da Misericórdia e escute
do Oficial de Dia no Instituto Geográfico
do Exército, que funciona na outrora Fortaleza
da Misericórdia: “Visitas estão suspensas até ordem superior. Afinal o Morro da Providência não é longe e
temos armas e bens a zelar. Bom, neste
caso, Professor, permitirei, por minha conta e risco, breves minutos de
permanência junto à guarita com vista para a região portuária” (V. Figura 6).
E assim, aquela fortaleza, que já teve
“36 bocas de fogo e 1.000 balas de
diferentes calibres”, é
abatida pela segunda vez. A primeira por
perturbar a paz episcopal com suas salvas de canhões. Hoje, pela tolerância dos nossos governantes
com o crime organizado.
A visão esplendorosa da Baía da Guanabara, as palavras do
Biólogo Mário Moscatelli:
Depois de gastos mais
de um bilhão de dólares no Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, que
não gerou expressivas melhorias ambientais, e agora está recebendo mais
quinhentos milhões de dólares na esperança que esse dinheiro seja mais bem
gerido, o que se constata é que o Rio de Janeiro, assim como o resto do país,
naufraga nas próprias fezes. Longe de
ser um problema de falta de recursos, o que salta aos olhos é a falta de
interesse, de vontade política e a mais completa falta de gerenciamento primário
dos recursos financeiros. As manchete dos
jornais dizem tudo: 7% de 114 obras estão prontas e 60% atrasadas, paralisadas
ou não iniciadas. Enquanto a
“burocracia” domina, os superfaturamentos abundam e a degradação ambiental dos
corpos d’água e na Saúde Pública dominam o cenário nacional, a certeza da
impunidade de irresponsáveis administradores públicos só faz crescer a certeza
de que a sexta economia do mundo vai naufragar em pleno século XXI.
Quando minha alma crítica perscrutava a
dita revitalização da Zona Portuária, enorme prédio – o anexo da Biblioteca Nacional – tal um emissário
do mal, surge à minha frente. Ali, a
Cultura não é preservada. É condenada à
morte em quilômetros de prateleiras empoeiradas: documentos, livros, mapas, fotografias,
pergaminhos, mofados pelas infiltrações de água, comidos por traças, cupins e
até mesmo ratos. Um cheiro insuportável
envolve o ambiente que deveria ser de conservação, pesquisa e conhecimento (3).
E não me canso de enumerar a lista de
nossas perdas já reconhecidas oficialmente:
“A desídia
de nossos governantes
é responsável pela
destruição de nosso
patrimônio cultural, encontrando-se
desaparecidas no presente momento
mais de 8.000 fotos
históricas, mapas e gravuras;
cerca de 2.000 livros
raros e insubstituíveis; para não
falarmos das mais de 1.000 obras sacras que
ninguém sabe ninguém
viu. No tocante
à fotografia, somente
da Biblioteca Nacional
foram roubadas 750 fotos, incluindo parte da coleção
Thereza Christina Maria, doada por Pedro
II e tombada em 2003 pela Unesco como “memória
do mundo”. Para a Delegacia de Meio
Ambiente e Patrimônio
Histórico da Polícia
Federal, uma estimativa
de mil obras
furtadas nesta biblioteca é ainda muito
conservadora. Outra perda
irreparável foi o roubo
de 1.500 fotos – 19 de um total de 27 álbuns de fotografias
– de Augusto Malta
do acervo do Arquivo Geral
da Cidade do Rio
de Janeiro. O ataque aos nossos museus e
centros culturais intensificou-se nestes
tempos de total desvalorização cultural,
da perda de valores éticos por nossa intelectualidade, bem como do vergonhoso
silêncio em
nossos meios
acadêmicos, que
a tudo tolera por
interesses inconfessáveis. Podemos falar também dos saques no Palácio do Itamaraty, no Museu da Chácara do Céu, na Biblioteca da Escola
de Belas Artes da UFRJ, na Biblioteca da Fundação
Oswaldo Cruz, para
não falarmos de museus
estaduais ou municipais, por exemplo, o Instituto Arqueológico, Histórico
e Geográfico de Pernambuco e a Biblioteca Mário de Andrade em
São Paulo. Não esquecendo do corte dos recursos de diversos
centros culturais,
como a Casa de Jorge Amado, abandonando
à própria sorte,
milhares de documentos
sobre a História
do Brasil, da Bahia e da grande literatura deste escritor”.
O dia já caía, tempo apenas para uma
visita ao Cais do Valongo, onde, entre
1811 e 1843, desembarcaram mais de quinhentos mil negros escravizados, vindos,
em sua maioria, do Congo e de Angola.
O Valongo
foi declarado patrimônio nacional em novembro passado. Na ocasião, a Unesco considerou o local parte da chamada Rota do Escravo, projeto que foi lançado por esta instituição em
2006 para destacar o patrimônio material e imaterial relacionado ao tráfico de
escravos no mundo. Este cais foi
construído para ser ponto de desembarque e comércio de escravos. Em 1843 foi transformado no Cais da Imperatriz para receber Theresa
Christina, que se casaria com D. Pedro II.
Em 1911 esta área foi aterrada, o passado soterrado, dando lugar à Praça do Commercio.
Já anoitecendo, chego em casa. Passo os olhos nos jornais. Duas notas escondidas em páginas secundárias:
“Toma posse no Palácio Gustavo
Capanema, blá-blá-blá, o Comitê
Consultivo da Candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade,
composto por membros de associações sociais e comunitárias, representantes das
três esferas governamentais; fulano, sicrano e beltrano”.
“O Ministério da Cultura autorizou a
captação de R$ 3.526.900,00 para a turnê que irá celebrar os cinquenta anos de
carreira da cantora fulana de tal. Em
2011 essa cantora foi alvo de uma polêmica por seu projeto para um blog de poesia autorizado a captar R$
1,3 milhão pela Lei Rouanet”.
O dinheiro público, que falta na
Cultura, indo para o ralo.
A título de epílogo:
“Essa menina já está parecendo uma intelectual. Quanto mais
souber, mais infeliz será.”
Do conto O Espartilho, de Lygia Fagundes Telles, onde a
patroa passa a trancar uma estante onde ficavam os dicionários e livros –
preocupada com a mania da empregada de consultar o pai-dos-burros.
Desesperanças?
Não.
A minha Escrita de Resistência
é a minha Esperança.
Figura 1 – Jambeiro, Instituto Moreira Salles. Foto T.Abritta.
Figura 2 – Casarão em ruínas na Rua Salvador de
Sá. Foto T.Abritta.
Figura 3 – Área que já deveria ter sido restaurada
no centro do Rio de Janeiro. Google Maps.
Figura 4 – Rua Presidente Barroso 87. Foto
T.Abritta.
Foto 5 – Rua Presidente Barroso 87 (detalhe da
fachada). Foto T.Abritta.
Figura 6 – Fortaleza da Conceição. Foto T.Abritta.
Notas:
(1)
Intertexto
com fragmentos da poesia Leilão de
Mauro Mota.
(2)
Exma. Família Abritta, Maria Joana
Neto Capella, Edição do Autor, 2004.
(3)
No conto A Morte e a Morte de Erivaldo
(publicado em Os Meus Papéis,
Teócrito Abritta, Oficina do Livro Editora, 2013) abordamos também o abandono
de um dos maiores patrimônios ferroviários do mundo que está sendo vendido como
sucata, na região da Leopoldina, Rio de Janeiro.
Fotografias
da Rua do Lavradio e imediações, bem como do mural da artista Panmela Castro
podem ser vistas nos ensaios fotográficos Um
dia Ensolarado no Rio e Onde Há Respeito Há Paz. Procurar em “Álbuns” no link abaixo: