Por ocasião das comemorações do bicentenário da chegada
da família real
portuguesa à nossa terrinha, no ano de
2008, a cidade do Rio
de Janeiro foi tomada
por exposições
de desenhos, pinturas
e fotografias que
documentavam o Brasil colonial e imperial.
Ao visitar uma destas exposições
chamou minha atenção uma aquarela de Thomas Ender – artista
austríaco que retratou o Brasil entre 1817 e 1818.
A aquarela
tinha como
título: Fruta do coco
– Folha de caxueira (cajueiro), que
foi traduzido das anotações na sua parte superior
e inferior.
Figura 1 – Aquarela de Thomas Ender:
Fruta do coco – Folha
de caxueira (cajueiro)
Neste desenho
(V. Figura 1) foi colocada a imagem de um coco completo e outra
com um
corte transversal
para mostrar o seu interior, acompanhando
as folhas do cajueiro. Provavelmente, Thomas Ender visitou o nordeste fora
da época da colheita
deste fruto, que
vai de junho a dezembro, e não encontrou cajus
como modelos
para seus desenhos.
Como
cada informação deve ser
examinada com muita
atenção, resolvi fazer
alguns experimentos
e sai por aí
procurando cajus fora
de sua época
de colheita. Depois de muita
procura uma loja
de sucos me
forneceu alguns, que
guardava no refrigerador apenas para a decoração de seus balcões. Fiz uma montagem
com os frutos
e aproximadamente dois séculos
depois apresento (V. Figura 2) uma fotografia
equivalente à aquarela que Thomas Ender deixou de fazer.
Figura 2 – A beleza dos cajus. Foto T. Abritta.
Agora
vem a pergunta: e daí? Para responder a esta indagação
temos de sair do mundo
dos experimentos concretos
com cajus
e entrar no universo
da especulação.
Em
uma época em que a Flora
Brasiliensis encantava artistas e
naturalistas, que saiam por aí, como Von Martius (1794-1868), registrando em detalhes palmeiras, araucárias,
para não falar na Musa paradisíaca, a nossa
popular bananeira,
não seria estranho
deixar de registrar o encanto do caju? Provavelmente os caboclos
tentaram enganar Thomas Ender, fornecendo cocos no lugar
de cajus. As anotações na aquarela,
mostram que a fraude
parece ter sido descoberta a tempo,
mas o resultado
foi uma obra sem
nenhum encanto.
Para mim, este foi
caso flagrante do chamado “jeitinho brasileiro”, que não passa de um crime de estelionato, tão
comum em
nossa terra. Quando
os espertalhões são
descobertos em
suas falcatruas,
simplesmente declaram ignorância
e são sempre
perdoados.
Diante
disto seria interessante fazer uma análise
histórica, sob enfoque não acadêmico, através um prisma
do “nunca antes
neste país”, ou
que rompesse as cangalhas
do “politicamente correto”. Afinal,
no poço em
que se encontra
a sociedade brasileira,
talvez conhecendo as origens de certos
costumes possa mudar
para melhor.
As Amazonas
e os Fósseis
Este
encantamento pela
natureza, clima
e povo brasileiro
teve vários exemplos. Alguns, como
diríamos, radicais, como
o do dinamarquês Peter Lund, considerado o pai
da paleontologia brasileira. Lund veio
jovem para nossa terra, vivendo aqui por cinqüenta
e cinco anos, de 1825 a 1880, fazendo estudos científicos
nas províncias do Rio
de Janeiro, São
Paulo, Goiás e finalmente Minas Gerais, onde ficou maravilhado com as grutas
e fósseis da região de Lagoa Santa.
Mas
não era
apenas a exuberância
brasileira, com
suas possibilidades de estudo científico,
que encantou os nossos
visitantes. Alguns
acabavam iludidos por histórias de realidades
fantásticas e seres míticos – curupira, boto-encantado, cobra-grande e mapinguari – contadas
por índios
e caboclos, em
busca de ganhos
monetários.
Em
1735 partiu para o istmo
do Panamá uma expedição
chefiada por Charles-Marie de La
Condamine, ex-soldado e explorador, um apaixonado pela
química e a geodésica, e membro da Academia
de Ciências da França. Os expedicionários
pertenciam a uma elite cientifica de
matemáticos, astrônomos, geógrafos, médicos,
naturalistas, engenheiros e técnicos e tinham como
missão fazer medidas da gravidade
terrestre e, sob
a linha do equador,
o comprimento de um
arco de meridiano
equivalente a um grau. Pouco tempo depois
partiu para a Lapônia, próxima
do pólo norte,
uma outra expedição
com os mesmos
objetivos. A comparação dos resultados
permitiu mostrar que
a Terra era
achatada nos pólos,
conforme a Teoria
da Gravitação, de Newton.
A segunda
expedição retornou um
mês depois,
mas La Condamine levou 10 anos para retornar. Após chegar por terra a Quito, onde
amargou meses de prisão acusado de espionagem, Condamine ficou fascinado com o mito das Amazonas – as mulheres
guerreiras – e resolveu encontrá-las, sendo o primeiro cientista a fazer a
viagem completa pelo rio Amazonas em toscas balsas, dos contrafortes dos Andes até o oceano Atlântico. Durante meses os caboclos,
índios e ribeirinhos
amazônicos tiraram vantagens
dos expedicionários com
histórias das mitológicas
guerreiras. Mas
o saldo científico
desta viagem acabou, felizmente, sendo positivo,
apesar das mortes,
sofrimentos e dificuldades encontradas –
no fim da expedição,
por exemplo,
passaram sete meses perdidos entre igarapés,
pântanos e braços
de mar no retorno
para a Guiana.
Sexo, Inocência e Voyeurismo
Para aqueles que
passam horas na frente
de uma televisão, praticando uma espécie de voyeurismo eletrônico – mas sempre
falando de uma suposta permissividade
dos costumes e da moral
em nossos
dias, em
oposição a uma pureza
e inocência do passado – lembramos que os índios, mesmo andando completamente
nus, deixaram registros
históricos de práticas
voyeurísticas em plena
selva.
Em
1899, o naturalista Henri Coudreau acompanhado
de sua esposa,
também naturalista, Mme. Coudreau, após percorrer
durante meses rios
paraenses, encontra
a morte às margens
do Rio Trombetas. Mostrando uma grande
coragem, mesmo
desolada com a perda
do marido, Mme. Coudreau continua a excursão
pelo Rio Cuminá, onde, em um tenso encontro com os índios
da região, teve que
tirar parte
de suas roupas
e mostrar os seios
em troca
de sua vida. O mais
incrível nesta história
toda é que, anos
depois, em
1925, uma excursão liderada pelo geólogo Avelino
de Oliveira e Picanço Diniz, ao encontrar um grupo de índios
Pianocotó, na mesma região,
fizeram contato verbal
usando como intérprete
uma índia “domesticada” falando o dialeto caxinauá. Os
índios, ao verem uma mulher aparentemente branca,
já que
vestia roupas, fugiram apavorados, exceto um jovem nativo que ordenou, na língua
comum, que
ela mostrasse os seios
e, a vista destes, abaixou o arco abandonando a atitude hostil. Aqui
cabem algumas considerações: será que a atitude desse índio é baseada em conhecimento do mesmo
fato anterior
através uma tradição
oral? Ou cabe aqui a teoria do inconsciente coletivo de Jung?
Ou será que
esta prática voyeurística
de alguma maneira está relacionada com o trabalho de catequese do Padre
Nicolino, que percorreu esta região por mais de vinte anos
em três
sucessivas expedições no final do século
XIX? Afinal
de contas o princípio
básico de qualquer
catequese religiosa
é a destruição da religião,
da moral e dos costumes
do povo a ser
dominado.
Destruição do Patrimônio Cultural
Em
1928 o General Rondon também explorou os Rios
Trombetas e Cuminá, documentando não só a fauna, flora e
as culturas locais,
como inscrições
rupestres e petroglifos encontrados. Na Figura
3, mostramos o registro fotográfico,
feito por
esta expedição, de uma pedra na Cachoeira
do Resplendor, no Rio
Cuminá, onde, ladeado por duas inscrições indígenas,
o grupo do Padre
Nicolino deixou, entalhado na pedra, a inscrição “VENIT 1887” (não
muito legível nesta fotografia),
e logo abaixo
podemos observar a inscrição
“DINIZ AVELINO 1925”, deixada pela expedição Diniz que
comentamos acima. Aqui,
o General Rondon lega-nos um dos primeiros
registros históricos
da destruição de um
patrimônio arqueológico patrocinada pela Igreja Católica e pelo governo do Pará
responsável pela
expedição Diniz-Avelino.
Figura 3 – Destruição de petroglifos indígenas na
Cachoeira do Resplendor,
Rio Cuminá – Pará.
Índios do Brasil vol. III,
Cândido Mariano da Silva Rondon – Conselho Nacional de Proteção aos Índios,
Ministério da Agricultura, Rio de Janeiro, DF, Brasil – 1953.
Antas e Racismo
Parece que
ainda não
falamos das antas. Mas este singelo animal está relacionado a uma das evidências
pseudocientíficas da origem do racismo e da superioridade racial dos descendentes
de europeus em
nosso país.
Assim
como hoje – quando este esforço anti-científico tenta
condenar as pesquisas
com células
tronco embrionárias – logo após a descoberta da
América, o conhecimento de povos não mencionados na Bíblia
era uma ameaça
ao poder e domínio
de grupos religiosos. Muitos
simplesmente passaram a considerar
os índios como
animais não
humanos.
A pequena tromba
da anta (V. Figura 4) foi o exemplo utilizado para mostrar que se
tratava de um mundo
inferior, em
um estágio
primitivo, tanto
que a anta
não tinha
chegado ao desenvolvimento
do elefante com
sua enorme
tromba.
Para reforçar a teoria deste mundo
inferior, ainda
tinham as doenças tropicais
e mosquitos. Após séculos, estas idéias
ainda são
usadas para condenar o povo e absolver os governantes por
suas incúrias.
Figura 4 – Noturnos da Anta. Alta Floresta, MT. Foto T.Abritta
E aqui
fica uma modesta contribuição para outras
visões de nossa História,
que pode ser perdoada
em seus
exageros especulativos
pelas palavras do Professor
Abdias – personagem do romance Abdias
de Cyro dos Anjos:
...mas que são a história,
a filosofia, senão
outras tantas ficções, e talvez mais
ousadas, porque se presumem de
alicerçadas no real?
Publicado no livro Cidades de Memórias.
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