Eu gostava de observar a Igreja da
Penha da janela do meu trabalho. No
verão, o por do sol ia se deslocando cada vez mais para o sul, até o poente ficar
atrás da igreja, transformando-a em raiada silhueta, emoldurada por infinitos
tons avermelhados intensificados pela poluição atmosférica. Ironias da degradação ambiental. Ano a ano o ciclo se repetindo. Às vezes esta exuberância trazia lembranças
da minha cabeça. Coitada, toda quebrada,
colada com durex, repousando eternamente
junto com pernas, braços e outras anatomias de cera. Dizem que de tempos em tempos tudo é
derretido, virando velas votivas, posto não existir espaço para tantos objetos
de promessas. Entretanto, quem sabe não
está sob a guarda do ciclo solar, transcendendo nossas existências?
Outro dia cheguei até a sentir a
fumaça do ônibus caolho, apelidado de Camões.
Memórias daquele dia de longo retorno – minha avó tinha vindo de Belo
Horizonte e lá fomos, junto com minha mãe, pagar a promessa. Da Penha até a Central do Brasil e de lá até
o Jardim Botânico, no 12, Estrada de Ferro-Leblon (V. Figura 1), que ia
vagaroso e fumarento pela Voluntários da Pátria. Mal saímos da igreja, caiu um temporal inundando
tudo. Mas a missão estava cumprida.
Nem me lembrava do acidente. Mas a promessa tinha sido feita. Só tenho vaga imagem de nós todos indo
comprar a cabeça em uma loja em frente ao Cemitério São João Batista. Na vitrine podiam-se escolher cabeças de
adultos ou crianças; meninos ou meninas (V. Figura 2). A minha, a menorzinha, foi guardada,
cuidadosamente embrulhada, em cima do guarda-roupa de nossos pais, esperando
pela nossa avó.
O problema é que assim que minha mãe
saía, ainda nem tinha descido as escadas, e já gritavam: vamos pegar a cabeça do Léo.
Todos subiam na cabeceira da cama, de onde alcançavam o embrulho e
começava a confusão, e meus tormentos.
Afinal era minha cabeça. Não
podia permitir tamanho desrespeito. No
fim sempre o mesmo – o estrado da cama quebrado com a pulação e minha mãe
colando a cabeça sob olhares assustados.
Maior sofrimento era escutar baixinho nos ouvidos: promessa com cabeça colada não vale, vai ficar doido como castigo.
Hoje fico pensando: será que minha cabeça não era mais feliz
servindo de brinquedo pra criançada do que depositada solitariamente, perdido
ex-voto, entre peças fúnebres?
E vozes infantis ecoavam: vamos pegar a cabeça do Léo... o quê que a
barata faz? Voaaaaa.
Figura 1
– Ônibus Camões. Foto de 1955, autor
desconhecido.
Figura 2
– Capela Nossa Senhora da Cabeça, Bairro do Jardim Botânico, Rio de Janeiro.
Foto T. Abritta, 2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário