A
História do Reino
do Butão aos pés do Himalaia, espremido entre dois gigantes – Índia
e China – vem de tempos imemoriais. Diz
a tradição que
o pequeno reino
já foi dominado pelo
demônio, tendo sido libertado pelo legendário Guru Rimpoche que
o converteu ao Budismo. Os primeiros
europeus a visitar estas terras foram os Jesuítas
Portugueses Cacella e Cabral, em 1627, que como bons religiosos
sempre procuravam rendosos negócios.
O país
permaneceu como um
Estado Teocrático
até 1907, quando
os principais Lamas resolveram escolher um rei. Com o título de “Rei
do Dragão” iniciou-se uma monarquia hereditária que
está atualmente no seu
quarto representante, o atual
rei Jigme Singye Wangchuck. Este governante
anunciou na época que abdicaria do trono em favor de um de seus filhos e
transformaria o país em monarquia constitucional, elegendo uma assembleia constituinte. Mas a força do poder real vem da religião, com
uma verdadeira multidão de monges – calculada em
quinze mil – sustentada pelo governo
e vivendo em imensos
mosteiros e palácios.
Quando conhecemos o esplendor
do reino budista
terreno, passamos a acreditar
em algum
poder mágico,
já que
não dá para imaginar a fonte de recursos para a sua construção e sustento, arrancada
de pobres camponeses. Ainda hoje, noventa por cento da população
do Butão (aproximadamente setecentos mil
habitantes), vive da prática da agricultura de subsistência. O governo
falava em um
Índice de Felicidade
Interna Bruta, em substituição
ao índice que
mede o produto interno
bruto, mas
que na realidade
apenas reflete o controle
da população pela
coerção religiosa
e falta de informação. Pelo sim pelo não, uma droga muito comum por aqui, principalmente entre
as pessoas mais
idosas, é uma espécie de noz que após ser triturada é envolvida por uma folha de
um vegetal chamado betel; mascada,
produz efeitos alucinógenos,
mas causa como
efeito colateral
uma gengivite crônica
que afeta
boa parte da população.
A face
colorida do Butão
Para os estrangeiros
as únicas entradas para
este reino
são ou por via
aérea, pelo único
aeroporto do país
na cidade de Paro, ou
por via terrestre saindo da cidade
indiana de Jaigaon que
faz fronteira com
a cidade butanesa de Phuentsholing, uma espécie de zona franca de fronteira,
onde comerciantes
indianos, árabes
e do mundo inteiro
espalham uma imundície indescritível
vendendo suas mercadorias.
Ao sairmos da cidade,
começamos a gostar do Butão, com
seus rios
cristalinos, florestas
e um povo
receptivo que
tem orgulho de vestir
roupas típicas e grande prazer em
convidar para conhecer suas casas.
Chega-se à capital do país,
Thimphu, a cento e oitenta quilômetros
da fronteira, por uma estrada precária
que acompanha vales de rios maravilhosos,
viajando por alturas
que causam arrepios
cada vez
que os carros
e caminhões se encontram e têm que se espremer entre os abismos
e paredões para
as complicadas manobras de ultrapassagem
que às vezes
levam minutos.
Ao
chegar a Thimphu, voltamos no tempo: arquitetura típica, pessoas trajando roupas locais,
sem sinais
de trânsito, onde não
existem sacos plásticos
e ninguém fuma em lugares
públicos. O ar medieval é acentuado quando
conhecemos um pouco
da história em que o atual rei, mesmo com uma educação europeia, casou-se com
quatro irmãs, no mesmo
dia e em
uma única cerimônia. Outo acontecimento
fantástico foi participar
de uma grande festa
cívica e religiosa
no Trashi Chhoe Dzong, um complexo de templos budistas,
palácio real
e sede administrativa
do governo. Estava presente a família real, todas
as pessoas importantes
da sociedade e do clero, e o povo
vestido com
suas melhores roupas
como em
uma verdadeira ópera gigantesca, com
muito incenso
e rufar de tambores (V. figura 1).
Figura 1 – Cerimônia
no Palácio Real
em Thimphu. Foto T.Abritta, 2007.
Na
saída da família
real todos
abaixaram as cabeças, o rei passou célere
sem olhar para os lados, mas as duas irmãs, rainhas
mais velhas, não
resistiram em nos
olhar e sorrir, ao que respondi com
uma piscadela discreta
para não quebrar o protocolo.
O
Butão tem mais de setenta por cento de seu território coberto por florestas, e mais da quarta
parte do país
protegida por parques
nacionais. Nos últimos anos
seu monarca iniciou um
processo de modernização. As transmissões
de televisão via
satélite chegaram em
1999 e posteriormente os telefones celulares
e a Internet. Neste processo tem
sido dada grande importância
à saúde pública,
educação (V. figura 2), melhoria de estradas
e comunicações, sem descuidar da política de preservação
da natureza e cultura.
A
renda para o desenvolvimento do país
vem do turismo, com
a construção de luxuosos
hotéis de cadeias internacionais,
da venda de energia
elétrica para
a Índia, o que
representa trinta e dois por cento da arrecadação governamental,
e da extração madeireira.
Figura 2 – Escolares
butaneses com os seus
belos uniformes.
Foto T.Abritta, 2007.
A face
negra do Butão
Infelizmente, o pequeno
Reino do Butão, no seu
processo de desenvolvimento,
torna-se cada vez
mais refém
da Índia, que compra
sua energia elétrica,
destrói florestas com a extração madeireira,
fornece técnicos, professores
e segurança militar. O Butão resiste, mas
a Índia, como
a China, tem que exportar
parte de seu
povo para aliviar a explosão
populacional. No Butão existem atualmente 50 mil
trabalhadores indianos
na condição de empregados temporários na construção
de estradas e trabalhos braçais, fora os técnicos
mais especializados, necessários para a
modernização do país.
Nos trabalhos
de melhoria das estradas, feitos pelo Exército Indiano,
são empregadas
milhares de mulheres
que trabalham quebrando pedras, carregando terra em cestos,
praticamente fazendo tudo com as mãos sem ferramentas
ou recursos
técnicos. Trabalham em
regime de quase escravidão, vigiadas por
militares indianos
armados, algumas carregando crianças nas
costas, cozinhando e vivendo na lama e chuva (V. figuras 3 e 4). No final do dia cruzamos nas estradas com aqueles sinistros
comboios de caminhões,
militares indianos armados sentados nos tetos e nos estribos, levando
mulheres amontoadas como gado, que nos acenam tristemente
com mãos feridas e enroladas por trapos, a caminho para uma espécie de campo de concentração
onde dormem.
Figura 3 – Trabalhadoras indianas no Butão. Foto T.Abritta, 2007.
Paradoxalmente,
nos campos
de trabalhadores masculinos
faltam mulheres, sendo comum a formação de casais
homossexuais que
se acariciam no meio da lama nos breves momentos
de descanso.
Os
indianos não
têm em suas
construções nenhuma preocupação
com o meio
ambiente, e as estradas são alargadas jogando em
rios intocados todo
o entulho, manchando a natureza
de lama, óleo
e lixo.
Parece
que o chamado milagre
econômico indiano
no fundo significa lucros
gigantescos para
uma minoria e miséria
para a maioria,
com o desprezo
pela dignidade
humana com
o uso de mão
de obra escrava.
Figura 4 – Trabalhadoras indianas com toscas ferramentas
e improvisações para compensar as limitações
de sua fragilidade física. Foto
T.Abritta, 2007.
Santos e Demônios
Após longo percurso por
essa região, visitando dezenas de templos
e palácios, tivemos apenas uma única oportunidade de encontrar um verdadeiro discípulo de Buda,
que caminhava pela
estrada, visitando amigos camponeses que conheceu nos
seus oitenta anos
de vida.
Este verdadeiro
monge só
tinha como
bens materiais
duas bolsas de pano. Na primeira
carregava algumas roupas, um cobertor,
uma toalha, alguns
pedaços de pão
e pequenos objetos. Na outra
trazia dois pesados livros,
com páginas
soltas e escritas
à mão em
papel artesanal
antigo.
Após conversarmos por
gestos, deitou-se no chão para enfiar
os braços nas alças
das sacolas; pediu que o erguêssemos e
despediu-se contente por ter ganhado uma maçã.
Depois desse encontro
refleti e cheguei à conclusão de que uma espécie
de santidade estava também
nos milhões de pessoas que sofrem, lutando para sobreviver neste mundo de
injustiças.
Por outro
lado, parece que os demônios
que atentavam Buda, oferecendo-lhe um reino material, tiveram grande sucesso,
criando um mundo com tanta opressão e desigualdade.