Sempre que vejo aqueles pedaços de
lava solidificada repousando nas prateleiras da minha estante me lembro de
Stromboli. Esta, a vantagem de ser um
“carregador de pedras”.
Era para escalarmos o vulcão Etna, na
Sicília. Nem saltamos do trem – todos os
caminhos interditados, pessoas sendo evacuadas.
Diziam que era uma das maiores erupções dos últimos anos. A fumaceira cobria até os trilhos.
O bilheteiro do trem falou num bonito
Siciliano – língua que ainda sobrevivia naqueles tempos: se querem ver vulcões, lembrem-se do filme Stromboli, com Ingrid
Bergman.
E lá fomos para as terras de Eolos, o
rei dos ventos.
Contornamos a Sicília, deixando para
trás, Messina, chegando a Milazzo. O
gigantesco aerobarco sairia em segundos.
Nem tempo para um café.
A primeira parada nas Ilhas Eólias foi
em Vulcanello. Um porto ao lado de pequena cratera por onde
saía lava que escorria para o mar. As
águas ferviam, cheiro de queimado no ar.
Pessoas desembarcavam, outras entravam, totalmente indiferentes – para
nossa surpresa – diante do vulcão ativo enfiado na tranquila cidadezinha.
Acabamos permanecendo uns dias em
Lípari, verdadeiro mosaico de civilizações.
Do alto da ilha observava o fumarento Monte Etna. Dava até para escutar Vulcano e os ciclopes-ferreiros
trabalhando em suas forjas.
Agora, distante, um vulcão apenas belo e
não tão ameaçador.
Depois de quase três horas com o
aerobarco voando sobre as águas chegamos a Stromboli. A primeira parada foi quase ao lado da Sciara del Fuoco (Esteira de Fogo) –
imensa ladeira que descia uns oitocentos metros, por onde escorria a lava do
vulcão que explodia a cada instante, lançando jatos vermelhos e fumaça.
Dava arrepios. Em meio ao vapor das águas ferventes, surgiu
um pequeno barco a remo, trazendo passageiros da vila próxima. Se não fossem seus sorrisos, eu os imaginaria
sendo evacuados de uma catástrofe.
Depois rumamos para o porto principal,
do outro lado da ilha. Apenas quatro
passageiros desembarcaram: eu, Cristina, um homem que trabalhava na Austrália e
vinha visitar a família e outro empurrando um carrinho com caixotes
vazios. Viajar fora de temporada tem vantagens. Nada de multidões de turistas. Verdade?
O barco foi se afastando enquanto o
marinheiro que recolhia a âncora, como se adivinhasse meus pensamentos, falava
ironicamente: sim, tem muitos hotéis,
restaurantes, bancos...
Um casario branco se espalhando entre
rochas negras, praias negras. Entre
barcos repousando no negrume da terra, um pescador solitário costurava sua
rede. Única pessoa visível. Irritado, deixava claro não gostar de intrusos.
O jeito foi subir lentamente as
ladeiras de casas brancas, becos estreitos.
Verdadeira cidade fantasma: igreja, delegacia policial, lojinhas, tudo
fechado. Ninguém à vista. Pelo menos poderíamos armar um bivaque junto à
porta da igreja e, se sobrevivêssemos à noite de inverno, partir no próximo
barco.
Quase anoitecendo, o frio aumentando,
um ruído estrondoso quebrou o silêncio.
Enorme moto, entre roncos do motor, aceleradas fumacentas, um garoto
falou alguma coisa. Entendemos apenas
duas palavras: campito e campanello – chaves do enigma que nos
“salvaria”.
Andamos apenas cem metros ladeira
acima e, nos fundos de uma pequena pracinha, encontramos uma trave de futebol
já apodrecida. Finalmente o campito!
O resto foi fácil. Mais acima, uma senhora agitava um lampião e
foi logo dizendo: se o portão estiver
fechado aperte o campanello. Eu e meu
marido moramos lá embaixo depois da plantação de oliveiras. Vocês ficam ali naquele quartinho. Comida não tem. As azeitonas deram apenas para comprar os
mantimentos do inverno. Durmam e rezem,
que Deus ajuda.
No quarto cabia apenas a cama. Ou se deitava ou se abria a porta dupla,
para, sentado na cama, colocar os pés no pó de lava e cinzas, observando as
ritmadas explosões do vulcão no alto da montanha – o medo poderia disfarçar a
fome. Algumas eram mais fortes, com o
jato de fogo colorindo o céu. Ficava
também pensando no relativismo do desenvolvimento tecnológico: aquela era a
primeira campainha instalada em uma residência naquela ilha. Lembrei-me que, quando criança, todos nós íamos
ao prédio da Sears, no Rio de
Janeiro, para conhecer a novidade da escada rolante. Falamos línguas diferentes, mas somos todos
iguais.
“Que tal escalar o vulcão? Não temos lanternas. Mas é noite de lua cheia. E se o tempo ficar nublado ou o vento mudar
de direção cobrindo tudo com cinzas?
Dizem que isto é raro acontecer.
E o frio lá em cima...?”
Percorremos a viela estreita. Alguns latidos de cachorro, poucas luzes acesas. No final do beco começava uma trilha, no
início calçada, que ia subindo para o vulcão.
Para trás piscava o farol no rochedo Strombolicchio, ficando cada vez mais longe
e menor com a altura. Na frente, os
jatos de lava ficavam maiores e mais vermelhos. Vento e frio aumentando. Acabamos perdidos em meio à vegetação
queimada. A encosta ficava cada vez mais
íngreme e perigosa. Metro a metro fomos
retornando, totalmente cobertos de cinzas, mãos feridas de tanto segurar nas
raízes e arbustos ressequidos. Alívio
apenas quando caminhamos novamente pelas pedras da trilha principal.
Mal dormimos e um estrondoso motor nos
despertou. A mesma moto do dia anterior,
agora pilotada por um senhor e com a garupa cheia de caixotes de uva. Levamos um caixote, mas o agricultor foi
enfiando dentro da minha camisa outros cachos: é bom ter bastante comida – parecia adivinhar que este seria nosso
alimento nos próximos dias.
Finda a refeição, nova caminhada.
Agora mais experientes, não confundiríamos
os rastros das águas da chuva com trilhas.
Levávamos casacos e panos molhados cobrindo o nariz. Sabíamos também calcular altura, direção e
distâncias, riscando nas cinzas do solo o triângulo ensinado pelo agricultor: Fácil.
Num dos vértices Strombolicchio,
no outro o farol na encosta Labronzo
e no último, claro, o vulcão: se o vento
estiver muito forte, não dando mais para ficar em pé, retornem imediatamente.
Subimos a uma altura com mais de
seiscentos metros. Menos de duzentos
metros da cratera. Sentados, sentíamos o
chão tremer com as explosões, no rosto o calor da Sciara del Fuoco, nos olhos a amplidão do Mar Tirreno.
No coração, a emoção de estar tão alto,
a vila tão pequena lá embaixo, mas tão perto do centro da Terra.
Na hora do embarque, com o já conhecido
ruído de moto, a despedida: o garoto, seu pai – o agricultor – e o mal humorado
pescador, agora sorrindo, acenando e gritando: salutamu, salutamu, salutamu!
Na cantina do barco um passageiro pediu:
Vulissi nu cannolu câ ricotta.
Apenas repeti: vulissi nu cafè.
Enquanto bebia o tão esperado café,
pensava: por que o mundo tem que ser igual?
Afinal, é esta diversidade que nos propicia descobertas maravilhosas.
Texto
a ser publicado brevemente no livro “Os Meus Papéis”
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