Por aqui, apenas duas estações: inverno
ou verão. Estamos na primeira. Época de chuvas, tudo verde. No verão apenas secura: verdadeira face da
caatinga, toda esturricada. Agora uma
magnífica paisagem. Imenso céu azul, a
pedraria do rio rasgando a vegetação.
Vozes infantis das brincadeiras refrescantes, o badalar no pescoço do
bode guia. O rebanho bebendo água.
Adiante, poucos passos, a imensa Pedra Lavrada do Ingá. Tão conhecida, uns cinquenta anos para
tocá-la. Mas não estranhe: monumentos
arqueológicos são assim – carregados de mistérios que suplantam até a
grandiosidade de civilizações que tentaram alcançar os céus.
Vou fotografando cada detalhe no painel
granítico vertical (V. Figura 1). No
lajedo horizontal, saltava um chão de
estrelas, brilhando ao sol, reluzindo tal astros em escura noite (V. Figura
2).
Figura
1 – Pedra do Ingá (detalhe do painel vertical).
Ingá, Paraíba.
Foto
T.Abritta, 2011.
Figura
2 – A chamada Tábua Astronômica da Pedra do Ingá (painel
horizontal). Ingá, Paraíba. Foto T.Abritta, 2011.
Tudo começou nas férias escolares, em
tempos sem televisão colorida ou computadores.
No Jussara, único cinema do
bairro – o forró, como chamávamos –, a cada início de férias, os mesmos filmes
desbotados já conhecidos de todos. E
assim, acabamos no Museu Nacional na
Quinta da Boa Vista.
Logo na entrada, um modelo do esqueleto
daquela ave ancestral, dentes no bico. Quem
sabe parente dos dinossauros?
Arqueópterix, leu um dos garotos na
placa identificadora, com o nome científico escrito em Latim.
A voz fanhosa, mas potente,
assustou-nos:
“Parabéns. Finalmente um alfabetizado por aqui. Como prêmio estão convidados para uma visita
guiada por todo o museu, até aos porões desconhecidos. Terão a companhia de um grupo de Normalistas
que nos visitam.”
Cada um tentava impressionar à sua
maneira. Uns se esforçavam para fazer
perguntas e comentários inteligentes.
Outros, sempre mais bem sucedidos, soltavam piadinhas infames. Reprováveis atitudes buscando os sorrisos
femininos.
“Temos no Museu Nacional uma múmia de excepcional beleza, que apresenta a
particularidade de ser a única em toda história egípcia revelando as formas
femininas modeladas. O Museu Britânico se interessou em
adquiri-la. Mas ela está no Brasil. É a nossa ‘vedete’, de valor incalculável.”
Na rabeira do grupo, baixinho escutamos:
“já pensou eu correndo com esta múmia debaixo do braço?”
“Do ponto de vista psicológico, temos
um detalhe ímpar. Normalmente aquela
rede azul era colocada sobre o peito de uma múmia para impedir que Osíris lesse
seu coração, descobrindo algum pecado, resultando em uma sentença desfavorável
no julgamento do morto que acabava de chegar.
Na nossa ‘vedete’ a rede está desdobrada em duas partes: uma sobre o
coração, a outra colocada delicadamente sobre a região do sexo, provavelmente
com a intenção de torná-la intocável, mantendo sua virtude e castidade através
da eternidade.”
Mais piadinha: “será que Osíris era
tarado?”
Mas todos se calavam de admiração,
silêncio profundo, quando o Professor Victor Stawiarski lia, traduzia e explicava
a sintaxe dos hieróglifos em papiros e Estelas funerárias:
“Tu serás recebido nos céus com
aplausos; braços que te serão estendidos e te levarão pelo caminho da glória! Possam os teus pés perambular entre as
estrelas do céu, morada dos Deuses grandes!
Pega tu o leme da barca solar e a dirija, com precisão e sabedoria, até
o porto da salvação!”
A história não termina aqui. De noite, todos recebidos com grande honra pelo
embaixador da RAU (*) no
Brasil, Senhor Hussein Ahmed Mustafá, por ocasião da Semana do Egito no Museu
de Belas Artes. Conhecemos o sonho de
Nasser em unificar e dar dignidade aos povos árabes tão espoliados e humilhados
pelo colonialismo.
A solenidade começou com o Professor
Victor falando sobre a Cosmogonia Egípcia,
passou pelo Homem de Lagoa Santa e,
finalmente, a Pedra Lavrada do Ingá.
No resto das férias, e depois em
outras, leituras de livros cheios de mistérios: A Expedição Kon-Tiki; Aku Aku,
O Segredo da Ilha da Páscoa, de Thor Heyerdahl; Deuses, Túmulos e Sábios do inesquecível C.W.Ceram e até um livro, Arqueologia de Campo, emprestado por um
vizinho, Engenheiro do Patrimônio
Histórico. Mais tarde leituras de
Gordon Childe. Cheguei a limpar um crânio
de mais de dois mil anos. Estranho
escovar os cacos de dentes pretos, que mesmo assim pareciam sorrir, atenuando o
olhar das órbitas vazias, ainda focado no passado.
Depois, o vestibular, a universidade, o
trabalho.
Mas a vida parece caminhar em tempo
circular. Aqui estou no mesmo ponto,
apenas o espaço mudou. Arrasto-me sobre
as pedras, cada palavra, cada detalhe daquela palestra cortado na rocha dura.
Aqui, de volta à juventude.
Drible no Tempo da Física.
Nota:
(*)
República Árabe Unida, formada pelo
Egito e Síria, sob a presidência de Gamal Abdel Nasser.