A lua cheia transformava a estrada de
terra em caminho prateado. Suave brisa
levantava poeira, formando espessa nuvem de pó branco, fundindo céu e lajedos
de pedra sabão. Parei o carro atraído
pela beleza desta noite de inverno. Saí
caminhando, tropeçando aqui e ali, terminando em estreita trilha. No final, pequena casa rodeada de ora-pro-nóbis
(1) floridos. Planta rara, mas que
conhecia do quintal de minha avó em Belo Horizonte. Estranhei.
Estávamos em julho e a floração deveria ter terminado lá pelo final de
abril.
No interior da casa uma jovem lavava
louças. Acenei, mas ela parecia alheia,
olhar perdido, expressão facial indefinida.
Bati na porta, que estava entreaberta, entrando. Fiquei observando-a, de costas, lavando e
polindo louças, num remelexo de quadris sob o vestido caseiro, de um tecido tão
ralo que provocava o olhar. Aproximei-me
e, no que parecia um reencontro festejoso, entre panelas ruidosamente caindo, o
paninho de prato que ela usava. Lá, em
bordado delicado li: Magdalena.
Estrondos metálicos arrancaram-me
daquele mundo. Eram os carrilhões da Igreja
de Nossa Senhora do Rosário – a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos – chamando
para a missa das seis. Vista
privilegiada da minha janela. Quase
tocava aqueles sinos vibrando ao lado.
Na mesa de cabeceira, um ramo florido de ora-pro-nóbis. Não havia tempo para pensar. Muito trabalho a fazer.
Tinha sido contratado por um
escritório de artes gráficas em Tiradentes para fotografar igrejas barrocas
mineiras. As imagens ilustrariam um
livro de poesias, falando não do grandioso, mas do singelo e pouco notado nesta
arquitetura: a capela de Santa Quitéria em Catas Altas, e do Padre
Faria em Ouro Preto; a Igrejinha de Santana, na Vila de Cocais, e outras, que
muitos nunca ouviram falar, como a Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro
ou a fachada em pedra sabão, quase em ruínas, da Igreja no povoado de Santo
Antônio de Itatiaia, no caminho para Ouro Branco.
Cedo, despedi-me de Ouro Preto. No roteiro traçado passaria por Ouro Branco,
chegando a Congonhas; daí, Prados, Bichinho e finalmente Tiradentes.
No caminho dei carona a um falante
viajante. Contava-me histórias
inacreditáveis:
Magdalena era filha de rico e poderoso comerciante. Teve o azar de apaixonar-se por Zé Boiadeiro. Acabaram fugindo, acoitando-se em uma moita
de ora-pro-nóbis aqui pela região.
Perseguidos, numa escura noite de eclipse lunar – noite que pode trazer
sofrimentos, infortúnios e desgraças – foram encontrados. Zé Boiadeiro acabou estraçalhado pela
cachorrada dos capitães-de-mato e a infeliz, encerrada até o final de sua vida
em um convento. Apiedada, Nossa Senhora
determinou que nos dias de Lua Azul, e somente nestes dias, dos amores
impossíveis, teriam a oportunidade de um reencontro.
Ontem ninguém saiu de casa.
Dava até arrepios escutar as tristes cantorias do boiadeiro-encantado
levando seu gadinho noite adentro.
Muitos quilômetros a rodar. O carro corria, levantando o pó branco que
lembrava a estrada do sonho. Ontem foi
trinta de julho, a segunda lua cheia deste mês.
A outra foi no dia primeiro. Talvez
venha daí esta história de Lua Azul, associada ao muito difícil ou quase impossível,
já que é um evento de rara ocorrência – duas luas cheias no mesmo mês. Estamos no ano de 1996 e a próxima Lua Azul
será somente em janeiro de 1999.
Chegando a Tiradentes, entreguei o
material. Levei um susto. Fui recebido por uma arquiteta que era “cuspida
e escarrada” (2) a moça da noite anterior. Não entendi nada.
Relógio de sol talhado em pedra por Aleijadinho.
Adro da Matriz de Santo Antônio, Tiradentes, MG.
Foto T.Abritta, 1996.
Hoje, tantos anos depois, aqui estou,
em Tiradentes, no adro da Matriz de Santo Antônio, admirando o relógio de sol talhado
em pedra por Aleijadinho. Último dia do
ano, trinta e um de dezembro de 2009, dia de Lua Azul, das realizações de sonhos
e desejos impossíveis. Por outro lado,
ameaças funestas – dia de eclipse. Quem
sabe, o funesto não será atenuado por aqui, já que esta ocultação lunar não é
observada em nosso país?
Pensei como a expressão Blue Moon,
usada em um poema de Shakespeare, chegou aos nossos dias com esta
conotação. Pensei na música (3)
de mesmo nome, sendo tomado por sentimentos de solidão e melancolia. Pensei nos mais antigos registros escritos
falando em relógios solares: nas páginas da Bíblia, segundo Isaías (4),
o Senhor teria feito a sombra do sol retroceder dez graus no conhecido
quadrante de Acaz, em 750 a.C.
Fixando o olhar na escala angular gravada
por Aleijadinho, há tanto tempo, com tantas dificuldades, por que não seria
possível voltar, retroceder ao passado como em Acaz?
Lentamente fui descendo pela Rua do
Padre Toledo. Esperavam-me para a festa
de passagem do ano. 2010 chegava. O tempo melhorou. Entre as nuvens, surgiu brilhante lua cheia. Não parecia azul. Mas,
If
they say the moon is blue, we must believe that it is true (5).
A Título de Posfácio
A pedido da família de meu amigo, o fotógrafo
Lázaro Lokovaks, desaparecido misteriosamente no dia 31 de dezembro de 2009, em
Tiradentes, Minas Gerais, escrevi e tenho o prazer de publicar este conto,
baseado em suas anotações. Nas notas havia
também um belo poema em língua inglesa, que identifiquei posteriormente como sendo
de Stevenson. Pela beleza e sonoridade
(como, por exemplo: versos terminando em oxítonos ou a tripla coliteração
final), reproduzo abaixo esta poesia, no original (6), como um
Réquiem ao saudoso Lázaro:
Under the wild and starry Sky
Dig the grave and let me lie
Glad did I live and gladly die,
And I laid me down with a will.
This be the verse you’ grave for me:
“Here he lies where he longed to be;
Home is the sailor, home from the sea,
And the hunter home from the hill”.
Notas:
1.
Espécie de verdura que fica comestível após o cozimento. Herança da Cultura dos escravos que
descobriram seu valor nutritivo. O nome
vem da crença na proteção divina nos momentos de fome.
2.
Esta expressão é, provavelmente, uma corruptela de “esculpido em carrara”, usada
para falar da semelhança entre duas pessoas.
4.
Livro de Isaías, capítulo 38, versículo 8.
5.
Antiga expressão inglesa: se eles dizem que a lua é azul, nós devemos aceitar
como verdade.
6.
Em uma tradução deste poema (o que já é discutível), sem preocupação rímica ou métrica,
escreveríamos: Sob o selvagem céu estrelado / Cavem a sepultura e me deixem
deitar / Vivi feliz e feliz eu morro, / E me deitei com um derradeiro desejo. /
Gravem este verso por mim: / “Aqui ele fica, onde ansiava estar; / De volta o
marinheiro, de volta do mar, / E o caçador de volta das montanhas”.